23 Novembro 2016
“A misericórdia de Francisco não tem apenas um valor eclesial e espiritual, mas também social e político, em sentido global. O pontificado de Francisco deve ser lido com as duas palavras-chave: misericórdia e pobres.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado no sítio L’Huffington Post, 22-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em um pontificado tão pouco inclinado ao pessimismo agostiniano, quando comparado com o pontificado muito agostiniano de Bento XVI, o Papa Francisco intitula a sua carta apostólica pós-jubilar tomando uma imagem que Santo Agostinho utiliza no seu comentário ao Evangelho de João, na passagem do encontro entre Jesus e a adúltera: “a mísera e a misericórdia”.
A carta apostólica Misericordia et misera é muito mais do que um balanço do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. É um argumento teológico em favor da redescoberta da supremacia da misericórdia de Deus sobre a lei (também a lei da Igreja). Mais uma vez, Francisco evidencia a necessidade de que a Igreja preencha a distância entre o Deus de Jesus que ela anuncia e as práticas e leis eclesiásticas: “Nenhum de nós pode pôr condições à misericórdia”.
O bispo de Roma explica que, durante o Jubileu, a Igreja não só se fez anunciadora dela, mas também que a própria Igreja aprendeu experiencialmente a misericórdia. Francisco fala da misericórdia como particularmente importante no mundo dominado pela tecnologia e pelos “paraísos artificiais” (veja-se a realidade virtual), em que a despersonalização das relações torna menos capaz de perdoar e de se deixar perdoar.
A misericórdia faz parte da “conversão pastoral” (ideia-chave para Francisco), ao qual a Igreja é chamada. A carta contém um apelo a voltar à confissão sacramental, que “precisa voltar a reencontrar o seu lugar central na vida cristã”. A misericórdia de Deus é encontrada nas pessoas (não só, mas também na confissão sacramental do sacerdote). Francisco parece advertir as mulheres e os homens de hoje que confessar os próprios pecados apenas para si mesmos significa se confiar a um juiz que é mais misericordioso apenas na aparência.
A ênfase de Francisco na misericórdia implica encorajar o sacramento da reconciliação, tornando-o mais abundante. Isso tem algumas consequências práticas que o documento anuncia, como a decisão de Francisco de declarar válida e lícita, mesmo depois do fim do jubileu, a absolvição recebida de padres da Igreja cismática ultratradicionalista de Dom Marcel Lefebvre (a Sociedade São Pio X).
É um exemplo de como a misericórdia também tem consequências eclesiológicas. Essa decisão da Misericordia et misera continua o diálogo entre Francisco e o cisma católico de direita ocorrido há 40 anos: é um dos modos de Francisco de desideologizar o debate interno à Igreja e de despotencializar o imaginário do cisma que alguns extremistas anti-Francisco (veja-se o cardeal Raymond Leo Burke) parecem acariciar.
Não menos interessante é a extensão da faculdade de confessar o pecado de aborto (para as mulheres e para todos aqueles que cooperam) a todos os padres (tradicionalmente era um pecado cuja absolvição era reservada aos bispos e a padres delegados por eles). Essa nova norma não muda a situação em alguns países, onde todos os padres já tinham essa faculdade (como nos Estados Unidos e no Canadá).
Mas a Misericordia et misera, indiretamente, envia uma mensagem àqueles católicos que, em algumas realidades eclesiais (como nos Estados Unidos), veem no aborto um crime que leva à excomunhão por tempo indeterminado, não só das mulheres, mas também de todos aqueles que se desviam dos slogans pro-life (que prejudicaram a luta contra a chaga do aborto pois deslegitimaram os esforços daqueles que não propõem a repenalização do aborto, mas uma rede de segurança social que não deixe as mulheres sozinhas em situações dramáticas).
Nesse sentido, é um documento que também tem um significado teológico-político em alguns contextos. A misericórdia de Francisco não tem apenas um valor eclesial e espiritual, mas também social e político, em sentido global. O pontificado de Francisco deve ser lido com as duas palavras-chave: misericórdia e pobres. Essa carta fala de um “caráter social da misericórdia” e de uma “cultura da misericórdia”.
Isso é particularmente interessante porque, por um lado, Francisco aborda a questão social da pobreza e da marginalização a partir do ponto de vista das obras de misericórdia, mantendo-se longe de uma perspectiva da teologia da libertação clássica, de “empoderamento” dos pobres. Por outro lado, Francisco oferece uma clara alternativa ao populismo que ruge, cuja fase suprema é, até agora, o trumpismo (que recebeu os votos de não poucos católicos nos Estados Unidos): a uma cultura da recriminação, do complô, da criminalização do adversário, ele responde com a cultura de misericórdia que não se esquece dos pobres.
São dois, por fim, os elementos mais interessantes e consequentes, do ponto de vista da postura da Igreja do Papa Francisco diante do espírito do tempo. O primeiro é a ênfase na “cultura da misericórdia”, que, aos ouvidos de muitos católicos, vai soar como uma clara alternativa à “cultura da morte versus cultura da vida” típica do pontificado de João Paulo II (e de alguns teólogos, à época, próximos dele e promovidos por ele, que, não por acaso, estão agora entre os opositores de Francisco, como o cardeal Carlo Caffara).
Isso terá um impacto sobre a percepção da Igreja como protagonista das “cultural wars” em torno das questões morais, especialmente em países como os Estados Unidos. A “cultura da misericórdia” não nega a ideia de que haja uma “cultura da morte” (apenas para citar dois exemplos: a eutanásia está se tornando legal em muitos países, e as leis sobre o aborto tendem a se tornar mais radicais), mas nega que a melhor opção para a Igreja seja a denúncia apocalíptica da cultura contemporânea: “Este é o tempo da misericórdia”. Francisco ensina com o exemplo e evangeliza por atração: as obras de misericórdia têm uma qualidade radicalmente “performativa” que nenhum documento escrito pode ter.
O segundo elemento interessante que conecta misericórdia e pobres é a decisão de celebrar o novo “Dia Mundial dos Pobres” no 33º domingo do ano litúrgico, ou seja, o domingo antes da Festa de Cristo Rei, solenidade litúrgica instituída por Pio XI em 1925 que celebrava a soberania de Cristo e da Igreja acima das culturas seculares e das jurisdições políticas.
Francisco antecipa essa festa, nascida como manifesto antimoderno, para inscrevê-la no desígnio de uma Igreja dos pobres e para os pobres. É um dos tantos exemplos do retorno do Papa Francisco ao coração do Concílio Vaticano II e ao “remédio da misericórdia” de João XXIII. No mundo moderno, a Igreja não tem outra aspiração senão servir, como Jesus fez.
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Misericórdia e pobres: as palavras-chave do pontificado de Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU