19 Abril 2016
O projeto “Esticadores de Horizontes”, realizado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina e Caribe (Adital), publica hoje sua segunda reportagem, uma escuta crítica sobre temas que giram em torno da história de vida da bailarina Katiana Pena e sua experiência como educanda da Edisca, publicada na última sexta-feira, dia 08 de abril. A repercussão é junto ao poder público e especialistas cujas atuações são voltadas às políticas de arte e cultura, investigando as relações possíveis entre governos e Terceiro Setor para dar condições de transformação individual e coletiva às juventudes socialmente excluídas.
A reportagem é de Benedito Teixeira, publicada por Adital, 15-04-2016.
Tratar com a juventude requer uma linguagem própria que o Estado brasileiro demorou a entender. A arte e a cultura, política pública afinada ao campo das “subjetividades” - como define o secretário de Cultura do Estado do Ceará, Fabiano dos Santos, funcionaria como a ponte entre a rigidez burocrática do Estado e a geração “Junho de 2013”, em alusão ao mês em que o Brasil foi sacudido por manifestações espontâneas, comandadas por coletivos juvenis. O recado das ruas foi claro. Esse grupo social, formado por variadas juventudes – mulheres, negras e negros, lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT), jovens das periferias, com deficiências, vítimas de violências, entre outros – em transformação constante, exige, agora, do Estado brasileiro mais cidadania e participação política. E a arte e a cultura, conforme relataram as bailarinas saídas da Edisca à reportagem do projeto Esticadores de Horizontes, na semana passada, podem, sim, ser um divisor de águas na vida de jovens carentes e expostos a condições de vulnerabilidade.
A dificuldade de entender os jovens e o papel que a arte e a cultura possuem como vetores de transformação social pode ser observada pela demora em se instituir no Brasil um Estatuto da Juventude. Este marco legal que, hoje, tenta organizar e consolidar políticas próprias para esta parcela da sociedade, uma luta pautada graças aos esforços de diversas organizações populares, foi sancionado pela presidenta Dilma Rousseff, em agosto de 2013. Conquista que chegou após anos de negociações, debates e pressões, depois de 23 anos decorridos da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Não por acaso, conforme esclarece Davi Barros, titular da Coordenadoria Especial de Juventude, órgão do Governo do Estado do Ceará, um dos primeiros artigos do Estatuto da Juventude já regulamentados trata da garantia de meia-entrada em eventos esportivos e culturais. “O Estatuto é exatamente para essa juventude [de renda mais baixa, das periferias, historicamente excluídas socialmente], porque uma parcela significativa da juventude brasileira não precisa que o Estado colabore para o seu desenvolvimento integral, pois já possui acesso à universidade, aos bens culturais, educação regular. O Estatuto existe para defender essa juventude que é vítima da pobreza, da discriminação”, explicita.
Direito a ser independente
É interessante ressaltar a diferença de conceitos entre o Estatuto aprovado em 2013 e o da Criança e do Adolescente, ECA, instituído em julho de 1990. Para Davi Barros, a grande sacada é sair do viés meramente tutelar para garantir a emancipação, a independência; prover os jovens da condição não somente de se tornarem os provedores econômicos de suas famílias, mas, também, agentes da transformação política e cultural do País.
“É obrigação do Estado garantir esses direitos [sociais da juventude], por um viés emancipatório. Esta é a maior diferença em relação ao ECA. Este é, digamos assim, uma tutela do Estado em relação aos sujeitos em desenvolvimento. Já o Estatuto da Juventude obviamente dialoga com essa tutela, quando busca garantir que esses jovens se emancipem, ou seja, possam responder à pergunta: “o que eu vou ser quando crescer”. Mas não é só isto. Procura garantir também que as próximas gerações de jovens não sejam apenas sujeitos econômicos, mas também sociais e politicamente ativos.”
Rane Félix é assessora de Gabinete da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult). Na conversa que tivemos, Rane frisa justamente o importante papel que a arte e a cultura podem exercer na formação cidadã de nossa juventude. “Quando se discute, através da arte, os direitos sociais, se discute política. Não existe um processo cultural alienado do processo político. É necessário problematizar, através da arte, esse 'buraco', essa ausência de direitos sociais, esse vazio, esse não-direito, e questionar isto. Nós, enquanto poder público, ao financiar, ao propor editais [de fomento às artes], temos que colocar essa discussão da política através da arte”, reflete Rane.
Jovens participam do Encontro Regional de Conselhos da Juventude em Aquiraz, Ceará, em 2016 / Acervo COJUV.
Falta de continuidade
Entendimento comum entre o Terceiro Setor: um dos principais empecilhos para a efetivação das conquistas sociais oriundas do binômio arte-cultura está na falta de continuidade dos projetos envolvendo o poder público. Ao mudar o governo, ou por haver um novo entendimento ideológico sobre o papel dessas políticas públicas ou, simplesmente, pela vontade de apagar as conquistas da gestão anterior, soterra-se o que já foi construído e instituem-se novos projetos sociais.
Outra questão em jogo é o fato de que um marco legal de proteção aos jovens, como o instituído através da Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, o Estatuto da Juventude, não garante a efetivação desses direitos sociais pretendidos. Em um mundo movido por estratégias de marketing e comunicação, a apresentação de boas intenções à sociedade pelo Estado não é garantia de que sairão do papel.
“Nós temos essa fragilidade nas políticas públicas no Brasil, a falta de continuidade. Desde a redemocratização, nós estamos tentando construir essas políticas”, afirma o secretário de Cultura do Ceará, Fabiano dos Santos. “Um exemplo exitoso é o Bolsa Família, que se transformou em política de Estado. Precisamos de marcos legais que garantam essas conquistas, embora sabendo que só isso não é o suficiente. E, no campo da cultura, não temos estudos mais concretos que mostrem os impactos positivos das políticas públicas, embora saibamos que não há como mensurar isto no absoluto, pois essas conquistas estão presentes no campo da subjetividade. E isto dificulta as ações de continuidade”, reflete. “Aqui, na América Latina, em cima da experiência que tive nos últimos anos, talvez seja o Chile o país que mais se aproxima de êxitos nas políticas públicas culturais, porque já tiveram governos de direita, de esquerda, de centro, mas houve a continuidade dessas políticas”.
Mesmo reconhecendo essas fragilidades, Santos exemplifica como o trabalho legislativo foi fundamental para a construção de uma política cultural eficaz e duradoura no Ceará. “A gente pode não perceber isso claramente, mas a Secretaria tem conseguido manter uma continuidade nos projetos por conta do Sistema Estadual de Cultura, que é instituído por lei. E sua regulamentação trouxe algumas ações que a Secretaria é obrigada a executar, sob pena de responsabilidade fiscal. Então, anualmente, nós somos obrigados a lançar, com recursos do FEC [Fundo Estadual de Cultura], o edital do Carnaval, da Paixão [Semana Santa], do Ceará Junino, Cinema e Vídeo, e o Natal de Luz. Eu fico imaginando se não fosse esse marco legal... Talvez já houvesse mudado um bocado. Nosso objetivo agora é qualificar, até porque algumas coisas já ficaram obsoletas nesses festivais”.
Para Davi Barros, a continuidade das políticas públicas está diretamente ligada ao seu êxito. Nesse sentido, aponta que a urgência nesse momento deve ser a regulamentação integral do Sistema Nacional de Juventude, “para consolidar a institucionalização das políticas de juventude no Brasil. Porque, hoje, elas acontecem muito no calor das decisões de governo. Precisa haver a continuidade, a rotina, que as ações não sejam algo eventual. Ou seja, o jovem busca um curso hoje, se informa sobre um projeto ali, mas não temos isso como uma rotina.”
O coordenador de Juventude do Ceará aponta que, para além da continuidade dos programas, estes devem ganhar uma abrangência que garanta a representatividade da juventude brasileira. “Um dos desafios que observo, nesses 10 anos em que discutimos políticas públicas para a juventude nacionalmente, é sairmos da lógica dos projetos-piloto, ou seja, sair da órbita dos projetos que atingem 100, 200, 1 mil jovens, mas não se alcança uma escala que se atinja um conjunto da população juvenil”, reflete.
Editais sem burocracia
Levamos a Klístenes Braga, assessor de Afirmação, Cidadania e Diversidade Cultural da Secult, uma observação levantada pelos movimentos sociais de juventude no Brasil, de que deveriam haver editais de fomento a projetos, incluindo arte e cultura, direcionados diretamente aos jovens, sem intermediação, com menos burocracia.
“Quando eu trabalhei no Cuca [Centro Urbano de Cultura, Ciência, Arte e Esporte] Che Guevara, da Prefeitura de Fortaleza, tivemos um edital, o 'Ação Jovem', que fomentava as iniciativas próprias das juventudes, e era muito livre, contemplando desde uma lan house até ações culturais. Era, na verdade, um incentivo ao empreendedorismo, havia uma parceria com a Secretaria do Trabalho, mas focada na Cultura, por ser no Cuca. Essa iniciativa me chamou a atenção por ser uma via direta [entre o jovem e o poder público]. Pensamos em promover algo assim, em nível estadual, que o jovem seja o próprio protagonista”, explica Braga.
Parcerias público-privadas
Outro ponto abordado é como vem sendo gerida e pensada a relação entre organizações não governamentais, instituições da sociedade civil e o poder público. Após um período de auge, notadamente no início dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil, a partir de 2003, as parcerias foram minguando – em especial por causa da legislação sobre as parcerias governamentais com as ONGs ter se tornado mais rigorosa, em 2014 – até chegar a um patamar, digamos, de quase criminalização, como aponta Davi Barros se referindo às inúmeras exigências e burocracias.
Para Fabiano dos Santos, não há porque pensarmos em um fim dessas parcerias. “Convênios com a sociedade civil sempre ocorreram e vão continuar a existir. Cito o exemplo dos Pontos de Cultura, essa parceira exitosa com o Ministério da Cultura, que busca potencializar o que esses grupos de cultura já faziam. Hoje, aqui no Ceará, temos 200 pontos, e isto é fruto da parceria com a sociedade”, explica. “Há, claro, uma diferença em relação à educação, por exemplo, em que o Estado financia e executa. O fazer cultural é diferente. São projetos da sociedade civil, seja através de artistas ou coletivos”.
Segundo Davi Barros, a cobertura da mídia teria sido um dos fatores para o distanciamento do poder público das organizações da sociedade civil. “Eu iniciei minha militância em uma ONG, e observamos, já naquela época, que havia uma certa criminalização dessas parcerias, no sentido dos recursos públicos não chegarem às suas finalidades. Essa imagem foi pautada, inclusive, pela cobertura da mídia, inibindo um caminho, na minha opinião, muito positivo, que é a união do poder público com a sociedade civil. Agora, o novo secretário nacional de Juventude [Gabriel Medina] já sinalizou que deseja voltar a incentivar essas parcerias. Minha opinião, como gestor, é que essas parcerias devem voltar, de uma forma mais articulada entre si”.
Por enquanto, o que vemos, pelo menos nos âmbitos da Coordenadoria Especial de Juventude e da Secretaria de Cultura do Ceará, são intenções de que as políticas públicas voltadas para as juventudes, em especial as excluídas socialmente, sejam ampliadas. Mas ainda são apenas expectativas. Na Coordenadoria, por exemplo, há a perspectiva de implantação, até o fim de maio deste ano, do projeto Saraus da Juventude. Este pretende financiar atividades artísticas e culturais produzidas por jovens de 18 a 29 anos, custeando as iniciativas que visem contribuir para o desenvolvimento local de territórios em situação de alta vulnerabilidade. Serão selecionados 100 projetos de linguagens artísticas variadas.
De acordo com Barros, o orçamento para este projeto deve envolver recursos da ordem de R$ 1,2 milhão – sendo R$ 10 mil para cada projeto – oriundos do Fecop [Fundo Estadual de Combate à Pobreza]. Concretamente, em pouco mais de um ano de gestão, o atual Governo do Ceará vem, por enquanto, dando continuidade aos Programas Nacionais de Inclusão de Jovens (Projovem) Urbano e Rural, que capacitam jovens que ainda não concluíram o Ensino Fundamental e também oferecem cursos profissionalizantes iniciais, com recursos provenientes do governo federal. Klístenes Braga, assessor da Secult, também anuncia o lançamento, em breve, de editais específicos que podem incluir as juventudes, a exemplo dos segmentos LGBT e pessoas com deficiências.
A reportagem procurou a Coordenadoria de Juventude da Prefeitura de Fortaleza, responsável pelos Cucas (Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte de Fortaleza) - um dos projetos mais emblemáticos de inclusão de jovens em bairros das periferias da cidade, por meio da arte e cultura -, mas não conseguiu as informações solicitadas até o fechamento desta edição.
*Acompanhe a série de reportagens aqui.
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Cultura como invenção das juventudes (IHU/Adital) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU