Por: André | 10 Setembro 2013
Aproximando-se dos 60 anos e após viver quatro intensos anos como núncio na Venezuela, Pietro Parolin recorda que se encontrou com o agora Papa Francisco apenas uma vez na sua vida. O então subsecretário para as Relações com os Estados Unidos recebeu em seu escritório o arcebispo Bergoglio, que vinha para tratar de assuntos relacionados com a Argentina. Depois disso não mais se encontraram e, por isso, afirma, a 20 dias da sua ida a Roma, que a primeira coisa a fazer será “acostumar-se com o seu estilo e trabalho”.
Fonte: http://bit.ly/17Ug6eK |
A entrevista é de Roberto Giusti e publicada no jornal venezuelano El Universal, 08-09-2013. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Sua nomeação como secretário de Estado não adquire uma conotação especial se considerarmos que se vislumbram mudanças na Igreja nas quais você terá um papel importante?
Apesar das reformas que quer fazer na Igreja, o Papa Francisco cingiu-se de critérios tradicionais, segundo os quais quando temos um papa não italiano (e já são três: João Paulo II, Bento XVI e agora Francisco) o secretário de Estado é italiano. Isso limitava o leque de possibilidades de escolha. Depois, outro critério foi levar em consideração um membro do serviço diplomático da Santa Sé.
E você é.
Falar de si mesmo é difícil e eu preferiria não fazê-lo, mas imagino, como ele me disse, que havia vários candidatos para um cargo que significa ser o colaborador mais imediato do Papa e que entranha grandíssima responsabilidade. Imagino que o Papa terá pensado que eu possa ser, mais ou menos, a pessoa com capacidade para ajudá-lo nesta obra de renovação que quer empreender na Igreja Católica.
Ou seja, o Papa sabe da sua afinidade com as ideias reformadoras.
Provavelmente, o Papa tem essa opinião. A verdade é que não falei muito com ele e penso que quando tiver a graça e a oportunidade, lhe perguntarei o porquê desta escolha. Portanto, não sei a razão exata pela qual o Papa pensou em mim. Posso dizer, no entanto, que me sinto muito afim com sua maneira de entender a Igreja e, sobretudo, com o seu estilo de simplicidade e de proximidade com as pessoas, seu desejo de escutá-las e de tentar, realmente, que a Igreja possa voltar a ter uma presença significativa no mundo de hoje.
Um Papa, como dizem alguns teólogos, “na” Igreja e não “sobre” a Igreja?
Sempre dissemos isso na teologia tradicional. É a fórmula para indicar a estrutura da Igreja e a origem divina do Primado (do Papa). Agora, a Igreja é uma estrutura muito especial e as categorias políticas para analisar a realidade dos Estados não podem ser aplicadas automaticamente à Igreja. Esta não é nem uma monarquia nem uma democracia no sentido formal da palavra.
O que é, então?
Uma comunhão onde há diferentes responsabilidades, a última das quais recai sobre o Papa. Ele está em comunhão com os demais e não há Papa sem comunhão.
O teólogo Hans Küng escreveu sobre a necessidade que a Igreja tem, caso queira integrar-se ao futuro da humanidade, de um papa que se converta em uma espécie de João XXIV e que convoque um Concílio Vaticano III.
Falou-se muito disso e também da figura do cardeal Martini, arcebispo de Milão (que antes da sua morte disse que “a Igreja retrocedeu 200 anos”, nota do jornalista). Também se aventou a ideia do Concílio Vaticano III. Mas eu creio que devemos voltar ao Concílio Vaticano II, que fixou as diretrizes para que a Igreja cumpra sua missão no mundo de hoje. É importante aplicá-las, como disseram os Papas anteriores, cada um segundo seu próprio enfoque e isso é bonito. Ali se encontram quatro eixos fundamentais, uma mina inesgotável de ensinamentos que devemos colocar em prática.
Quais são essas diretrizes e por que não foram cumpridas depois de meio século?
Sempre se disse que leva bastante tempo para aplicar as decisões dos concílios. Isso é normal. Foi o que aconteceu com o Concílio de Trento (1545-1563), que implicou uma profunda transformação, depois da divisão da Igreja e do nascimento do mundo protestante. Isso não é surpreendente. Além disso, a Igreja é um organismo complexo e em seu interior há resistências.
Resistências às mudanças.
Sim. Mas essas mudanças não podem colocar em perigo a essência da Igreja, que tem uma continuidade na história proveniente da sua fundação por Jesus Cristo. Então se deve ser fiel. A Igreja nunca poderia mudar a ponto de adaptar-se completamente ao mundo. Caso fizesse isso e se perdesse nele, já não cumpriria sua missão de ser sal e luz para todos.
Quer isso dizer que a proposição das reformas implica um retorno ao cristianismo primitivo?
Sim. Levando em conta que temos dois mil anos de história. Agora, esta história não passou em vão. Não se trata de voltar ao passado, pelo menos nas formas externas, mas de voltar aos princípios fundacionais da Igreja. E quero sublinhar o tema da continuidade, porque às vezes parece (e não sei se exagero) que o Papa Francisco vai revolucionar tudo, mudar tudo.
Não é o que se espera dele?
Espera-se que ele ajude a Igreja a ser a Igreja de Jesus e a cumprir sua função. Isso todos os papas devem fazer. Mas a Igreja tem uma Constituição, uma estrutura, conteúdos que são os da fé e que ninguém pode mudar.
Não existem dois tipos de dogmas? Não há dogmas inamovíveis instituídos por Jesus e os que vieram depois, ao longo da história da Igreja, criados pelos homens e, portanto, suscetíveis de mudança?
Certamente. Há dogmas definidos e intocáveis.
O celibato não é...
Não é um dogma da Igreja e pode ser discutido porque é uma tradição eclesiástica.
Que remonta a que época?
Aos primeiros séculos. Depois da implantação, aplicou-se durante todo o primeiro milênio, mas a partir do Concílio de Trento insistiu-se muito nisso. É uma tradição e esse conceito sobrevive na Igreja porque ao longo de todos estes anos ocorreram acontecimentos que contribuíram para o desenvolvimento da revelação de Deus. Esta acabou com a morte do último apóstolo (São João). O que ocorreu depois foi um crescimento na compreensão e na ação da revelação.
A propósito do celibato...
O esforço que a Igreja fez para estatuir o celibato eclesiástico deve ser considerado. Não se pode simplesmente dizer que pertence ao passado. É um grande desafio para o Papa porque ele possui o ministério da unidade e todas as decisões devem ser assumidas como uma forma de unir a Igreja, não dividi-la. Então, se pode falar, refletir e aprofundar sobre estes temas que não são de fé definida e pensar em algumas modificações, mas sempre a serviço da unidade e tudo segundo a vontade de Deus. Não se trata de pensar no que me agrada, mas de ser fiel ao que Deus quer para a sua Igreja.
E o que quer?
Deus fala de muitas maneiras. Devemos estar atentos a esta voz que nos orienta sobre as causas e as soluções, por exemplo, da falta de clero. Então, devemos levar em conta, na hora de tomar decisões, estes critérios (a vontade de Deus, a história da Igreja), assim como a abertura aos sinais dos tempos.
Quando o Papa se pergunta “quem sou eu para julgar os gays?”, o que está querendo dizer?
Está dizendo que a doutrina da Igreja é muito clara sobre este ponto moral.
Jesus Cristo aceita a todos tal e qual são.
Sim, mas também pede que cresçamos e nos adequemos à imagem que ele tem de nós. A conduta de cada um, só Deus pode julgar e foi o que o Papa disse.
Você disse que se deve fazer as mudanças sem dividir a Igreja. Não acredita que uma maneira de decidir sobre sua aplicação será consultando a massa dos fiéis ou ao menos os bispos? Não se faz necessário uma democratização?
Certamente. Sempre se disse que a Igreja não é uma democracia. Mas é bom, nestes tempos, que haja um espírito mais democrático no sentido de escutar atentamente e creio que o Papa indicou isso como um objetivo do seu pontificado. Uma condução colegiada da Igreja onde possam expressar todas as instâncias. Depois corresponde a ele tomar uma decisão.
Quando se coloca a necessidade de mudanças a gente se dá conta de que o Papa, antes de falar, deu sinais dessas mudanças com o seu exemplo de simplicidade e austeridade. Esse comportamento, que contrasta com o da Cúria, não nos está dizendo que a Igreja está longe dos fiéis, que foi perdendo contato com a realidade social e que a reivindicação dos oprimidos está mais distante do que nunca?
Me parece fundamental a capacidade que o Papa tem para induzir as mudanças através do testemunho pessoal.
Algo sem precedentes na história da Igreja?
Não, penso em João XXIII. Mas eu não gosto de contrapor. Há estilos diferentes. Isso sim, devemos aceitar e é normal porque a Igreja é um jardim onde há flores de diferentes formatos, cores e perfumes. Então, há diferenças entre os papas. Mas o Papa Francisco está incidindo sobre algo tão importante como a aproximação da Igreja aos mais pobres. Esse é o sentido da Igreja, que não existe para si mesma, mas para levar Jesus à humanidade. E que Ele seja vida em abundância para a humanidade e, sobretudo, para aqueles que não a tem. A Igreja é uma ponte, assim como o papa, entre Deus e sua revelação e redenção da humanidade.
Outro sinal da determinação do Papa não está em sua decisão de investigar os atos de corrupção?
O Papa sente de uma maneira especial o tema da corrupção por vir de um continente onde o problema é muito grave e esse é um dos grandes desafios da América Latina. Ele o enfrentou na Argentina, e agora retoma o que vinha condenando como arcebispo. Este é um ponto fundamental sobre o qual quer trabalhar, porque a corrupção acaba com as sociedades e os Estados.
Há também a questão da sanção exemplar daqueles que caíram na pedofilia.
Nisto o Papa está em sintonia com o que se faz desde os tempos de Bento XVI: tomar uma postura forte e especialmente com as vítimas, para que estes fatos não se repitam.
Imagino que não tenha sido fácil.
E não foi. Eu espero que o país possa superar a polarização e o clima de conflitividade. Há diferenças, mas estas não devem converter-se em divisões e contraposições, mas em enriquecimento mútuo. De maneira que o importante é que a Venezuela propicie pontos de encontro em um clima de justiça, democracia e solidariedade.
Uma tarefa pendente é a nomeação de seu sucessor na Venezuela.
Imagino que poderei indicar algumas pessoas que me parecem aptas para este cargo, embora a decisão final corresponda ao Papa.
O que pensa que vai acontecer com outras confissões? É possível a reunificação com a Igreja Católica do Oriente? Como se colocam as relações com o Islamismo?
O Papa manteve relações próximas e fraternas com os representantes de outras religiões na Argentina. Além disso, esta é uma diretriz clara do Vaticano II: diálogo inter-religioso depois do diálogo intra-religioso. Com as confissões cristãs o objetivo é a unidade. É possível alcançar isso? Nós esperamos que sim. Já se percorreu muito caminho com os papas anteriores. Os tempos são os tempos de Deus. O Papa está fazendo o possível para chegar a uma unidade visível. Quanto às outras religiões, devemos colaborar para que Deus não desapareça do horizonte, porque há uma secularização, sobretudo na Europa, mas também na América Latina e na Venezuela e isso significaria a perda do sentido de Deus.
A perda da fé.
Sim, esse é um tema forte em Bento XVI. E também o da paz e da convivência pacífica. Nisso as religiões têm um papel fundamental.
O Papa demonstrou um grande interesse pela situação da Síria e você sabe disso.
Certamente tenho certa experiência nesse tema. Como Igreja, temos em nossas mãos a possibilidade de participar da vida internacional através da diplomacia.
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“A renovação implica um retorno ao cristianismo primitivo”. Entrevista com Pietro Parolin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU