22 Junho 2016
O Papa Francisco é surpreendentemente franco em suas denúncias de ações dos católicos em nome de sua fé apenas para manter as aparências.
E isso se repetiu recentemente, em um novo documento sobre os movimentos eclesiais e em declarações sobre o matrimônio. Em ambos os casos, ele demonstrou um contato agradável e direto com a realidade, o que destacou ainda mais o quanto a Igreja institucional permanece em um estado de negação.
O comentário é de Massimo Faggioli, professor de História do Cristianismo na University of St. Thomas, EUA, em artigo publicado por Global Pulse, 21-06-2016. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
A primeira notícia da semana foi a de que, após mais de três anos de silêncio, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) tinha finalmente publicado um novo documento. Trata-se de uma carta claramente inspirada pelo Papa Francisco, chamada Iuvenescit Ecclesia. A carta representa uma mudança de política e um passo em direção a uma nova relação entre movimentos eclesiais e bispos para discernir o papel desses movimentos e associações na Igreja através de um carisma particular.
No entanto, o lançamento oficial da carta na conferência de imprensa do Vaticano em 14 de junho foi um pouco decepcionante, pois todos os apresentadores eram representantes do status quo.
Estavam presentes dois cardeais que lideram os principais escritórios da Cúria Romana - Gerhard Ludwig Müller do CDF e Marc Ouellet da Congregação para os Bispos, além do principal sacerdote e teólogo do Movimento dos Focolares e presidente da universidade do grupo sediada em Florença - Padre Piero Coda (que também é membro da Comissão Teológica Internacional). E, finalmente, o painel incluiu também uma teóloga e professora da Universidade Gregoriana, em Roma - Carmen Aparicio Valls.
Por mais que parecesse um time rotineiro, o conteúdo da carta Iuvenescit Ecclesia marca uma mudança de direção. É um documento que explica como o Papa Francisco parte de alguns dos pontos teológicos que eram comuns para seus antecessores João Paulo II e Bento XVI.
Os dois pontificados anteriores viam a modernidade tão negativamente que acabavam aceitando tudo o que pudesse abalar a Igreja na batalha contra o secularismo e ajudar o catolicismo a recuperar território perdido. Isto significava aceitar e conceder liberdade especial - a partir dos bispos, e não do Vaticano - a movimentos e associações e suas expressões da eclesiologia do Vaticano II.
Eles incluíram grupos como os Focolares e a Comunidade de Santo Egídio, assim como o Opus Dei e os Legionários de Cristo e outros movimentos funcionais na restauração de uma Igreja reacionária, sob a ordenação da lei. Encher seminários era o foco, sem importar como os candidatos haviam sido recrutados ou treinados.
Ao acenar positivamente aos movimentos, João Paulo II e Bento XVI também humilharam os bispos por proibi-los de supervisionar estas novas entidades eclesiais em seus territórios. Além disso, muitas vezes nomearam bispos desses movimentos para vagas em dioceses. Esta mistura de ideologia política conservadora e sede de poder levou muitas comunidades católicas locais ao desastre pastoral. Um exemplo claro é a Arquidiocese de Lima (Peru), que nos últimos dezessete anos foi liderada pelo Cardeal Juan Luis Cipriani Thorne, um membro da Opus Dei.
Iuvenescit Ecclesia reconhece implicitamente que no passado recente houve erros nas relações entre a instituição e os novos movimentos, e que a Igreja institucional precisa ser mais cautelosa. O documento admite que os chamados carismas às vezes podem prejudicar a vida espiritual dos fiéis (como disse o Papa Francisco em outros discursos a movimentos católicos).
Esta é uma mudança na abordagem do Vaticano em relação os movimentos. E é claramente uma mudança na forma como o papa vê os movimentos, pois ele vê a relação entre a Igreja e o mundo de forma diferente. Será interessante ver o que isso pode significar concretamente e como os movimentos vão responder à nova carta. O Padre Coda dos Focolares recebeu bem o documento, o que não é surpreendente, uma vez que ele ajudou a redigi-la. Mas outros membros dos vários movimentos atingidos podem não aprovar esta mudança de política tão prontamente.
As observações do Papa Francisco na abertura da Conferência Pastoral anual da Diocese de Roma, no dia 16 de junho, na Basílica de São João de Latrão, em Roma, também causaram desconfiança na semana passada. Ele disse que muitos matrimônios hoje em dia poderiam ser considerados canonicamente inválidos, porque "estamos vivendo em uma cultura provisória" e os jovens que se casam muitas vezes não entendem o que significa um compromisso vitalício.
(A sala de imprensa do Vaticano publicou uma transcrição no dia seguinte em que as palavras do Papa foram atenuadas, mas isso não vem ao caso aqui). O Papa Francisco disse que em alguns casos a convivência pré-matrimonial pode ser benéfica, caso ajude um casal a amadurecer e se preparar emocional e psicologicamente para o casamento sacramental. Ele queria dizer que o casamento sacramental poderia ser utilizado para impor aos jovens um catolicismo instável e meramente superficial, apenas para que a Igreja Católica parecesse mais forte sociologicamente e a sociedade, mais culturalmente cristã.
A indignação dos católicos conservadores, especialmente nos Estados Unidos, não é de se admirar. O que o Papa disse - e as implicações disso - é exatamente o oposto da ideia de casamento para o catolicismo da América do Norte. Em um país como os Estados Unidos, onde as funções sociais e políticas do casamento são cruciais para a cultura moral e religiosa, as ideias pré e pós-modernas de "família" são mais fortes que a ideia moderna de família dominante em áreas secularizadas do mundo, como a Europa e a América Latina de Francisco.
Mas para muitos pastores (incluindo o ex-arcebispo de Buenos Aires, agora Bispo de Roma) a coabitação e a relação sexual antes do casamento já não são mais o perigo moral que já representaram para os jovens católicos. E encorajar o casamento precoce não é mais a melhor maneira de prevenir tal perigo. Mas esta não é a plataforma moral em que os bispos norte-americanos foram escolhidos nas últimas décadas, por isso, não é por acaso que muitos deles veem o Papa Francisco como uma ameaça ao equilíbrio moral e social do catolicismo norte-americano.
A nova carta do CDF, Iuvenescit Ecclesia, e as recentes declarações do Papa sobre o casamento têm algumas coisas em comum. Um dos elementos é que o Papa não tem medo de encarar a realidade. Em relação aos movimentos eclesiais, ele percebe que alguns dos grupos fizerem bem para a Igreja e outros fizeram mal. E acredita firmemente que a Igreja não pode simplesmente pressupor que figuras carismáticas são sempre bons pastores só porque parecem lutar contra a secularização.
Em relação ao casamento, ele afirma que certas práticas pastorais ligadas ao sacramento do matrimônio santificam as pessoas, embora reconheça que alguns casamentos sacramentais podem causar problemas espirituais quando as normas sociais e culturais ao seu redor restringem a liberdade espiritual dos fiéis.
Outro ponto em comum é o papel da Igreja institucional. No que diz respeito aos movimentos, a Igreja existe para ajudar a discernir os espíritos. Ela verifica se o carisma ajuda a construir a comunhão com Deus e com os demais na Igreja, ou se serve ao desejo de poder de uma figura carismática ou líder da Igreja. E em relação ao casamento, a Igreja não pode forçar uma visão social e cultural do casamento que não responde à realidade existencial dos homens e mulheres do nosso tempo.
O ponto de vista do Papa Francisco em relação aos movimentos eclesiais não é institucionalista, apenas prudente, devido aos incidentes e escândalos dos últimos anos (sobre os quais estudei nos meus livros Sorting Out Catholicism e The Rising Laity).
Sua visão do casamento não é liberal, mas apenas sensível à experiência humana. Usar um sacramento para manter aparências (sejam pessoais, sociais ou eclesiais) não está em consonância com a noção do Papa sobre a Igreja. O problema é que ele e muitos de seus irmãos bispos não estão de acordo sobre a definição de aparência e realidade no mundo e na Igreja de hoje.
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A aparência e a realidade da Igreja atual. O ponto de vista do Papa Francisco sobre o casamento não é liberal, mas apenas sensível à experiência humana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU