26 Mai 2014
O título de principal formulador do programa Fome Zero e o apoio maciço dos governos brasileiro, africanos e latino-americanos deram ao agrônomo José Graziano da Silva, de 64 anos, a incumbência de conduzir os esforços globais para reverter um cenário sombrio onde ainda hoje cerca de 840 milhões de pessoas em todo o planeta aparecem sem as devidas condições de se alimentar ao menos três vezes por dia.
A entrevista é de Luciano Máximo, publicada pelo jornal Valor, 23-05-2014.
Alçado a diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em janeiro de 2012, Graziano chega ao terceiro ano de mandato apostando na difusão de políticas públicas de segurança alimentar adotadas no Brasil para vencer a fome no mundo.
Em um dos intervalos da 3ª Conferência Regional da FAO para América Latina e Caribe, que aconteceu no começo deste mês na capital chilena, Graziano disse ao Valor que a FAO não se priva de usar o "temperinho brasileiro" da merenda escolar fornecida por pequenos produtores, do programa de compras públicas de alimentos de agricultores familiares e da formação de empresas estatais de abastecimento (nos moldes da Conab).
Cada vez mais o organismo multilateral liderado pelo ex-ministro extraordinário de Combate à Fome do governo Lula estimula governos em todo o mundo a lançar mão dessas políticas para combater a fome. Sob a gestão de Graziano, pelo menos oito países da América Latina e do Caribe adotaram uma dessas três experiências.
Eis a entrevista.
Nos mais de dois anos à frente da FAO, o sr. está promovendo com ênfase aos países membros que adotem programas públicos de aquisição de alimentos da agricultura familiar, de compras de merenda escolar de pequenos produtores no entorno das escolas e criem empresas estatais de abastecimento. São políticas que o sr. conhece bem e base da política de segurança alimentar no Brasil. O sr. está dando uma cara brasileira à FAO?
Não quer dizer dar uma cara brasileira. Gosto de uma frase que o Lula usa muito: "Nossa cabeça reflete o chão que a gente pisa". Eu levei para a FAO não apenas experiências do Brasil, mas o que também aprendi no Chile durante os seis anos em que fui o responsável pela FAO América Latina e Caribe. Aprendi muitas coisas em vários lugares e que foram muito usadas no Brasil. O Fome Zero foi produto de uma pesquisa de longos anos feita em muitos países. Eu estive na Califórnia por seis meses antes de montar o Fome Zero. Lá acompanhei os circuitos de produção de alimentos para consumo local. Estive em Cuba vendo a experiência dos paladares [pequenos restaurantes privados de preço acessível que servem comida típica cubana com alimentos fornecidos por agricultores familiares]. A roda a gente não inventa todo o dia. Eu sou contrário à experimentação social, não dá certo. Temos que pegar as coisas que deram certo comprovadamente e fazer um 'scale up' [dar escala]. O Fome Zero começou em nível nacional. Tinha muitas dificuldades, faltava estrutura, não tinha gente, mas a meta no primeiro ano era cobrir o território brasileiro. Ensinamentos são importantes, mas não vêm só do Brasil. Outro exemplo: temos um tremendo sucesso no apoio à agricultura familiar, mas não inventamos. É um programa que vem dos Estados Unidos, Canadá, da Europa. O Brasil adaptou.
Mas a experiência no Brasil é a base de seu trabalho hoje?
Fazemos [os projetos da FAO] com o temperinho brasileiro, o que ajuda. Com a compra de merenda escolar, que é um tremendo sucesso hoje no Brasil, nós conseguimos vencer a barreira da lei de licitação, imposta a qualquer compra pública. A gente fazia licitação para comprar meia dúzia de ovos e dois pés de alface. Hoje as escolas compram dos produtores vizinhos produtos frescos sem fazer licitação. Isso foi gradativamente sendo implementado, então copiar é bom, não se perde tempo.
Então apoio estatal à agricultura familiar e à merenda escolar e empresas públicas de abastecimento são políticas defendidas pela FAO sob o seu comando?
Sim, pelo êxito e pelo baixo custo que têm. Em compras públicas, o Brasil continua comprando de produtores, mas compra no lugar certo e na hora certa. Isso dá uma sinalização de preço. Hoje não é preciso fazer grandes estoques para ajudar a sinalizar preços. Compra e deixa o produto lá, não transporta, isso ajuda muito o abastecimento de regiões mais deficitárias. O programa de compras é um sucesso e um cartão de visitas brasileiro. Já o programa de merenda escolar comprada de pequenos produtores locais comprovadamente ajuda no aumento da frequência escolar e na redução da repetência. Oito países da América Latina e do Caribe implantaram recentemente ou estão em fase de implantação [El Salvador, Nicarágua, Honduras, República Dominicana, Costa Rica, Guatemala, Paraguai e Bolívia].
"Quatro commodities representam 80% do consumo de alimentos. É uma concentração brutal"
Como chefe da FAO, o sr. também manifesta preocupação com a compra de terras estrangeiras por empresas e nações?
Isso nos preocupa muito. Estamos ajudando os países a modernizarem suas legislações sobre o tema. O Chile tem uma legislação que vem da reforma agrária do [ditador chileno Augusto] Pinochet. Naquela época, não se previa compras de terras por grupos empresariais nem por empresas estatais estrangeiras ou nações que criaram fundos soberanos para comprar extensões de terra para produzir e exportar. Isso é uma novidade: vem um país qualquer e compra um município todo. Os países não têm mecanismo de defesa. O que estamos pregando é a necessidade de uma revisão das legislações para fazer frente a isso.
Quais são os riscos?
A extensão desmesurada da urbanização, criando especulação imobiliária em áreas produtivas.
Como avalia sua gestão na FAO nos últimos três anos?
Foi um começo muito difícil. A FAO é uma instituição com uma cultura sedimentada. Algumas práticas precisam mudar e isso leva tempo, gera resistência interna e os resultados não são muito visíveis no início.
Fale dessas dificuldades...
Uma muito grande foi descentralizar. Ninguém quer sair de Roma, não é mesmo? Sair de Roma para ir trabalhar no Sudão do Sul não é uma opção voluntária. Então nós criamos uma nova política de mobilidade dentro da organização. Antes essa política era voluntária e tinha um sentido inverso, drenando os melhores recursos humanos dos países para Roma. Agora a rotação prevê maior presença local. Isso permite atacar de forma mais efetiva os problemas.
Houve enxugamento?
Recursos humanos é um tema superprotegido na FAO, baseado na época de fundação do sistema das Nações Unidas, no pós-guerra, quando precisava proteger as pessoas nas regiões de conflito. Hoje ainda há muitas dessas regiões, mas há situações em que o apoio de recursos humanos não é necessário. Por exemplo, todo mundo que vai para Roma tem um subsídio de aluguel por sete anos. Isso se justificava quando Roma ainda estava destruída pela guerra. Por que manter esse subsídio 60 anos depois? São conquistas do passado que tinham razão de ser e que perderam a razão de ser no presente. Elas têm que ser revistas.
O sr. assumiu a FAO num contexto de crise econômica, principalmente nos países ricos. Houve perda de orçamento na sua gestão?
A FAO enfrenta uma política de crescimento nominal zero do orçamento que já dura dez anos, o que implica mais de 25% em perdas. Temos um orçamento de US$ 1,2 bilhão por biênio e um segundo orçamento similar referente a contribuições voluntárias. Uma das mudanças importantes que eu fiz foi juntar os dois. Hoje nós temos as mesmas regras de gastos que tínhamos antes, quando os orçamentos eram separados.
Está dando para fazer mais com esse orçamento?
Sim, porque temos combatido muitos desperdícios, implementado políticas de austeridade em diferentes setores, principalmente reduzindo a burocracia. Tenho apostado na modernização, no uso da informática. Implementei um sistema que se chama GRMS (Global Research Management System), que conecta todas as 120 unidades da FAO no mundo. Quando estava no escritório regional do Chile [de 2005 a 2011], o Caribe todo mandava via malote cópias ou escaneavam documentos contábeis que eram novamente digitalizados em Santiago para serem enviados a Roma. Hoje os 33 países da região estão online, basta apertar um botão e eu sei o que está acontecendo lá. Apostar nisso ajudou a reduzir gastos e o número de funcionários em funções burocráticas.
Sobram mais recursos para pesquisa e trabalhos de cooperação e assistência técnica...
Exatamente. Estamos reconfigurando os recursos aplicados em cada país. Em 2011 nosso gasto com pessoal era de 76% do orçamento. Minha meta é recuperar o padrão dos anos 1960, com despesas com pessoal e outras despesas em 60%. Somos como uma universidade, uma organização de conhecimento, tem que investir em pessoal, mas não para atividades excessivamente burocráticas.
As eleições da FAO acontecem no ano que vem. O sr. está interessado na reeleição?
Meu mandato vai até julho de 2015. Posso me reeleger para mais quatro anos, mas não estou em campanha. O calendário de campanha começa em janeiro de 2015, é a abertura da temporada de caça. Tenho desestimulado movimentos, ações e declarações nessa direção, não é a hora. Neste ano é o momento de implementar o que nós aprovamos, mostrar que podemos fazer as coisas melhores, como estamos fazendo.
Qual a importância para a posição do Brasil no cenário mundial ter um líder na FAO?
Isso você tem que perguntar lá no Brasil. O que eu posso dizer é que tem muita gente querendo esse lugar. A disputa na última eleição teve seis candidatos, foi apertada, ganhei por dois votos. Países importantes fizeram força até o último momento [para indicar seus representantes]. Eu particularmente me sinto estimulado por ter um colega, o [Roberto] Azevêdo na liderança da Organização Mundial de Comércio (OMC), apesar dela não ser parte do sistema das Nações Unidas. Eles acabaram de aprovar na Rodada de Bali [dezembro de 2013], avanços em termos de segurança alimentar, com entendimento sobre compras de agricultura familiar e formação de estoques de emergência. Esses itens abrem a possibilidade para o desenho de novas políticas públicas na área de abastecimento. Temos muito o que colaborar com a OMC.
Como o sr. vê a produção de alimentos nos próximos anos?
O mundo passa hoje por uma reação ao movimento de comoditização que se seguiu à globalização. No setor de alimentos, a globalização financeira restringiu o número de produtos [cultivados e comercializados]. Quatro commodities respondem por 80% do consumo mundial de alimentos hoje: milho, trigo, soja, arroz. Inclua a batata e esse percentual vai a 90%. Ou seja, é uma concentração brutal. Produtos com importância regional foram abandonados. É o caso das leguminosas. Veja o feijão brasileiro, um produto altamente proteico, mas sem mercado internacional. Quando falta feijão no Brasil é uma dificuldade imensa achar onde comprar.
Vamos assistir a uma diversificação da produção de comida no mundo no futuro?
[Essa diversificação] ajuda a combater a fome e todos esses efeitos perversos da comoditização, que resultaram no fast food, a comida pronta com alto teor de gordura, sal e açúcar. A possibilidade de diversificar para comer produtos naturais, frescos, comprados localmente, estimulando mercados locais, muda o panorama da produção e do comércio de alimentos. Há muitos países e muitas regiões onde a única atividade produtiva é a produção de alimentos. Nunca podemos esperar que em certos lugares uma grande indústria chegue e dinamize a região. Ou se dinamiza os mercados locais ou aquela região será sempre deprimida e, mais tarde, abandonada. Pequenos países do Caribe têm uma grande receita com turismo, mas metade dessa renda é para importar comida para alimentar a população e os turistas. É muito caro, insustentável.
"Vemos uma pequena redução mundial nos preços de alimentos, mas não teremos a volta a um nível anterior a 2007"
Essa reação à comoditização já produz alguma mudança?
Hoje se vê recuperação de zonas rurais como área de moradia e de agricultura familiar. Populações de alta renda, principalmente que trabalham usando mecanismos de tecnologia, estão buscando para viver ou zonas rurais ou cidades menores com boa estrutura de serviços. As megalópoles não comportam mais um fluxo de migração como o que assistimos nos últimos 50 anos. O Brasil urbanizou entre 1965 e 1975 uma população inteira da Argentina, 40 milhões de pessoas. Não dá para fazer mais isso, precisamos preservar esses 20% das populações no campo.
Como o sr. projeta o comportamento da inflação de alimentos no mundo?
É algo estável. Vemos uma pequena redução de preços, mas não teremos a volta dos preços a um nível anterior a 2007, os chamados preços de banana. Os preços altos que chegaram com a crise de 2007/2008 vieram para ficar, pelo menos até essa reconfiguração produtiva se estabelecer, mas não vejo inflação. O que há é oscilação de preços. Em alguns momentos, há um salto no preço do chuchu, como o Delfim costumava dizer, mas é um movimento temporário.
"Temporária" é como o governo brasileiro costuma justificar a inflação no país, não?
Não acompanho especificamente o movimento de preços no Brasil por absoluta falta de tempo. Em breve vamos divulgar avaliação da inflação que mostrará uma queda dos índices de preços de alimentos no mundo, que é muito bem-vinda.
O sr. chegou a dizer que a fome na América Latina tem a cara da mulher indígena, pobre, mãe de muitos filhos. Dá pra dizer qual é a cara da fome no mundo?
A fome tem muitas caras. Quando falei da mulher indígena, estava fazendo uma extrapolação. A cara da fome no Brasil tem mais a ver com os desempregados nas margens das periferias das grandes cidades ou com o nordestino. A fome tem muitas caras. O difícil do combate à fome é isso, as diferentes situações específicas que precisam ser contempladas [por políticas públicas, cooperações internacionais, assistência técnica da FAO]. Por isso é importante a descentralização das ações, estar perto de cada uma dessas diferentes experiências. Hoje nós temos uma capacidade muito maior de medir a fome, nossas estatísticas melhoraram muito, favorecendo as ações contra esse mal. Desde que atingimos o pico da fome de 1 bilhão de pessoas durante o ciclo de alta dos preços de alimentos em 2007 e 2008, a partir daí viemos reduzindo a fome sistematicamente. Hoje são 840 milhões de habitantes que passam fome no mundo.
Governos da América Latina e do Caribe se comprometeram há alguns anos a acabar com a fome na região até 2025. Mas o grosso do problema está na África. É possível estabelecer meta para acabar com a fome no continente africano?
No dia 26 de junho vou participar da reunião de cúpula da União Africana. Já apresentamos uma proposta para que os governos africanos se comprometam com a fome zero até 2025. Vou defender a proposta e espero que a África se some à iniciativa. Na Ásia, temos vários países que também adotaram isso como meta, inclusive o Timor Leste, um país muito complicado.
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Na FAO, Graziano aposta em políticas adotadas no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU