19 Novembro 2016
“A acolhida não apenas é possível, mas também necessária, se ainda quisermos acreditar que o sonho europeu tem futuro e um sentido de existir. Caso contrário, os valores da democracia e da igualdade de direitos que constituíram o fundamento do projeto europeu serão definitivamente um desperdício de papel.”
A opinião é do chef italiano Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, em artigo para o jornal La Repubblica, 14-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Vale da Bekaa, no Líbano, é uma planície que se estende por 120 quilômetros de norte a sul, e vai de oito a 14 quilômetros de leste a oeste. Ele se encontra a leste de Beirute, cercado por duas cadeias de montanhas que, no inverno, geralmente estão cobertas de neve, mas que, nesta estação, ainda são afetadas pela seca do verão. É um dos pulmões agrícolas do Líbano, e, para chegar lá a partir da capital, atravessamos cultivos de frutas, trigo, milho, videiras, hortaliças e algodão.
Esse vale foi palco de todas as grandes convulsões políticas que esse país atravessou nos últimos 50 anos e, recentemente, dada a sua proximidade com a fronteira síria, foi o ponto de chegada de muitíssimos refugiados e deslocados, em fuga da guerra e das violências das partes em conflito, para buscar um lugar seguro para se refugiar, à espera de voltar para casa.
Até aqui, aparentemente, nada de novo em relação ao que vemos cotidianamente nas nossas costas e fronteiras europeias. O que impressiona, no entanto, aqui, é a proporção do fenômeno. O Líbano é um país de cerca de 4,5 milhões de habitantes, do tamanho da Sardenha, e hoje hospeda mais de um milhão de sírios (alguns estimam que eles chegam a 1,5 milhão), que se somam aos mais de 300 mil palestinos refugiados, como resultado dos conflitos no Oriente Médio dos últimos 30 anos.
As contas são simples de fazer: significa que um em cada três habitantes no Líbano é deslocado. Poderíamos pensar que a crise é enorme e gera tensões sociais incontroláveis e explosivas. Não é assim.
De fato, o governo libanês optou, desde o início da crise síria até o fim de 2015, por deixar as fronteiras abertas e por acolher os refugiados, permitindo-lhes entrar no país e permanecer lá, reconhecendo o status de deslocados (uma situação que lembra aquilo que aconteceu na Itália durante a última Guerra Mundial, quando os cidadãos se refugiavam na zona rural para fugir dos bombardeios) e pondo de pé, com a ajuda essencial das agências internacionais (o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, em particular) uma máquina de assistência que, embora com muitas dificuldades, funciona.
Uma acolhida que nasce, portanto, a partir de uma escolha política clara e que foi seguida pela reação positiva da população libanesa, que não cedeu a instintos de fechamento, não invocou antigas rivalidades (não se deve esquecer que, até pouco mais de uma década atrás, o exército sírio ainda ocupava a parte oriental do país), demonstrando, ao contrário, grande solidariedade.
São muitos os voluntários que encontramos e que, em todo o país, trabalham para enfrentar as necessidades urgentes dos refugiados, que se disponibilizam para serem os seus patrocinadores (e, assim, garantir que eles possam permanecer no país), que lhes abrem linhas de crédito para as despesas primárias. Isso também condiciona as características dos assentamentos em que os refugiados vivem, que não estão concentrados em campos em sentido clássico, mas, ao contrário, são livres para se mover no Líbano.
O assentamento que visitamos em Saadnayel é um aglomerado empoeirado que hospeda cerca de 60 famílias em alojamentos improvisados, mas incrivelmente dignos. Famílias cujos relatos e cujos olhares confirmam aquela que é uma constante da história: quem paga o preço mais alto das guerras e das crises políticas sempre são os mais pobres.
A maioria das pessoas com quem pudemos falar, de fato, na Síria, eram agricultores e pastores, como Khaled, que partiu com a esposa, Asma, e com os seus quatro filhos e que hoje, com outros dois filhos nascidos no Líbano, nos diz que o seu único desejo é "viver e poder dar aos meus filhos uma vida digna e respeitável".
Ver de perto essa realidade só pode nos obrigar a refletir sobre as discussões que estamos enfrentando na Europa em torno do tema dos migrantes. Como podemos pensar em construir muros e barreiras, como é possível aceitar a retórica das direitas que falam de invasão, de fluxos incontroláveis, de impossibilidade de acolhida quando, diante de toda a população europeia, os números de migrantes são irrisórios?
A acolhida não apenas é possível, mas também necessária, se ainda quisermos acreditar que o sonho europeu tem futuro e um sentido de existir. Caso contrário, os valores da democracia e da igualdade de direitos que constituíram o fundamento do projeto europeu serão definitivamente um desperdício de papel.
Vale a pena lembrar que justamente o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados nasceu para enfrentar a crise dos refugiados húngaros depois dos acontecimentos de 1956. Hoje, a Hungria está na vanguarda dos países que se recusam a abrir as suas portas.
E, então, devemos mencionar, como fez o Papa Francisco há pouco mais de uma semana, aquilo que o arcebispo Jerônimo da Grécia declarou ao visitar o campo de refugiados de Moria em Lesbos: "Quem vê os olhos das crianças que encontramos nos campos de refugiados é capaz de reconhecer imediatamente, na sua inteireza, a ‘falência’ da humanidade".
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No coração do Líbano, o drama e o sonho dos pastores refugiados. Artigo de Carlo Petrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU