11 Julho 2016
A ação missionária do cristianismo, em Paulo, desenvolveu-se de forma magistral, utilizando os recursos de seu tempo atinge um aspecto muito particular em seu percurso: a universalidade do Evangelho. Ele dá certa feição ao cristianismo nascente e subsequente. Ele percorre muitos povoados e encontrando “adesão” organiza-os em comunidades. Mas nutre o anseio de chegar às metrópoles de seu tempo para que o Evangelho se espraia com mais facilidade, encontrando ressonância na vida das pessoas.
Quando chega a Atenas (At 17, 16-34), percebe que os gregos são pessoas religiosas, fabricaram para si muitos deuses e os expressam através de suas imagens/esculturas. Ele elogia suas devoções. Mas, vê no meio do panteão de divindades um espaço para a devoção no “deus desconhecido”. Ele começa a falar do Evangelho. Seu auditório não fica muito satisfeito. Para melhores explicações, eles o levam ao Areópago, lá com muita perspicácia narra à história de Deus, que ao assumir a condição humana, em Jesus de Nazaré, extrapola as lógicas de poder e de dominação.
Por causa disso, ele é morto, mas Deus o ressuscita dentre os mortos. Eles o acompanham até esse ponto. São simpáticos a “imagem” de um Deus, que não habita em santuários construídos por mãos humanas, nem precisa de “capacho” para servi-lhe, que a tudo perpassa e fecunda, mas quando isso torna-se carne e no escândalo da cruz, e a superação pela ressurreição: é o suficiente para não possuir mais a atenção de seus ouvintes. É interessante que a tradução da Bíblia Pastoral, em seu subtítulo entende essa perícope como “A dinâmica da evangelização”, que na verdade, ocorre uma incursão missionária sem frutos significativos, completamente frustrante e ineficiente.
A intuição paulina de explorar a imagem do “deus desconhecido” é muito interessante, mas sem efeito para aquela ocasião. De certa forma, isso desvela um problema latente nas estruturas de missão, sobretudo quando se fala em inculturação da fé, ou seja, como a fé cristã – no nosso caso - pode ser “transmitida” desde uma determinada cultura, tornando-se relevante e consonante com os elementos que são próprios? Nisso consiste, o risco de uma sobreposição equivalente de experiências singulares, dizer que uma experiência “x” é a mesma que “y”: Iemanjá não é Maria, e vice-versa. O desafio é viver e pensar uma fé na interação sem aniquilar aquilo que lhe é constitutivo.
Em meio ao universo plural da religião, convive-se com uma tentação, a do henoteísmo (espécie de monolatria, ou seja, a eleição de uma divindade única sem negar outras divindades), que por sua vez é insuficiente para pensar o monoteísmo, que exige uma compreensão panenteística: Tudo habita em Deus e Deus habita em tudo. Não utilizo o verbo “estar”, que facilmente enlaça e deixa o conceito estático, e sim “habitar” porque nele emerge uma forma de ser no aconchego de estar com, num estilo de vida diferenciado (hábito). O caminho está aberto: precisa de muita reflexão e pesquisa para respostas plausíveis e responsáveis ao como abrir-se ao outro sem negar a si mesmo?
“Eu sei que verdade eu não sou dono,
Eu sei que não sei tudo sobre Deus.
Às vezes quem duvida e faz perguntas
É muito mais honesto do que eu”
(José Fernandes de Oliveira)
O “Deus desconhecido” é a elaboração de uma imagem. Nela contém os traços principais de quem a compõem e do lugar de sua composição. Aniquilaram-se as singularidades no anseio ilimitado do “universal”. Nesse caso, a arte auxilia muito na forma de conceber essa tensão entre o local e o global, entre o particular e o universal, pois sua composição está gestada nas raízes mais profundas do local e do particular. É a partir disso que grandes obras ou obras clássicas ganham relevância global e universal. O conceito estético é ampliado: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia” (Leon Tolstoi). E mesmo num mundo imaginado e perfeito, sobressaem os contornos do drama e do fascínio de ser gente em um determinado lugar e situações.
Na pós-modernidade, os traços de Deus precisam ser recolocados, sobretudo levando a sério uma realidade vaporosa e de difícil “captação”. É preciso reinventar e ouvir melhor os “sinais de cada tempo”. Não se encontra o conforto de uma experiência hegemônica, que inclusive permitia o deleite de alguns privilégios. Era mais confortável “falar” de Deus em tempos atrás, do que hoje, apesar da sociedade permanecer eminentemente religiosa. Uma imagem equivocada de Deus torna-se facilmente conteúdo e forma de um sistema de opressão. Nesse tempo intermediário, em desenvolvimento, supera-se uma imagem metafísica de Deus, um Deus distante e sucumbido na sua “essência-substância” inacessível a meros mortais, que almejam uma “vida boa”.
A exigência de uma “nova imagem” precisa contemplar uma fusão de horizontes. Não é suficiente permanecer nos “velhos esquemas”, mesmo com roupagens atrativas. É preciso deixar morrer, ter a coragem de dizer adeus, curtir esse momento de despedida e de luto para prosseguir compondo o exercício de sempre “dizer” melhor Deus. Sem recorrer às estruturas de poder e dominação, ou seja, conceber uma linguagem não autoritária e relacional, que valoriza a pluralidade na sua singularidade irredutível. E não se presta a ideologias permissivas para a vida como um todo. Contudo, cada linguagem paulatinamente irá identificar seus códigos, critérios, significantes e significados para expressar seus contextos. Elas não são imunes e neutras.
O “Deus desconhecido” assim o É, no seu mistério inesgotável. Ele precisa morrer a cada dia nas falsas imagens que Dele fazemos, nos ídolos que construímos a nossa moda, para que Ele ressurja como imagem límpida e saudável. O critério é simples para saber se nossa imagem de Deus está adequada: perceber seus frutos, ou seja, passar pelo crivo de uma prática relevante e saudável. Tal imagem de Deus produz um efeito positivo, auxiliando as pessoas buscarem ser melhores, abrindo espaço para uma ação humana na justiça e no direito para todos?
O “Deus desconhecido” é encontrado no testemunho de pessoas que creem. Quando falamos de Deus, sempre a experiência tem a primazia. Entretanto, uma experiência aprofundada de Deus precisa perpassar pelo testemunho das diversas tradições religiosas. Isso corresponde à confiança num Mistério que extrapola qualquer experiência singular desde um lugar particular. Não está em questão a busca por uma imagem certa de Deus, mas descobrir-se como pessoas que vivendo sua fé num Mistério, encontram seu sentido para a existência pessoal e comunitária. O encontro dialogal é um método importante para o “desvelar” desse Deus de muitos caminhos, nomes e povos.
As resistências são grandes e as desculpas facilmente faz-se ouvir: perder a identidade e viver na incerteza. Isso exige um processo contínuo de mudança/transformação. Ela encontrou boas-vindas na teoria, mas não teve a oportunidade de ser bem acolhida na prática. Até almeja-se e sabe-se de sua necessidade, mas permanece-se na manutenção do mesmo, dos velhos esquemas, suavizados no temor de uma incerteza. São apenas paliativos para uma “morte humanizada”, prolongada por tempo indeterminada com auxílio de aparelhos. Existem muitos(as) aventureiros(as) desse caminho inter-religioso, que inclusive produziram muitos frutos. Um diálogo autêntico não obscurece as singularidades, mas as potencializa como expressão genuína da própria aventura em Deus.
Felix Wilfred, no Cadernos Teologia Pública, edição 63, busca refletir sobre a crise da narrativa de Deus, sobretudo desde a experiência cristã, perguntando-se se o diálogo e o intercâmbio com outras tradições religiosas poderá ser um auxílio necessário para uma superação da crise, como uma descoberta qualificada de uma nova narração de Deus.
O texto está estruturado da seguinte forma:
A crise da concepção cristã de Deus
O papel do diálogo inter-religioso
A abordagem mística de Deus
A fluidez dos limites religiosos
O Deus pós-metafísico em uma sociedade pós-secular
Para acessar o texto: clique aqui.
Felix Wilfred fez seus estudos superiores na Itália e na França. Atualmente é diretor-fundador do Asian Center of Cross-Cultural Studies (ACCS) e presidente da revista Concilium – The International Review for Theology. Foi professor na State University of Mandras, membro da Comissão Teológica Internacional e professor visitante em diversos lugares. Suas publicações mais recentes são:
Margins: Site of Asian Theologies (New Delhi: ISPCK, 2008)
Dalit Empowerment (Bangalore: NBCLC Publication, 2007)
The Sling of Utopia: Struggles for a Different Society (Delhi: ISPCK, 2005)
Asian Dreams and Christian Hope - At the Dawn of the Millennium (Delhi: ISPCK, 2003)
On the Banks of Ganges (Delhi: ISPCK, 2002).
Por Jéferson Ferreira Rodrigues
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“O Deus desconhecido”: religiões e narrativa de Deus na pós-modernidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU