17 Agosto 2016
Perguntas em aberto depois da renúncia de Bento XVI: para o secretário da Signatura Apostólica, renomado canonista, a distinção entre "munus" e "ministerium" não se sustenta no caso do pontífice.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 16-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Existe apenas um papa. Bento XVI é o emérito." Em junho passado, durante o voo de volta da Armênia, Francisco tinha respondido de modo claro e preciso a uma pergunta sobre as teorias referentes à possibilidade de um ministério papal "compartilhado".
A clamorosa e histórica decisão da renúncia do Papa Ratzinger, o primeiro pontífice a renunciar por velhice, e a interpretação de algumas das suas palavras e dos seus colaboradores alimentaram, ao longo dos últimos três anos, uma confusão de hipóteses.
Houve estudiosos que propuseram chaves de leitura temerárias: Bento XVI, de fato, não teria renunciado ao múnus petrino, mas apenas ao seu "exercício ativo". Teorias que, na realidade, avalizam a ideia da existência de dois papas e de um ministério de Pedro "alargado", cavalgadas pela ala mais agitada e sedevacantista dos adversários de Francisco.
O Vatican Insider pediu um comentário sobre isso ao bispo Giuseppe Sciacca, secretário da Signatura Apostólica e auditor-geral da Câmara Apostólica, ou seja, o especialista jurídico do escritório que gere a Sé Vacante.
Eis a entrevista.
O que o senhor pensa sobre o papado "alargado" e a distinção entre múnus petrino e exercício do ministério, que prefigura a existência de dois papas, um que exerce o ministério, e o outro, o emérito, que não o exerce mais, ainda conservando, porém, o "munus"?
Gostaria de começar dizendo que a distinção entre "munus" e "ministerium" é impossível no caso do papa.
Porém, há quem observe que é possível encontrar eco disso na constituição conciliar Lumen gentium, onde se distingue entre o múnus episcopal e o seu exercício...
A distinção que se encontra na Lumen gentium distingue entre múnus e exercício da potestas em matéria de ofício episcopal. Essa distinção no ofício episcopal se fundamenta na duplicidade da transmissão do poder: sacramental, quanto à ordem sagrada e à consagração episcopal que sobre aquela se incardina (múnus); jurídica, quanto à concessão da missão canônica e a consequente liberdade no seu exercício (potestas). Graças a essa distinção – que corresponde, substancialmente, à distinção clássica entre potestas decorrente da ordem sagrada e potestas de jurisdição – também se concebe a figura do bispo titular, que, por força da consagração episcopal, recebe integralmente a plenitude dos poderes, e não só o de santificar, mas também os ofícios de ensinar e de governar, ativados, porém, pela missio canônica se e quando conferida pelo pontífice. E ainda, por força de tal distinção entre potestas ordinis e potestas iurisdictionis, admite-se a figura do bispo emérito, que, tendo perdido a potestas iurisdictionis, conserva o múnus episcopal que tinha sido transmitido por via sacramental, não mais livre no exercício, no entanto, depois da renúncia ocorrida.
Na verdade, a ratio que motivou a previsão legal do cânone 185 do Código em vigor, que institui a figura do emeritado para qualquer um que tenha assumido um ofício na Igreja e, depois, "por ter atingido o limite de idade ou por renúncia aceita, deixa-o" , eu a definiria como "personalista" ou "afetiva", porque não se quer "apagar" ou esquecer aquela parte da vida consumada naquele determinado serviço e, de alguma forma, permanece-se ligado a ela, embora nominalmente, mesmo que desprovido do munus regiminis ligado àquele ofício. Mesmo assim, o título e a instituição do emeritado não deixam de dar origem a uma espécie de duplicação ou multiplicação de imagem. O pároco emérito se soma ao efetivo e, assim, o bispo emérito, o professor emérito ao ordinário etc. De fato, não é sem significado, falando do bispo emérito, que o Código de Direito Canônico preveja a possibilidade para ele de conservar a habitação na diocese, a faculdade de participar, com voto deliberativo, nos concílios particulares e o direito de ser enterrado na igreja catedral.
Essa mesma distinção pode ser aplicada ao bispo de Roma?
Não. Na minha opinião, tudo isso não pode ser referido ao ofício do pontífice.
E por que não se aplica, na sua opinião?
Acima de tudo, porque a sucessão petrina, por causa do poder singularmente concedido a Pedro por Cristo, é absoluta e irrenunciavelmente singular, por constituição divina da Igreja. O cânone 331 afirma: "O Bispo da Igreja de Roma, no qual permanece o múnus concedido pelo Senhor de forma singular a Pedro, o primeiro dos Apóstolos, para ser transmitido aos seus sucessores...". O pontífice, portanto, é "sucessor de Pedro" e não só, de modo orgânico, junto com os bispos, "sucessor dos apóstolos". Isso envolve a unicidade da sucessão petrina, que não admite no seu interior nenhuma outra distinção ou duplicação de ofícios, embora não mais livres no exercício. Ou uma denominação de natureza meramente "honorária" ou nominalista, mesmo que seja legitimamente necessário recordar que, no ordenamento canônico, "numquam fit qaestio de meris nominibus", nunca se faz questão de meros nomes, sempre correspondendo, de fato, o nome a algo (nomen est omen).
O que o senhor pensa, então, sobre a tese segundo a qual Bento XVI teria renunciado ao ministerium petrino, mas não ao munus?
A impossibilidade de aplicar ao papa a distinção prevista no caso do bispo emérito fica evidente a partir da modalidade diferente de transmissão da sucessão apostólica para os bispos e da sucessão petrina para o pontífice. De fato, lê-se no cânone 332: "O Romano Pontífice, pela eleição legítima por ele aceita junto com a consagração episcopal, adquire o poder pleno e supremo na Igreja. Consequentemente, o eleito para o pontificado supremo, se já estiver dotado com caráter episcopal, adquire o referido poder desde o momento da aceitação. Se, porém, o eleito carecer do caráter episcopal, seja imediatamente ordenado Bispo". Isso significa que a modalidade da transmissão da sucessão petrina é exclusivamente jurídica e confere a plenitude da suprema jurisdição. A norma é de direito divino e, portanto, não subjaz a nenhuma outra hermenêutica. Dentro da plenitude da jurisdição (potestas), não há qualquer outra subdistinção entre munus e exercitium muneris, entre o múnus e o seu exercício. O bispo de Roma é identificado no seu ofício em razão apenas da eleição em conclave, e o seu ofício não é um "oitavo sacramento" – no sentido de um episcopado especial, como mencionado por Karl Rahner no seu tempo, que, porém, abriu mão imediatamente a tal ideia originalíssima – nem é transmitido, de modo algum, por via sacramental. O ofício do Romano Pontífice se incarna no múnus episcopal anterior e independentemente conferido. No caso de o eleito ainda não ser bispo, é requerida imediatamente a sua consagração.
Portanto, a dupla modalidade de transmissão para os bispos do múnus episcopal, por um lado, e da potestas, de outro, não se aplica ao papa?
O múnus petrino é única e exclusivamente um primado de jurisdição. Não se pode renunciar apenas ao exercício desse primado, conservando "algo" de residual, como se a potestade pontifícia conferisse ao eleito em conclave algum caráter sacramental especial e permanente mesmo depois da rendição.
O que resta, então, ao papa que decide renunciar?
Resta-lhe o múnus episcopal, que, no seu momento, ele já tinha recebido sacramentalmente quando foi ordenado bispo. A renúncia ao ofício petrino é o instrumento jurídico que leva à perda da jurisdição pontifícia, que, como vimos, tinha sido conferida por via jurídica. Nenhuma distinção interna a essa renúncia pode ser identificada ou argumentada. A renúncia, se for posta em prática, diz respeito total e somente à jurisdição, e não ao múnus episcopal, que, obviamente, permanece. Trata-se do caráter sagrado de que falam os concílios de Trento e o Vaticano II, indelevelmente impresso com a ordenação episcopal.
Porém, o Código de Direito Canônico, no cânone 332, também fala de munus petrinum...
Mas isso não pode, de modo algum, ser interpretado como uma vontade do legislador de introduzir, em matéria de direito divino, uma distinção entre munus e ministerium petrino. Distinção que, aliás, é impossível.
O que o senhor pensa, então, da denominação de "papa emérito"?
A expressão "papa emérito" ou "pontífice emérito" pareceria configurar uma espécie de potestade pontifícia distinta de outro tipo de exercício dela. Um exercício não identificado, nunca definido em qualquer documento doutrinal e de compreensão impossível, que teria sido objeto de renúncia. Argumentando desse modo, parte da potestade pontifícia permaneceria ao emérito, mesmo que, diz-se, interdita no exercício. Mas a interdição do exercício daquilo que, por sua natureza, é essencialmente livre no exercício (potestas) é um absurdo. Por isso, parece ser evidente a irracionalidade dessa tese e os possíveis erros interpretativos que dela derivam.
O senhor preferiria o título de "bispo emérito de Roma" para o papa que renuncia?
Não. Eu considero que essa solução seria igualmente problemática, embora alguns renomados canonistas a tenham defendido: papa, pontífice ou bispo de Roma, de fato, são substancialmente sinônimos. O problema não é o substantivo, "papa" ou "bispo de Roma", mas o adjetivo "emérito", que leva a uma espécie de duplicação da imagem papal.
Que hipóteses o senhor preferiria ou gostaria de sugerir?
Acima de tudo, deixe-me começar dizendo que eu não estou entre aqueles que desejam que a renúncia ao papado se torne um costume. Ao contrário! Como pura hipótese de trabalho, se quiséssemos prefigurar para o pontífice renunciante uma possível previsão legislativa para o futuro, a solução mais congruente me pareceria ser a da concessão do título de "ex-Sumo Pontífice". Ou a de prever a reinserção do renunciante no Colégio Cardinalício, na ordem dos bispos, por parte do novo papa. E, para sublinhar a "singularidade" do novo titular, na hipótese em que todas as sedes suburbicárias estivessem ocupadas, inseri-lo – ad personam – entre os patriarcas orientais que são membros do Colégio Cardinalício. Salvo meliori iudicio, como sempre costumamos concluir os pareceres que nós, consultores, damos aos dicastérios.
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"Não pode existir um papado compartilhado." Entrevista com Giuseppe Sciacca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU