28 Outubro 2016
"Para Francisco, pensar nos objetos, nas coisas, impede de se pensar no próximo e pensar em Deus. Riquezas, desejo de posse, desejo de sucesso tornam-se como um cobertor que cobre a alma e a impede de se mostrar."
A opinião é da historiadora italiana Chiara Frugoni, especialista da Idade Média e da história da Igreja. É uma das maiores especialistas na vida de São Francisco de Assis. É autora de diversos livros, como Invenções da Idade Média. Óculos, livros, bancos, botões e outras invenções geniais (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007).
O artigo foi publicada na revista Exodus, n. 3, de julho-setembro de 2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Doar é um gesto a ser manejada com muita atenção e, como mostrou Marcel Mauss em um livro famoso, "Ensaio sobre o dom. Forma e motivo da troca nas sociedades arcaicas", o mecanismo do dom requer três ações: dar, receber (é preciso aceitar o dom) e retribuir.
Doar cria uma situação de desequilíbrio entre quem doa e quem recebe, daí a necessidade de retribuir, para restabelecer o equilíbrio. Não é por acaso que a palavra gift, em inglês, significa "dom, presente" e, em alemão, significa "veneno".
Portanto, até mesmo no gesto de se privar de qualquer coisa que se possui, um perigo é inerente. Mais: um igual mecanismo de desequilíbrio sempre ocorre entre quem possui e quem não possui, levado a desejar, este último, aquilo que vê possuído pelo outro, estando desprovido disso. Então, quem possui deve, acima de tudo, se defender e, muitas vezes, agredir.
O bispo Guido I, que acompanhava com benevolência o início da fraternidade do jovem Francisco – conta a Legenda dos Três Companheiros, 9, 35 – disse um dia a Francisco: "A vida de vocês me parece dura e áspera, porque vocês não possuem nada neste mundo. Respondeu o santo: Senhor, se tivéssemos bens, deveríamos dispor também de armas para nos defender. É da riqueza que provêm questões e disputas, e assim é impedido de muitas maneiras tanto o amor de Deus quanto o amor ao próximo: por isso, não queremos possuir qualquer bem material neste mundo".
Possuir, portanto, envolve apegar-se às coisas, concentrar os próprios pensamentos, a própria emotividade na acumulação, contrariando o preceito evangélico (Mt 6, 19-21): "Não ajuntem riquezas aqui na terra, onde a traça e a ferrugem corroem, e onde os ladrões assaltam e roubam. Ajuntem riquezas no céu, onde nem a traça nem a ferrugem corroem, e onde os ladrões não assaltam nem roubam. De fato, onde está o seu tesouro, aí estará também o seu coração".
Mas, acima de tudo, considera Francisco, pensar nos objetos, nas coisas, impede de se pensar no próximo e pensar em Deus. Riquezas, desejo de posse, desejo de sucesso tornam-se como um cobertor que cobre a alma e a impede de se mostrar.
O que é típico de Francisco, porém, não é acusar aqueles que se comportam de modo diferente e pedir que os outros mudem por serem julgados como culpados. Francisco pede que os freis deem o bom exemplo, mostrem que é possível que uma comunidade viva "sem nada de próprio", com alegria e trabalhando de forma a garantir a sobrevivência e não ser um fardo para a sociedade.
No início, todos os freis trabalhavam, e havia freis alfaiates, ferreiros, servos nas casas, agricultores, sempre prontos para ajudar. Mas nunca deviam aceitar dinheiro em troca.
Francisco, diz-nos a Legenda de Perúgia, cap. 111, muitas vezes repetia aos coirmãos: "Eu nunca fui um ladrão. Quero dizer que as esmolas, que são a herança dos pobres, eu sempre peguei menos do que precisasse, a fim de não prejudicar a parte devida aos outros pobres. Fazer o contrário seria roubar". (E hoje, em vez disso, falamos de ordem mendicante!)
Parece-me que deve ser enfatizada a expressão "os outros pobres". Aqui vemos uma profunda novidade de Francisco. A Igreja desde sempre ajudou os pobres, mantendo, contudo, a sua estrutura e os seus privilégios próprios. Francisco não ajuda os pobres. Ele quer, com os seus companheiros, fazer-se pobre, compartilhando a incerteza psicológica e física de quem nada possui.
Para Francisco, porém, a pobreza não significa apenas renúncia à posse dos bens; para ele, é renúncia a todos os meios e instrumentos de poder, e está sempre conectada em a submissão: na sociedade da época de Francisco, "pobre" não é apenas o contrário de "rico", mas também de "poderoso". Francisco queria seguir o caminho de Cristo pobre e submisso, compartilhando a vida dos outros pobres. O santo se sentia em paz porque pretendia apenas dar um testemunho de vida cristã radical, sem julgar, condenar ou reforma: era tarefa de Deus atuar e influir na vida concreta das pessoas.
A proposta de Francisco teve uma temporada curta, quanto à atuação prática, porque todos os freis que o sucederam não tinham o temperamento, a virtude, a coragem dos primeiros companheiros. Mas ela permaneceu como um grão de mostarda que espera a boa terra. Nos tempos de Francisco, ela a encontrou em Clara, a mais fiel e corajosa apoiadora do projeto do mestre e amigo, a ponto de pedir à Santa Sé um único e surpreendente privilégio, o da Altíssima pobreza.
Para Clara, era muito importante manter intacto o princípio da mais absoluta pobreza, a rejeição de todos os bens, contando com o trabalho manual, entendido como serviço em benefício do próximo. Clara e as companheiras fiavam ininterruptamente a seda e o linho, para depois, confeccionar tecidos para os paramentos litúrgicos, como os corporais (um dos elementos para a celebração eucarística). Clara, portanto, pediu a Inocêncio III, em 1216, uma isenção bem estranha: não ser obrigada a receber propriedades e heranças para a sua subsistência e a de suas companheiras.
O documento, mais tarde confirmado por Gregório IX, foi conservado com grande atenção durante toda a vida de Clara, que não só não queria depender da Santa Sé e ser condicionada por ela nas escolhas de vida, mas também não queria que nem ela nem suas companheiras se ocupassem com terras e rendas. A mente devia permanecer desvinculada de todas as preocupações materiais, livre, para poder ter tempo para meditar e colocar em prática os preceitos do Evangelho.
Em uma vida livre de preocupações materiais, a pobreza, não vivida como uma condição imposta por um destino malvado, mas como escolha consciente, permite que a alegria se expanda, assim como a apreciação pela criação, a alegre expectativa do paraíso. Clara, lembram as companheiras no processo de canonização, como pessoa "sempre era allegra nel Signore et mai se vedeva turbata" [estava sempre alegre no Senhor e nunca se via perturbada].
Com o seu estilo vigiado e intenso, ela escreveu em uma carta a Inês da Boêmia, para exortá-la, apesar das pressões papais, a não ceder em relação ao compromisso com a pobreza: "Com corrida veloz, passo leve, pé firme, de modo que os teus passos não levantem poeira, avança segura, alegre e animada no caminho de uma pensativa felicidade".
Palavras muito bonitas com as quais eu me atrevo a exortar a pegar novamente nas mãos o livreto das cartas de Clara! (da editora Adelphi, editado por Giovanni Pozzo e Beatrice Rima).
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Pobreza desejada e vivida. Artigo de Chiara Frugoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU