Por: MpvM | 14 Agosto 2020
"A Mariologia renovada que cresce depois do Concílio traz novos elementos para pensar o mistério de Maria, intimamente unida e inseparável do mistério de Cristo e da Igreja. A Igreja Católica proclamou dogmas de fé sobre o mistério de Maria. E o Vaticano II o faz sem deixar de incluir as novas descobertas antropológicas modernas, além do caminho ecumênico e do diálogo inter-religioso.
O mais recente dos dogmas marianos é a Assunção, definida e proclamada solenemente por Pio XII, em 1º de novembro de 1950, com a Constituição Apostólica Munificentissimus Deus. O dogma é baseado nos textos bíblicos, mas relido com os olhos da tradição da Igreja."
A reflexão é da teóloga Maria Clara Lucchetti Bingemer, a qual possui graduação Comunicação Social (1975) e mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (1985) e doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana - PUG (1989). Tem pesquisado e publicado nos últimos anos sobre o pensamento da filósofa francesa Simone Weil.
Festa da Assunção de Maria 15 de agosto de 2020.
Leituras do dia
Ap 11,19a;12,1-6a.10ab
Salmo 44 (45)
1 Cor 15,20-27
Lc 1,39-56
A festa da Assunção é aquela onde a Igreja Católica celebra a glória de Maria. Aquela cuja figura aparece sempre tão rodeada de ricos símbolos na Bíblia, como o Israel fiel do qual nascerá o novo Israel, a jovem de Nazaré, a esposa de José da qual nascerá o Salvador, a discípula fiel do Messias seu filho que o seguirá por toda parte até a cruz e que depois seguirá inspirando a primeira comunidade apostólica nascida da alegria de sua ressurreição foi recebida na glória de Deus, assunta ao céu em corpo e alma.
Na festa da Assunção de Maria, a Igreja nos propõe como primeira leitura os capítulos 11 e 12 do Apocalipse, último livro da Bíblia Cristã.
O templo de Deus abriu-se no Céu
e a arca da aliança foi vista no seu templo.
Apareceu no Céu um sinal grandioso:
uma mulher revestida de sol,
com a lua debaixo dos pés
e uma coroa de doze estrelas na cabeça.
Estava para ser mãe
e gritava com as dores e ânsias da maternidade.
E apareceu no Céu outro sinal:
um enorme dragão cor de fogo,
com sete cabeças e dez chifres
e nas cabeças sete diademas.
A cauda arrastava um terço das estrelas do céu
e lançou-as sobre a terra.
O dragão colocou-se diante da mulher que estava para ser mãe,
para lhe devorar o filho, logo que nascesse.
Ela teve um filho varão,
que há-de reger todas as nações com ceptro de ferro.
O filho foi levado para junto de Deus e do seu trono
e a mulher fugiu para o deserto,
onde Deus lhe tinha preparado um lugar.
E ouvi uma voz poderosa que clamava no Céu:
«Agora chegou a salvação, o poder e a realeza do nosso Deus
e o domínio do seu Ungido».
Muito rico em símbolos o texto nos descreve uma mulher. Aparece uma mulher vestida de sol e coroada de estrelas, com dores de parto, lutando contra o dragão. Sua vocação é de vitória, pois ela deve ser a esposa do cordeiro, a nova cidade, a nova Jerusalém, onde todos os que cumprem os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus finalmente se encontrarão. Quem são esses todos?
Trata-se do povo perseguido e martirizado de Deus que carrega consigo o penhor da vitória de Jesus. Maria é, em muitas interpretações, identificada como aquela mulher do Ap 12, figura da fé humilde e laboriosa das pessoas que sofrem e acreditam no Salvador Crucificado, sem perder a esperança. A jovem pobre, nascida em Nazaré da Galileia, ponto perdido e periférico do império romano de então, que teve que dar à luz fora de sua cidade, em um estábulo, e que sempre acreditou e esperou nas promessas do Altíssimo a seu povo as viu finalmente cumpridas em seu filho. E com ele agora goza da glória que Deus preparou par os que o amam. Mas essa mulher é também a figura de uma Igreja perseguida pelo mundo, pelas forças do anti-reino e pelos poderosos e opressores de todos os tipos que, como o dragão descrito no Apocalipse, querem "devorar" seus filhos e filhas. Querem devorar o projeto do reino, tudo o que é vida e liberdade para o povo, tudo o que é fruto maduro das entranhas férteis das mulheres.
O novo povo de Deus, do qual Maria é símbolo e figura, é o "sinal", que aparece no céu e na terra, que a graça e o poder de triunfar sobre a serpente dado aos descendentes da mulher-Eva foram dados através da descendência da mulher - Maria, de cuja carne o Espírito formou a encarnação de Deus; da mulher-povo de Deus, de cujo seio brotou a salvação e a comunidade daqueles que cumprem os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus.
Na mesma linha irá a perícope do Evangelho de Lucas que será o evangelho dessa festa que agora celebramos.
Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».
Maria disse então:
«A minha alma glorifica o Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre».
Maria ficou junto de Isabel cerca de três meses
e depois regressou a sua casa.
O Evangelho de Lucas é o que apresenta mais textos referentes a Maria. O que é anunciado à Maria na anunciação (Lc 1, 26-38) vem na sequência das múltiplas manifestações da fidelidade de Deus ao seu povo (Sara, Abraão, a mãe de Sansão). Maria, símbolo e representante do povo, é a nova arca da Aliança, a morada de Deus, o lugar da sua morada, o lugar onde Aquele que ninguém pode ver sem morrer, cujo nome não pode ser pronunciado por bocas humanas, pode ser encontrado e amado. Lucas se apropria das experiências e expressões teológicas dos judeus, dando-lhes um novo sentido a partir da grande novidade vivida pelos seguidores de Jesus. A visita de Maria a Isabel nesse caso é prototípica (Lc 1, 40-45) pois é o encontro do antigo com o novo e mostra o reconhecimento, por parte do povo judeu, do novo. Maria agora é "abençoada entre as mulheres". Quem o reconhece e proclama é Isabel, a judia anciã de quem nasceu o último dos profetas da antiga Lei, João Batista. O cântico de Maria, o Magnificat (Lc 1, 46-55), é um cântico forte e aguerrido, revolucionário, cântico da luta de Deus travada na história humana, luta pelo estabelecimento de um mundo de relações igualitárias, de profundo respeito por cada ser em quem habita a divindade. A imagem da mulher grávida, capaz de dar à luz o novo, é a imagem de Deus que, pela força do seu Espírito, dá à luz homens e mulheres dedicados à justiça, vivendo o relacionamento com Deus no relacionamento amoroso com seus semelhantes. O canto de Maria é o "programa do reino de Deus", paralelo ao discurso programático de Jesus, lido na sinagoga de Nazaré (Lc 4, 16-21). A gravidez e o parto de Maria (Lc 2, 7) tem um significado coletivo, no qual todos estão envolvidos, indo além dos limites da biologia e da fisiologia humana. É o nascimento de Deus na humanidade. Depois do nascimento daquele que foi anunciado a João desde o ventre da própria mãe, o evangelista volta novamente seu olhar para Maria por ocasião da apresentação no templo. (Lc 2, 34-35 e Lc 2, 48-49) Ali a profecia de Simeão dá a Maria um espaço que se desdobra em todos os tempos. Aqueles que lutam pelo reino de Deus são marcados pela contradição com este mundo. Uma espada continua perfurando o coração daqueles e daquelas que, como Maria, lutam pela justiça de Deus, daqueles que cuidam primeiro de todas as coisas de Deus, possuídos pela paixão pela libertação de seus irmãos.
A jovem mãe que canta esse canto forte no evangelho de Lucas vai ser vista na outra parte da obra lucana, no livro dos Atos dos Apóstolos: Este livro mostra Maria presente nas raízes da primeira comunidade cristã, perseverante em oração e unida aos discípulos de seu filho. Presente como mãe, irmã, companheira, discípula e mestra de um movimento organizado por seu filho Jesus, movimento cujas raízes históricas têm como núcleo o anúncio da presença do reino no meio dos pobres, dos pecadores, dos Gentios, os que estão longe e perdidos, mas também os que estão próximos, embora privados de todo o reconhecimento do poder estabelecido.
A Mariologia renovada que cresce depois do Concílio traz novos elementos para pensar o mistério de Maria, intimamente unida e inseparável do mistério de Cristo e da Igreja. A Igreja Católica proclamou dogmas de fé sobre o mistério de Maria. E o Vaticano II o faz sem deixar de incluir as novas descobertas antropológicas modernas, além do caminho ecumênico e do diálogo inter-religioso.
O mais recente dos dogmas marianos é a Assunção, definida e proclamada solenemente por Pio XII, em 1º de novembro de 1950, com a Constituição Apostólica Munificentissimus Deus. O dogma é baseado nos textos bíblicos, mas relido lido com os olhos da tradição da Igreja.
O dogma da Assunção proclama Maria assunta ao céu "em corpo e alma". O conteúdo do dogma da Assunção é, então, toda a pessoa de Maria. Maria não é uma alma envolvida provisoriamente em um corpo, mas uma pessoa, um corpo animado pelo sopro divino, penetrado pela graça de Deus até o último canto. Sua corporeidade é totalmente assumida por Deus e trazida à glória. Sua assunção não é a reanimação de um cadáver ou a exaltação de uma alma separada de um corpo, mas a plena realização, no absoluto de Deus, de toda a mulher Maria de Nazaré.
Ela também nos diz algo sobre o destino escatológico final ao qual somos chamados. E de maneira muito especial é o destino de Maria, essa criatura que teve a graça de ser a mãe de Jesus.
Não somos uma alma aprisionada em um corpo, e esse corpo, por sua vez, não constitui um impedimento para nossa plena realização como seres humanos unidos a Deus. Ao contrário: na ressurreição nossa corporeidade é resgatada e transfigurada no absoluto de Deus. Maria, glorificada no céu em corpo e alma, é a imagem e o começo da Igreja e da humanidade do futuro, um sinal escatológico de esperança e consolo para o povo de Deus que caminha para a pátria definitiva. Com a Assunção de Maria, figura e símbolo do novo povo de Deus, a Igreja já é, mesmo no meio de sua ambiguidade e pecado, a comunidade da salvação, o povo fiel que é chamada a ser.
A Assunção de Maria também restaura e reintegra a corporeidade feminina, humilhada pelo preconceito patriarcal judaico-cristão, no seio do mistério do próprio Deus. A partir de Maria, a mulher tem a dignidade da própria condição reconhecida e assegurada pelo criador dessa mesma corporeidade. Toda a condição humana é, em Jesus Cristo e Maria, respectivamente, ressuscitada e elevada ao céu, participando definitivamente da glória do mistério trinitário.
Finalmente, a Assunção de Maria está intimamente ligada à ressurreição de Jesus. E sobre isso na segunda leitura da festa de hoje, 1 Cor 15, Paulo nos fala da ressurreição de Cristo e como seu destino é também o nosso.
Irmãos:
Cristo ressuscitou dos mortos,
Como primícias dos que morreram.
Uma vez que a morte veio por um homem,
Também por um homem veio a ressurreição dos mortos;
Porque, do mesmo modo que em Adão todos morreram,
Assim também em Cristo serão todos restituídos à vida.
Cada qual, porém, na sua ordem:
Primeiro, Cristo, como primícias;
A seguir, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda.
Depois será o fim,
Quando Cristo entregar o reino a Deus seu Pai
Depois de ter aniquilado toda a soberania, autoridade e poder.
É necessário que Ele reine,
Até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos seus pés.
E o último inimigo a ser aniquilado é a morte,
Porque Deus tudo colocou debaixo dos seus pés.
Mas quando se diz que tudo Lhe está submetido
é claro que se excetua Aquele que Lhe submeteu todas as coisas.
Nos dois eventos de fé, - a Ressurreição e a Assunção – trata-se do mesmo mistério: o do triunfo da justiça de Deus sobre a injustiça humana, a vitória da graça sobre o pecado. Assim como proclamar a ressurreição de Jesus implica continuar anunciando sua paixão que continua nos crucificados da história e naqueles a quem a justiça não é feita neste mundo, da mesma forma, acreditar na Assunção de Maria é proclamar que aquela mulher que deu à luz em um estábulo, entre os animais, que teve seu coração trespassado por uma espada de dor, que compartilhou a pobreza, a humilhação, a perseguição e a morte violenta de seu Filho, que ficou ao seu lado ao pé da cruz, a mãe do condenado que morreu fora das portas da cidade, foi exaltada. Assim como o Crucificado é o Ressuscitado, a Dolorosa é a Assunta aos céus, a Gloriosa. A Igreja, o povo de Deus, tem na Assunção de Maria o horizonte escatológico da esperança que lhe indica seu lugar no meio dos pobres, dos marginalizados, de todos aqueles que são colocados à margem da sociedade e têm em Deus seu eterno advogado.
A assunção gloriosa de Maria remete igualmente à maternidade como experiência humana primeira e prototípica. O feminino precede o masculino na história da humanidade, já que todo ser humano, homem ou mulher, nasceu de uma mulher. No entanto hoje, inclusive em boa parte devido a uma má compreensão da proposta feminista, que tanto resgatou a dignidade das mulheres, a maternidade tem sido vista mais como um peso ou uma canga do que com uma graça e um poder como o é na realidade.
Muitos pensadores atuais, inclusive de fora da Igreja, chamam a atenção para o fato de que com o obscurecimento da devoção a Maria devido à secularização, perdeu-se o discurso mais forte já havido sobre a maternidade. E nenhum outro foi posto em seu lugar. A maternidade permanece então sem discurso.
No entanto se olharmos hoje alguns movimentos que contestam os regimes opressores de ontem e de hoje, vamos sempre encontrar as mães que lutam até o último suspiro por seus filhos e influem na mudança do curso da história. Aí podemos citar as mães da Praça de Maio da Argentina que com uma fralda na cabeça e um ensurdecedor silencio passeavam em círculos ao redor do palácio do ditador e conseguiram pela reivindicação de sua maternidade que exigia a informação sobre o paradeiro dos filhos desaparecidos desestabilizar uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina.
Na mesma linha se situam as mulheres de Calama, no deserto de Atacama no Chile, que até hoje buscam os restos dos fihos desaparecidos, torturados e mortos pela ditadura Pinochet para dar-lhes a dignidade de uma sepultura. E enquanto isso não acontece celebram rituais enquanto jogam cravos ao ar, pois não puderam enterrar seus filhos.
No México as mães de Tijuana escavam a terra na fronteira com os Estados Unidos procurando incansavelmente os restos dos filhos mortos pela violência policial ou pelas gangs do tráfico para que possam finalmente transformá-los em ancestrais e dar-lhes a dignidade que iluminará todo o povo.
No Brasil as mães do tráfico não descansam e pedem à polícia e aos traficantes notícias dos filhos que foram subtraídos de seu convívio e mortos. Exigem seus corpos para poder prestar-lhes as últimas homenagens e os últimos carinhos.
Maria é o protótipo de toda essa maternidade dolorosa e insurgida, que luta tendo como arma apenas a força de seu ventre cheio da vida nova que deve nascer, crescer e multiplicar-se por sua vez em novas vidas. É belo de ver como a piedade mariana, sobretudo no Oriente, afirma que Maria não morreu, mas adormeceu. Celebra-se inclusive a festa da “dormitio Maria”. A fé católica afirma que está assunta ao céu, não tendo a morte mais nenhum poder sobre sua pessoa.
A partir daí instaura-se no imaginário gerado pela fé cristã uma rede de novas relações a partir do mistério de Maria e de sua gloriosa assunção aos céus. Gerando quem a gerou, sendo anterior ao filho em sua humanidade, é posterior pela divindade do mesmo. É virgem e mãe simultaneamente e assim se torna matriz para uma rede de outras relações mais complexas: a de Deus com a humanidade, a do homem com a mulher, a do filho com a mãe, etc.
A festa da assunção de Maria nos convida a todos pois, homens e mulheres, a re-situar o feminino e a maternidade, fonte inesgotável de vida que se multiplica e enche a face da terra no lugar que lhe corresponde: o lugar de respeito, veneração, adoração que lhe foi designado pelo próprio Deus e ocupado antes de tudo por uma mulher, que por seu ventre perfurado e aberto venceu as insídias da serpente e abre diante da humanidade um futuro de salvação e de paz.
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Festa da Assunção de Maria - Ano A - Um convite a re-situar o feminino e a maternidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU