29 Julho 2008
"É muito provável que a geração à qual pertenço, e talvez ainda aquela dos seus filhos, serão as últimas a fazer as contas de modo difuso – embora junto a exceções cada vez mais consistentes – com a experiência da morte, nos termos em que a nossa espécie a encontrou até agora, e que foram culturalmente elaborados através de um esforço que durou milhares e milhares de anos", afirma Aldo Schiavone, intelectual italiano, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 28-07-2008. Ele explica: "Quero dizer a morte como um evento inevitável, espontâneo e indeterminado, que sempre se produz de modo (relativamente) imprevisto e repentino – embora às vezes longa e lamentosamente preparado e esperado".
Segundo ele, "hoje, este decisivo plano de subordinação humana à natureza, por tudo quanto diz respeito à entrada e à saída da vida, está desaparecendo. Que nos agrade ou não, está se dissolvendo e a tendência é irrefreável. A técnica instalou-se definitivamente no coração destes dois momentos cruciais e está deslocando o domínio do horizonte da necessidade e da história evolutiva ao da vontade e da cultura".
Eis o artigo.
Chega o momento – às vezes de improviso, como veremos – no qual é preciso saber fazer discursos difíceis, que teríamos preferido poupar-nos. A política não vem ao caso: está em jogo algo mais profundo, que queima e faz mal. Os tempos que atravessamos requerem um exercício extraordinário de razão e realismo, para gerir o peso de uma revolução que está subvertendo a relação a que estávamos habituados entre aquilo que ainda somos e aquilo que estamos para nos tornar: quando a cada novo dia nos desafia o peso de decisões e de responsabilidades que até ontem sequer pensávamos como possíveis.
Falamos do que é e sempre mais será o estado terminal da vida – o momento extremo da nossa passagem humana – em sociedades tecnológicas de alta medicamentação (assistência individualizada, hospitais avançados, protocolos terapêuticos de vanguarda). Não somente em casos limítrofes, como aqueles que as últimas crônicas italianas nos têm proposto dolorosamente, mas para todos nós, em suma, naquilo que nos espera. E procuramos enfrentar a questão em sua raiz.
É muito provável que a geração à qual pertenço, e talvez ainda aquela dos seus filhos, serão as últimas a fazer as contas de modo difuso – embora junto a exceções cada vez mais consistentes – com a experiência da morte, nos termos em que a nossa espécie a encontrou até agora, e que foram culturalmente elaborados através de um esforço que durou milhares e milhares de anos. Quero dizer a morte como um evento inevitável, espontâneo e indeterminado, que sempre se produz de modo (relativamente) imprevisto e repentino – embora às vezes longa e lamentosamente preparado e esperado.
A morte, em suma, como fato “natural” absoluto, enigmaticamente simétrico à oposta “naturalidade” do nascer, de todo subraído ao nosso controle e ao nosso poder de avaliação e de escolha. Hoje, este decisivo plano de subordinação humana à natureza, por tudo quanto diz respeito à entrada e à saída da vida, está desaparecendo. Que nos agrade ou não, está se dissolvendo e a tendência é irrefreável. A técnica instalou-se definitivamente no coração destes dois momentos cruciais e está deslocando o domínio do horizonte da necessidade e da história evolutiva ao da vontade e da cultura.
Está desaparecendo para o nascimento, do qual conseguimos agora reproduzir em laboratório, quando e como queremos, toda a deslumbrante seqüência originária, a partir da disponibilidade de alguns tijolos biológicos de base. E está se esvaecendo para a morte, a cuja radicalidade “natural” (um instante antes de morrer ainda se está vivo, como recorda um moto célebre e como escreviam nos seus textos os juristas romanos, quando repetiam que “momentum mortis vitae tribuitur”, o momento da morte ainda pertence à vida), provisoriamente está sendo substituído com freqüência sempre maior, que bem brevemente se tornará a regra, uma zona cinzenta, insondavelmente intermediária, na qual se pode ser ao mesmo tempo vivo e morto, além e aquém do velho limite, homens e máquinas integrados simultaneamente (vocês entendem), ainda mortais e já, de certo modo, imortais. Estágios de divisa, nos quais bem cedo será possível não só manter indefinidamente os circuitos elementares da vida (sangue oxigenado que circula nas artérias), mas também, como acontecerá em muitos casos, as funções superiores de um pensamento e de uma personalidade, graças à predisposição de estruturas artificiais parcialmente ou totalmente extra-biológicas, que conservarão bem pouco do nosso plano anatômico originário, mas que permitirão à nossa mente continuar a trabalhar, não se pode imaginar dentro de que limites, e, seja embora com custos econômicos e sociais altíssimos, que se descarregarão sobre o resto dos viventes (para dizê-lo de modo brutal) não dependentes das máquinas.
E então? Para decidir onde parar, quando será o momento de dizer basta, qual será o tempo devido a cada um de nós, em que ainda poderemos trazer à baila a natureza? E qual natureza, se o espaço sempre mais premente entre bioengenharia e maquinismo eletrônico (se posso expressar-me assim), aquela que alguns definem como “bioconvergência”, terá criado e já está criando um espaço onde a naturalidade originária da vida será perceptível somente enquanto continuamente transformada pela ação consciente da nossa inteligência? Parece-me que tenha chegado o momento de dizê-lo: devemos preparar-nos a gerir a morte (enquanto tivermos o que fazer com ela), como o resultado de uma escolha responsável, pelo menos para a maior parte das mulheres e dos homens que habitam a parte tecnologicamente avançada do planeta, com respeito a uma prossecução da vida às condições (relacionais, afetivas, existenciais) tornadas possíveis pela tecnologia de tempos em tempos disponível, e não mais como um evento articulado por uma trama inelutável de conseqüências fora de controle.
Se fugirmos desta enorme responsabilidade, certamente, mas é este o humano diante de nós, ao qual estamos obrigados pela própria potência da técnica que estamos desenvolvendo, acabaremos, de certa forma, envolvidos numa rede de subterfúgios e de mentiras que não nos será de nenhum proveito, ele nos consignará, de todo despreparados, ao conturbador futuro que nos espera. Como aquela de ainda esconder as nossas escolhas por trás do respeito a uma naturalidade agora reduzida ao fantasma de si mesma, e de ser constrangidos, por exemplo, a mascarar com o véu da interrupção do sustento alimentar (para deixar que “a natureza siga o seu curso” – mas que hipocrisia! mas que natureza! sequer com as plantas se age assim!) a decisão de todo justificável, enquanto tal, de deixar cair o que resta de uma vida já sem esperança.
Sei bem que este discurso implica um salto de qualidade em nosso direito e em nossa ética, que eram firmes numa época na qual nos era concedido viver uma vida e aceitar uma morte bem diversas daquelas diante das quais nos encerram hoje. Mas, é precisamente sobre isto que é preciso começar a discutir: sobre morte responsável, eticamente e não naturalisticamente deduzida, e não mais sobre “eutanásia”, uma velha palavra que reflete um conceito atualmente desencaminhador. A Igreja poderia ser de grande auxílio neste setor, despendendo sua excepcional capacidade de magistério e de escuta. Isto, se ela decidisse evangelizar o nosso futuro, e não só um presente que já está se desvanecendo, e não invocasse mais o nome de Deus em defesa de um limiar biológico e cultural já superado, como já o fez para proteger a inútil imagem de uma Terra no centro astronômico do universo.
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Quando a técnica suprime a morte natural - Instituto Humanitas Unisinos - IHU