03 Novembro 2012
"As cartas às autoridades impressionavam os habitantes da colônia e até os representantes da metrópole pela habilidade que dominavam a língua, a caligrafia, as formas de tratamento e a lógica argumentativa das engrenagens do discurso diplomático. Hoje, os guaranis e kaiowás nos surpreendem com o conhecimento e a habilidade com que utilizam os recursos das redes sociais para chamar atenção para seus posicionamentos. Entretanto, no noticiário quase sempre desalentador a respeito dos índios no Brasil, os problemas de terra continuam no foco central", escreve Maria Cristina dos Santos, professora do Programa de Pós Graduação em História da PUCRS, em artigo publicado no jornal Zero Hora, 03-11-2012.
Eis o artigo.
Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) das comunidades guarani -kaiowás originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar nossa situação histórica e decisão definitiva. (...) Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira.
O fragmento acima faz parte da carta da comunidade guarani-kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay (município de Iguatemi de Mato Grosso do Sul), para o governo federal e o Ministério da Justiça. Foi publicada no Facebook em 20 de outubro, em resposta à decisão da Justiça Federal de Navaraí (MS), emitida no dia 29 de setembro, que decretava a expulsão definitiva dos 170 indígenas kaiowá que ocupam cerca de meio hectare da fazenda Cambará.
Oportuno esclarecer que a declaração do proprietário da fazenda, Osmar Bonamigo, ao site de notícias G1, deixa evidente a tentativa de mascarar a dimensão dos fatos: “Temos documentos e filmagens que já foram divulgados pela imprensa no dia da invasão. Havia dois ônibus cheios de índios”. Segundo o proprietário, os indígenas ocuparam cerca de 5 mil metros quadrados da propriedade que tem ao todo 700 hectares. Ou seja, fazendo as equivalências das unidades de medida, se a propriedade possui 7 quilômetros quadrados, a invasão dos kaiowás equivale a 0,005 quilômetros quadrados.
Atualmente, os guaranis se utilizam diplomaticamente da força da palavra – e mais ainda da palavra escrita e seu poderoso efeito de mobilização. Tal como nas situações de conflito do período colonial, quando as antigas lideranças cobravam das autoridades e conclamavam os demais indígenas a unirem-se nas reivindicações.
As cartas às autoridades impressionavam os habitantes da colônia e até os representantes da metrópole pela habilidade que dominavam a língua, a caligrafia, as formas de tratamento e a lógica argumentativa das engrenagens do discurso diplomático. Hoje, os guaranis e kaiowás nos surpreendem com o conhecimento e a habilidade com que utilizam os recursos das redes sociais para chamar atenção para seus posicionamentos. Entretanto, no noticiário quase sempre desalentador a respeito dos índios no Brasil, os problemas de terra continuam no foco central.
No Brasil, a situação dos guaranis-ñandevas e kaiowás sofre profundas alterações depois da Guerra do Paraguai (1864 – 1870). Inicia-se a ocupação sistemática do território guarani por diversas frentes de exploração econômica. Os indígenas passam a ser vistos como reserva de mão de obra e assistem à transformação da ocopação tradicional das terras e à derrubada da mata. No final do século XIX e início do XX, instalaram-se as primeiras fazendas de criação de gado.
Entre 1915 e 1930, o Serviço de Proteção aos Índios demarcou oito locais (Amambaí, Dourados, Caarapó, Sassoró, Porto Lindo, Jacarae’y, Pirajuí e Taquapery), com o total de 18.124 hectares para usufruto da população indígena. Ainda hoje, cerca de 80% da população guarani e kaiowá segue vivendo nas áreas de Dourados, Amambaí e Caarapó, onde existe a concentração de serviços de saúde, educação e assistência.
Em 1943, Getúlio Vargas implanta a política da Marcha para o Oeste, com o objetivo possibilitar o acesso à terra para milhares de colonos. Acentuam-se a instalação de empreendimentos agropecuários e o desmatamento. A introdução da soja e a mecanização agrícola, a partir dos anos 1970, provocam o fim das aldeias refúgio nos fundos das fazendas, nas quais os kaiowás e os guaranis ainda encontravam melhores condições de reproduzir o seu sistema social e cultural. Ao longo dos 1980, são retomados espaços territoriais reconhecidos como de ocupação tradicional dos guaranis e kaiowás. Com as garantias asseguradas pela Constituição de 1988, vários grupos empreendem, ao longo da década de 1990, a retomada de seus antigos territórios.
A noção de “terra índígena” diz respeito ao processo político-jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto que a de “território” remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma sociedade específica e sua base territorial. Assim, ao observarmos o mapa da distribuição territorial do estado do Mato Grosso do Sul ficam evidentes as disputas históricas entre indígenas e colonos/fazendeiros, revelam-se as causas dos confrontos atuais e anuncia-se a continuidade das disputas no futuro.
A divulgação da carta da Grande Assembleia (Aty Guasú) dos kaiowás que ocupam aquele meio hectare dos 7 mil metros quadrados da Fazenda Cambará evidencia a consciência avassaladora dos indígenas da realidade em que vivem e a nossa atitude comodista ao nos depararmos com notícias sobre os indígenas e suas extremas atitudes/reivindicações/invasões. Vulgarizamos o dizer, a escrita, a palavra e assim agimos ao contrário dos guaranis: eles não dizem que são dessa ou daquela forma, mas são o que dizem. A ameaça da carta do Aty Guasú divulgada nas redes sociais não é a de assistir a um suicídio coletivo à la Tim Jones, mas sim a de pensar sobre o quanto nosso cotidiano nos leva a vulgarizar essa arma da palavra escrita.
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A palavra como arco e flecha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU