06 Mai 2014
"Nosso modelo de segurança, porém, não caiu do céu. Foi criado pelos constituintes de 1988 e manteve alguns princípios impostos pela ditadura militar, inclusive a militarização do braço preventivo da polícia", escreve Guaracy Mingardi, doutor em Ciência Política pela USP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em artigo publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo, 04-05-2014.
Eis o artigo.
O médico Ricardo Seiti morreu no domingo passado, após ser baleado num tiroteio dentro do 2º. DP de Santo André. Seiti estava na delegacia para registrar um B.O. de um acidente de trânsito quando foi alvejado numa confusão provocada pela própria polícia paulista.
Robert Peel pode ser considerado um dos fundadores do Estado moderno. Em 1829, quando era secretário do Interior da Inglaterra, introduziu uma série de reformas no direito penal britânico, mas é lembrado até hoje por ter criado a Polícia Metropolitana londrina (Metropolitan Police Act). Num país que prezava a liberdade e tinha medo de uma polícia truculenta ou a serviço do despotismo, Peel modelou uma organização baseada no profissionalismo, eficiência e legalidade. A nova polícia deveria ser regida por alguns princípios básicos, dos quais o sexto pregava o seguinte: "A polícia usa a força física na medida necessária para garantir a observância da lei ou para restaurar a ordem apenas quando o exercício da resolução pacífica, da persuasão e do aviso for insuficiente".
Quase dois séculos depois, ainda não são todos os que aprovam esse modelo. Parte significativa da sociedade brasileira acredita que são ideias ultrapassadas, que bandido bom é bandido morto. Esse ponto de vista não é novidade e independe de classe social ou grau de instrução. Mas o que dizem os apologistas da força quando a polícia mata cidadãos comuns, seja por engano ou simples incompetência?
Muitos se calam, enquanto outros ficam indignados, reclamando do tipo de atuação policial que até o dia anterior aprovavam. A desculpa é que o policial deveria saber distinguir o criminoso do "cidadão de bem". Como se isso fosse possível sem o uso de uma bola de cristal. Outra reação é culpar a instrução, o treinamento dado aos policiais. No dia em que a TV exibiu uma mulher cujo corpo foi arrastado por uma viatura da PM em Madureira, uma repórter televisiva culpou a má formação, como se alguém tivesse de ser ensinado a fechar direito o porta-malas do carro.
Esse caso é apenas um de muitos, ocorridos nos últimos meses, que resultaram em mortes desnecessárias causadas pela incompetência ou desleixo. Os mais recentes foram os homicídios do bailarino no Rio e o do médico em Santo André. O primeiro morreu por causa do desleixo de policiais que acreditam que trocar tiros em uma área densamente povoada é normal - afinal, são só favelados. O segundo, pela incompetência de um policial que começou um tiroteio dentro da delegacia quando viu pessoas correndo, o que seria quase cômico se não tivesse resultado numa tragédia.
Assim como o episódio da mulher arrastada, nenhum dos dois casos ocorreu por falta de instrução. A formação melhorou muito desde os anos 1980, quando frequentei a Academia de Polícia Civil de São Paulo. Naquela época, só para dar um exemplo concreto, os alunos do curso de investigador deram apenas 12 tiros durante os quatro meses do curso. Com certeza o policial civil aprendeu muito mais que isso na Academia, inclusive a não atirar a esmo, sem motivo válido. E os policiais militares cariocas evidentemente aprenderam no Centro de Formação de Soldados do Rio que tiroteio numa área residencial pode ser um desastre.
É evidente que a formação policial não é uma maravilha, mas não é a culpada pelas atitudes que tornam o Brasil um dos locais do mundo onde mais policiais matam e morrem. O principal vilão da história é o sistema de segurança pública brasileiro - ultrapassado, ineficiente e caro, mas que os parlamentares desconhecem e as instituições policiais querem manter a todo custo. Um dos produtos mais nocivos desse modelo é a falta de controle dos chefes sobre seus subordinados e a existência de uma cultura organizacional que faz com que a incompetência não seja punida. Em vários Estados, um oficial da PM ou delegado incompetente tem uma carreira normal, sendo promovido por tempo de serviço durante 30 anos sem ter feito nada de útil para a sociedade.
Outra faceta da cultura institucional é a distância que as polícias têm da sociedade, o que provoca repulsa a qualquer prestação de contas. Muitos policiais expressam a ideia de que, quanto menos a sociedade souber sobre suas atividades, melhor. Um dos motivos desse raciocínio torto e antidemocrático é que, quanto mais secretas forem as ações, menos argumentos terão aqueles que propõem mudanças no sistema. Portanto, as carreiras dos incompetentes não correm risco. E o sucesso dessa postura só foi possível porque eles conseguiram vender para seus colegas eficientes que o silêncio e o distanciamento da sociedade é bom para todos.
Nosso modelo de segurança, porém, não caiu do céu. Foi criado pelos constituintes de 1988 e manteve alguns princípios impostos pela ditadura militar, inclusive a militarização do braço preventivo da polícia. Com isso, afastou a prevenção da investigação, criando duas polícias rivais que passam mais tempo discutindo entre si do que aprimorando o trabalho. Só quem não vê isso são os governadores, que batem na tecla da integração (que não existe) entre as instituições. Enquanto isso os projetos de mudança na segurança hibernam no Congresso, só voltando à baila quando acontece uma desgraça. Como se não bastassem as mortes desnecessárias e a criminalidade crescente.
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