08 Setembro 2015
"O papado se tornou um mecanismo de mudança, e não o contrário. Os teólogos, que certa vez foram deixados de lado, estão agora contribuindo para os ensinamentos de Francisco. Questões pastorais difíceis que nunca tiveram a autorização para serem debatidos na Igreja – a principal delas sendo a situação dos divorciados e novamente casados que desejam voltar à vida paroquial – estão agora no centro dos debates no Sínodo dos Bispos", afirma Austen Ivereigh, jornalista e cientista político, autor do importante livro The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope [O Grande Reformador. Francisco e a construção de um Papa radical, em tradução livre] (Henry Holt; 1st edition, 2014), em artigo publicado por The Inquirer, 04-09-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Desde que escrevi uma biografia do Papa Francisco com o título ousado de “Francisco, o Reformador", a pergunta que eu mais ouço é: “O que o Papa Francisco está mudando de fato?” A resposta é, ao mesmo tempo, tudo e nada. As suas reformas representam uma mudança genuína, mas não uma mudança como o mundo conhece ou que gostaria que fosse.
Sim, ele está sacudindo as coisas. Ele está sendo ousado e corajoso. Ele assume causas difíceis e não tem medo de parecer impopular (fator que só o torna mais popular ainda). O papado se tornou um mecanismo de mudança, e não o contrário. Os teólogos, que certa vez foram deixados de lado, estão agora contribuindo para os ensinamentos de Francisco. Questões pastorais difíceis que nunca tiveram a autorização para serem debatidos na Igreja – a principal delas sendo a situação dos divorciados e novamente casados que desejam voltar à vida paroquial – estão agora no centro dos debates no Sínodo dos Bispos.
Francisco buscou grandes nomes nos mundos da contabilidade e gestão a fim de modernizar as finanças e as comunicações do Vaticano. Nomeou vítimas de abuso sexual clerical para uma comissão de alto nível dedicada a reformar as políticas de salvaguarda da Igreja. E com uma enorme gama de pequenas decisões – a simplicidade de seu vestir, a casa de hóspedes onde dorme e come, a sua candura desarmadora e sua franqueza nas entrevistas –, ele vem transformando a própria instituição do papado, provocando uma “revolução de normalidade”.
Mas tudo isso conta com um precedente no Concílio Vaticano II na década de 1960. Foi este Concílio que pediu por uma Igreja dos e para os pobres, que procurou purgar a Igreja do legalismo desatualizado e de elementos monárquicos; foi este Concílio que convidou a uma mais Igreja “pastoral”, focada nas necessidades dos pobres e excluídos. Essencialmente, o papado de Francisco está partindo de onde o Concílio parou, em particular na questão não finalizada sobre o comando (governança) da Igreja, setor em que Francisco vem discretamente liderando e que pode vir a ser a sua reforma mais fundamental.
Este foi o assunto não finalizado do Concílio. Ao mesmo tempo em que endossou o princípio de que os bispos são “cogovernadores”, sempre “juntamente com o papa”, a ideia jamais foi posta em prática. Roma continuou a agir como se fosse a sede de um monarca absoluto, com dioceses do mundo sendo as suas filiais. É a forma como muitos católicos atualmente pensam a Igreja, motivo pelo qual alguns estão chateado com mudanças sob este pontífice.
Ao se referir a si mesmo na noite de sua eleição como o Bispo de Roma que “preside na caridade” todas as dioceses do mundo, o Papa Francisco enviou um sinal claro de que ele iria implementar a colegialidade. E ele tem agido nesse sentido sob três formas, em silêncio e com firmeza.
Em primeiro lugar, Francisco nomeou arcebispos de todos os continentes para trabalhar como assessores papais e reformar a burocracia vaticana. Porque estes arcebispos não vivem em Roma, mas em suas dioceses, essencialmente ele está encarregando a Igreja local de mudar o Vaticano.
Em segundo lugar, ele restaurou a antiga ideia do Colégio Cardinalício – bispos do alto escalão da Igreja cujo papel principal é eleger o papa – como uma espécie de senado: um grupo que se reúne durante dois dias por ano para deliberar sobre alguns dos principais assuntos que desafiam a Igreja. (Porque a maioria dos cardeais também são chefes de dioceses, isso também constitui uma grande transferência de autoridade.)
Por último, Francisco reformou do Sínodo dos Bispos. Este não é mais simplesmente um espaço de debate, convocado e controlado pelo Vaticano. O Sínodo foi transformado num organismo com poder real de deliberar sobre questões importantes que, por sua vez, desafiam a Igreja. O papa ainda toma as decisões finais; mas, ao pedir que o Sínodo debatesse sem medo em sua assembleia e que se debruçasse por mais de 18 meses sobre questões pastorais sensíveis – tais como o lugar dos divorciados na vida paroquial –, ele dificilmente poderá ignorar as suas conclusões.
No entanto, existem limites claros para todas essas mudanças. Francisco realiza amplas sondagens, porém é ele quem decide. O Sínodo pode debater os desafios pastorais apresentados por casais homoafetivos ou pelos fiéis divorciados e recasados, mas assume como dado que o casamento/matrimônio acontece entre um homem e uma mulher, que é aberto a se ter filhos e para a vida toda. E, ainda que as reformas pela colegialidade sejam de uma significação histórica enorme, elas envolvem a restauração de algo perdido – e não a introdução de algo novo.
Em poucas palavras, é por isso que Francisco é um verdadeiro católico radical.
Perguntado por um jornalista em 2014 se se considerava um revolucionário, ele não discordou, mas disse que um verdadeiro revolucionário era “aquele que vai às raízes”. Ele também disse que a mudança autêntica tinha a ver com o fortalecimento da identidade, e não com a substituição dela. Para Francisco, junto com o teólogo Yves Congar, a verdadeira reforma começa na periferia – pense em Jesus começando na Galileia, entre o povo pescador e os pastores – e acontece quando o centro se abre a elas. A reforma de Francisco tem a ver com fazer acontecer estas coisas: religar o centro com a periferia, Roma com a Igreja local, os poderosos com os impotentes.
Consideremos o seu itinerário nos Estados Unidos. Ele chega a Washington vindo de Havana, e vai direto do Congresso para estar com os sem-teto. Das Nações Unidas e do Marco Zero (“Ground Zero”, em Nova York) ele segue para bairro de Harlem para ter um momento junto a crianças imigrantes. E depois de discursar aos bispos no Seminário St. Charles Borromeo, em Wynnewood, na Pensilvânia, ele sai para estar com os encarcerados na prisão Curran-Fromhold. Este papa sempre sai para as margens e fala a partir daí.
A reforma de Francisco não tem a ver com tornar a Igreja mais aceitável para a sociedade moderna, e sim possibilitar que ela melhor a evangelize. Acima de tudo, tem a ver com libertar a Igreja para que ela vá ao encontro das necessidades das pessoas comuns de se relacionarem com Deus. É por isso que ele não é um progressista, embora possa parecer no tocante à ecologia ou ao capitalismo de mercado. Ele não questiona ou dilui o ensino católico. Ele quer, isto sim, torná-lo mais fácil de ser vivido. As pessoas comuns estão em primeiro lugar nas coisas que ele faz; com isso ele acaba correndo o risco de ofender as elites. Isto, também, faz dele um radical na tradição católica: ele está tirando o controle da Igreja das mãos dos príncipes e dando-o de volta às pessoas comuns, colocando-as em primeiro lugar.
O anúncio do papa nessa terça-feira (1º) de que ele vai dar a todos os sacerdotes o poder de perdoar o aborto foi típico. Não houve novidade alguma nele em termos teológicos ou legais, e o que foi apresentado deixou os canonistas sem respostas. Porém, o anúncio trouxe uma mensagem simples, ao modo de Jesus Cristo, ao considerar a mulher que escolhe pelo aborto como sendo uma vítima, antes de tudo, e ao convidá-la a se libertar pelo perdão de Deus.
Com este anúncio ele estava limpando o caminho a Deus, tornando mais fácil se acessar a cura pela misericórdia. E aqui chegamos ao cerne de sua reforma. Convencidos de que a conversão acontece quando experimentamos diretamente aquele amor misericordioso, quer através da caridade, do perdão, quer através da preocupação com os pobres, Francisco deseja que a Igreja coloque essa misericórdia na frente e no centro da sua oferta para a humanidade. Será isto radical, novo ou revolucionário?
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O que está mudando com Francisco, o reformador? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU