08 Abril 2016
A arte de equilibrar pratos Katiana Pena conheceu aos cinco anos de idade, ao revés. Levava um em cada mão, fartos da verdura que a mãe comprava para que ela revendesse pelas ruas do bairro Bom Jardim, na periferia de Fortaleza. Complemento indispensável ao minguado orçamento familiar. Hoje, aos 33, a bailarina profissional ri-se ao recordar que nem sempre cumpria o objetivo. É que o corpo miúdo já ousava outras “coreografias”. E não havia como resistir ao ímpeto criança de interromper o trajeto e entregar-se às horinhas de descuido, aquelas onde imperativo era encostar a mercadoria numa beirada de calçada qualquer e gastar boa parte do dia vendo o mundo de ponta-cabeça, entre bundas-canastras e “estrelinhas”.
A reportagem é de Ethel de Paula, publicada por Adital, 07-04-2016.
“Num total de 300 crianças, divididas em quatro turmas, tinha gente com histórico de violência absurdo. Tinha dias em que não tinha como dar aula e a gente sentava pra conversar sobre a mais recente chacina ou ajuste de contas com familiares e amigos em comum. Não dei conta. Entendi que não bastava um centro cultural amplo, bonito, com professor lá dentro pra dar aula, sem olhar pros lados. Era preciso bem mais do que isso, o buraco era muito mais embaixo”, criticou a professora.
E eis que a poética do brincar abriu caminho para outros possíveis. Foi entre cambalhotas que Katiana avistou ao longe o que lhe parecia um “objeto não-identificado” pousado bem no meio da paisagem de piçarra, lama e casebres que jamais fizeram jus ao nome do bairro de origem: estava diante do circo-escola do Bom Jardim, projeto tutelado pelo Governo do Estado e voltado à inclusão social e arte-educação, com foco na linguagem circense. “Entrei assustada e percebi que tudo o que eu fazia quando encostava o pratinho de verdura no meio da rua tava ali: a contorção, os saltos, as piruetas. Aí a “tia” de lá me explicou o que era e eu voltei pra casa correndo pra pedir à mãe que me matriculasse no circo. Apanhei porque não vendi nada naquele dia, mas acabou que ela deixou eu fazer a matrícula. E foi como contorcionista que ganhei o meu primeiro cachê”, conta, satisfeita.
Um ciclo que se completa. Na Edisca, a ex-aluna que foi dar suas primeiras aulas de dança remuneradas justo no local onde aprendera a dançar saiu de lá não só dominando a técnica como instigada a dar forma ao desejo que, também ali, cresceu junto com ela: construir a própria escola para repassar a quem vive à margem o que havia aprendido. “Acho que só entendi a real importância do projeto quando saí. Fiquei um tempo sem chão, pensando que não ia ter mais aquele almoço, aquela consulta médica, aquela biblioteca, aquela psicóloga de plantão, aqueles espetáculos incríveis. Mas depois entendi o mais valioso: a capacidade já conquistada para construir eu mesma um jeito próprio de viver, de sobreviver e também de conviver. Tudo o que vivi e ouvi na Edisca está em mim, impactando positivamente aonde eu for. Depois disso, eu nunca serei uma simples bailarina ou professora de dança. É isso e mais um pouco: dançando e fazendo dançar eu quero que as pessoas entendam que cada um é capaz de transformar sua própria vida e o coletivo também”, acredita.
Um ciclo que se completa
Lenta e sinuosa, a dança que Katiana sugere, à moda Edisca, é a de quem se deixou guiar por renovados valores éticos e estéticos. Uma dança que convida o ser humano a participar e se implicar com a organização do mundo. Uma dança para os que concebem a vida como risco e experimentação contínua, primando por movimentos de expansão e de beleza compartilhada. Dançar por novas formas de ser e de estar, afirmando a vida, é também ter coragem para muitas vezes dizer “não”, em nome de um recomeço. Katiana teve. Ao sair da Edisca, recebeu uma proposta para ser professora de dança do Centro Cultural Bom Jardim, espaço concebido e gerido pelo Governo do Estado.
Topou. Foram nove anos de carteira assinada, alguma estabilidade financeira, e muita peleja para exercer o ofício como acreditava. “Não era só chegar e dar aula. Ensinei até a fazer cocó, dei banho nas meninas, tirei piolho e vi o collant de muitas delas ficar tão pequeno que já não passava da cintura. E, quando a gente solicitava, não havia recurso financeiro para repor ou melhorar nada. Então, eu não entendia como o governo gastava milhões em um show na Praia de Iracema e ali faltava tanta coisa. Não quis mais pactuar com isso e pedi demissão, mesmo sofrendo”, sublinhou. Para ela, erguer um equipamento cultural em um bairro como o Bom Jardim requer bem mais do que infraestrutura, sob pena de vir a tornar-se um “elefante branco”, algo grandioso, porém superficial no que se refere à transformação de todo um contexto de vulnerabilidade socioeconômica.
Com a legitimidade de quem nasceu, cresceu e permaneceu no Bom Jardim, Katiana ousou fazer diferente, mesmo a conta-gotas ou correndo o risco de não alcançar o número de pessoas que ela gostaria, dada a própria fragilidade socioeconômica. “Quando desisti do Centro Cultural, passei um mês pensando... E resolvi, por fim, subir um andar na minha casa e construir um estúdio de dança. Com o dinheiro da rescisão de contrato também comprei um carro e comecei a fazer frete. Pedi dinheiro emprestado ao meu irmão e comecei a obra. Depois botei uma mesa na calçada e fui fazer inscrição. Boa parte das minhas alunas do centro cultural veio. E aquilo me estimulou a correr atrás de parcerias com comerciantes do bairro. Ainda faltam os espelhos, a fixação das barras, o dinheiro para melhorar salários e terminar a reforma. Mas, devagar, com o apoio da comunidade, principalmente, vai dando certo”, regozija-se.
Da fraqueza fez-se a força. Enquanto o Studio de Dança Katiana Pena ainda não está nos trinques, a professora emplaca um modo mais participativo de ensinar a dançar. “Aqui quero fazer uma dança diferente, mais próxima da realidade das pessoas do bairro. Quero fazer uma aula na pracinha e no campo de várzea. Já estou dando aula de zumba nos estacionamentos de três supermercados vizinhos. Quero sair dos espaços convencionais e valorizar os espaços públicos, promovendo essa mudança de perspectiva e um maior acesso. Por isso, o nome do grupo de dança avançado é Corpo Mu-Dança. E é com ele que venho criando espetáculos para apresentar em outros palcos da cidade, ganhando cachês. Hoje, são 15 integrantes no Corpo Mu-Dança, todos jovens. Algumas já são professoras no estúdio, ganhando uma ajuda de custo simbólica. Também sou convidada a fazer coreografias para escolas, dou assessorias e, assim, vamos fazendo nosso caixa, que ainda está no vermelho, mas vai melhorar”, acredita.
Para Katiana, o circo foi a cama elástica para voos mais altos. Ali, entre muita boa vontade e carências de toda a ordem, soube da existência da Edisca (Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Crianças e Adolescentes), ONG criada em 1991 por três irmãos bailarinos: Dora, Claudia e Gilano Andrade. Privilegiando o ensino da dança, o trio corria em tour os bairros da periferia da cidade, divulgando o projeto social que apostava em processos formativos continuados e com centralidade na arte. “Lembro que ia sair dois ônibus do Bom Jardim e eu, claro, queria ir. Devia ter uns 7 anos. Mas aí a mãe botou dificuldade: “você não tem roupa, é muito longe, isso não dá dinheiro...”. E veio o carão final: “Katiana, você vai, mas, se não passar, leva uma pisa tão grande que tu vai ver...”, arremeda. Engolindo em seco, a contorcionista precoce pediu short emprestado, tênis e até liga para o coque, partindo com a turminha do bairro para o desconhecido.
Intrépida trupe. “Lembro que no caminho tinham muitas igrejas. E quando passava na frente delas eu rezava, com medo de apanhar também, né? Mas quando vi os primeiros passos de balé aquilo me atravessou. Foi um choque. E não queria mais outra coisa. Passei na audição e entrei logo pro ensaio do Jangurussu, o primeiro balé da Edisca. O sucesso desse espetáculo foi estrondoso, mas mal sabia a plateia endinheirada que naquela época era tudo tão difícil que a gente tomava água na fábrica de gelo vizinha, porque na escola não tinha. Era todo mundo azul de fome, muita gente desmaiava na sala-de-aula. E a luta da Dora para contornar essa situação era imensa... Mas não foi em vão. Só sei que entrei em 1992 e fiquei 16 anos na Edisca, saindo de lá completamente transformada e pronta para enfrentar qualquer desafio que a vida me traga, além, é claro, de ter me tornado o que sempre quis: bailarina”, recorda a hoje proprietária do Studio de Dança Katiana Pena, no bairro Bom Jardim.
Pliés à parte, a vontade de Katiana é política. “Quero que todos esses jovens professores de dança sobrevivam do Studio, que possam pagar o transporte, os estudos, comer daqui. Acho que é um dever meu com meus amigos, com minha família, com pessoas que estão aqui sem oportunidades e também com aquelas que tiveram que ir embora. O mesmo pas-de-deux que tem na França tem aqui. Então, elas podem ir ou não, mas devem ter o direito de decidir se querem fazer a vida delas no Bom Jardim.
Na inauguração do Studio consegui apoio pra colocar o palco na rua, fechar os cruzamentos e apresentamos um espetáculo baseado na vida de Camille Claudel. Todo mundo botou a cadeira na calçada e vi muita gente chorando... o povo do Bom Jardim não sai no fim de semana, porque não tem nem o do transporte. O bairro é violento, todo demarcado por gangues rivais, então o direito de ir e vir é prejudicado. Então, imagina o impacto dessa apresentação sobre as pessoas... Parece quase nada, mas pra gente é muito forte e importante”, afirma, contundente, a professora mais popular do Bom Jardim.
Importante porque cada “corpo mu-dança” quer justamente isso: despertar sensações, partilhar o sensível, instaurar um novo regime de convivência capaz de construir sujeitos mais éticos, políticos, emocionais e vitais. Dançar não apenas para sobreviver, mas para dar malemolência às próprias vidas e ativar sentidos adormecidos e domesticados. Um voo fora da curva, tão necessário quanto possível para existir - e dançar - de outras maneiras.
*Acompanhe a série de reportagens aqui.
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O voo dançante da Pena (IHU/Adital) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU