A reflexão é de Mery Elizabeth de Sousa, fsp, Religiosa da Congregação Filhas de São Paulo. Ela é bacharel em teologia pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP - PE) 2018.Tem experiência em formação de lideranças, especialmente em formação bíblica.
Que bom poder chegar até vocês neste terceiro domingo do tempo comum, instituído pelo Papa Francisco no dia 30 de setembro de 2019, memória litúrgica de São Jerônimo, como o Domingo da Palavra.
Os textos da liturgia de hoje nos convidam a refletir sobre a esperança, a unidade, a conversão, o chamado a uma participação efetiva ao Reino de Deus.
A primeira leitura (Is 8,23b-9,3), lida também na solenidade do Natal, trata-se de um texto eminentemente messiânico, que nos diz: 'O povo que andava na escuridão viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu."(Is 9,1)
É interessante notar que nesses primeiros versículos, assim como naqueles que seguem, se apresentam elementos significativos e essenciais para nossa experiência de fé: o primeiro é o da luz, luz que apaga a escuridão da morte, que faz ver a existência onde, aparentemente, havia o nada, o vazio. O profeta continua dizendo: "Fizeste crescer a alegria e aumentaste a felicidade; todos se regozijam em tua presença..." (Is 9,2)
Aqui podemos ver que a luz dá inicia a uma nova criação, e essa é marcada pela alegria, e que a felicidade é fruto de uma presença, da qual todos são beneficiados.
Igualmente se apresenta o símbolo da paz experimentada pelos “exaltados guerreiros ao dividirem os despojos”. Por fim, e em contrapartida, a escravidão, o jugo, a carga e o orgulho foram estilhaçados abrindo-se, assim, o novo tempo da paz messiânica.
Na segunda leitura (1Cor 1,10-13.17), tirada da primeira carta aos Coríntios 1,10-13.17 vemos uma exortação de Paulo sobre a realidade que está vivendo a comunidade cristã primitiva, quando assim escreve: "cada um de vós afirma: 'Eu sou de Paulo', ou 'eu sou de Apolo', ou 'eu sou de Cefas', ou 'eu sou de Cristo!' Será que Cristo está dividido? Acaso Paulo é que foi crucificado por amor de vós? Ou é no nome de Paulo que fostes batizados? (...) De fato, Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar a Boa-nova da salvação, sem me valer dos recursos da oratória, para não privar a cruz de Cristo da sua força própria."
A comunidade de Corinto, assim como a nossa sociedade atual, era marcada pela pluralidade, realidade que de modo algum significa um problema quando as pessoas conseguem encontrar pontos comuns que as unam para um bem maior, para um bem em vista de todos ou, ao menos, do maior número de pessoas. Assim, na comunidade de Corinto, o desafio não era somente lidar com a pluralidade, mas com o “polarismo”, em outras palavras, com os extremos das divergências. Paulo está diante de um contexto social e religioso marcado pela existência de numerosas seitas e pequenos grupos dominados por vários lideres, e o corpo místico de Cristo foi reduzido a ser um corpo de membros divididos. É diante desta constatação que Paulo reage com vigor e exorta a comunidade a retornar às suas origens, à sua vocação cristã, que se manifesta na indivisibilidade de Cristo, e ao valor salvífico posto unicamente na sua cruz, os quais devem conduzir a comunidade eclesial ao seu fim, que não é outro senão aquele da fraternidade, da justiça e do amor.
Se pensarmos no senso fundante da vocação cristã, o Evangelho nos apresenta um exemplo oportuno. Evangelho deste domingo (Mt 4,12-23) faz parte do primeiro dos cinco discursos que compõem o Evangelho segundo Mateus, que pode ser intitulado: “Discurso sobre o reino de Deus”. Para nos situarmos melhor no contexto que o envolve vale lembrar que, segundo Mateus, Jesus está apenas no inicio de sua vida pública, momento precedido pelos quarenta dias de dura prova no deserto e acabara de receber notícias sobre João Batista:
“Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia. Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia, no território de Zabulon e Neftali, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías:“Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galileia dos pagãos!” (Mt 4,12-15)
Jesus vai a Cafarnaum para que se cumprisse aquilo que foi escrito por meio do profeta Isaías, conforme a primeira leitura que acabamos de ouvir. A mensagem de Jesus é clara e essencial para todas as pessoas de boa vontade: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” (Mt 4,17).
Não se trata de um anúncio diferente daqueles que, precedentemente, os profetas haviam feito; a novidade, porém, está no mistério da realização daquilo que se espera concretizar plenamente, ou seja, ao mesmo tempo em que se anuncia esta Boa Nova do Reino, ela, pela fé, já se realiza na própria presença do Cristo.
Nesse primeiro discurso de Jesus, outros dois aspectos podem ser destacados. Antes de tudo aquele teológico, sobre o reino de Deus, o reino dos céus, que é o tema central tratado por Jesus em todos os demais discursos ao longo desse Evangelho, para revelar Deus que deseja atuar com Cristo no mundo e na história. E há também o aspecto humano da proposta de Deus que merece nossa atenção, pois Ele convida homens e mulheres a colaborarem com o seu projeto.
A condição para fazer parte desta iniciativa é exigente: trata-se de uma decisão em colocar-se em um caminho de conversão, isto é, “retornar” a Deus, e não se trata de uma questão externa somente, mas de uma conversão de mentalidade (μετανοεῖτε), segundo o significado do verbo grego usado, que transforma também a vontade e os sentimentos, num continuo processo de “conformidade” a Cristo.
Os primeiros convidados a responderem a este apelo foram os simples, os pobres. Aos pescadores que “lançavam as redes” ao mar em uma manhã que poderia ser considerada igual a todas as outras Jesus dirige, de modo inesperado, seu convite: “Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens” (v.19). Jesus mais uma vez revela que o chamado é um dom gratuito, este não depende das capacidades humanas - “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi” (Jo 15,15) -, a cada pessoa cabe somente o empenho em acolher e colaborar para que este chamado gere frutos de vida, de fraternidade, de justiça. A vocação ao discipulado é, portanto, um dom que comporta exigências não fáceis, trata-se de um desenraizar-si de uma situação cômoda, para embarcar em um risco com Deus.
Que a liturgia da Palavra deste domingo nos conduza a viver uma profunda experiência com a pessoa de Jesus, pois Ele vem ao nosso encontro nas mais diversas realidades em que nos encontramos. Possam as palavras do salmista inspirar nossa oração a Deus para que cheguemos a dizer: “A ti, Senhor, eu peço apenas uma coisa, e é só isto que eu desejo: habitar no santuário do Senhor, por toda a minha vida; saborear a suavidade do Senhor e contemplá-lo no seu templo”.
Deus lhes conceda uma abençoada semana e que esta seja vivida na certeza de que Ele é nossa luz e salvação, pois Ele é a proteção de nossas vidas.