Por: Caroline | 25 Abril 2014
“Ninguém poderia se dizer feliz sem ter sua parcela na felicidade pública,
ninguém poderia se
dizer livre sem ter sua experiência própria na liberdade pública,
ninguém poderia se dizer
feliz ou livre sem participar e ter sua parcela no poder público”
Hannah Arendt
A reivindicação por uma comunicação isenta de restrições para a troca de dados, o acesso a sítios, plataformas e/ou conteúdos na Internet foi erroneamente chamada de “Neutralidade da Rede”. E por que errônea? Porque sob esta visão da Rede, como fato tecnológico, ela passa a ser concebida como um simples instrumento que deve ser mantido longe da intervenção de interesses, juízos e valores do ser humano. O paradoxo é que aqueles que defendem esta postura, ao reclamar não apenas contra a intervenção de certos atores na “Rede das Redes”, estão admitindo que não se trata apenas de um meio instrumental, mas sim um produto da intervenção humana, na qual eles mesmo ganham a vida. Desse modo seu pedido está carregado de valores, o que chega a derrubar a tal “neutralidade” de seu discurso. Desse modo Nelevis Báez escreve sobre essa tal "neutralidade", a relação da rede com a ideologia liberal e problematiza uma comunicação que podria levar a construção de Soberania nacionais, através da “construção de um novo tecido do coletivo”. O artigo é publicado por Rebelión, 16-04-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Uma coisa é querer evidenciar a manipulação e a intervenção existente na Internet por parte de certos atores, outra é fazer um chamado a “neutralidade”. A “neutralidade” neste chamado é entendida como a não-intervenção, particularmente por parte do Estado. Nessa linha o Estado não deveria interferir com nenhuma ação e deixar que, tanto a informação quanto a desinformação (1), fluam graças à “liberdade” inerente a um instrumento: a Rede. De tal maneira que, se a tese da “neutralidade” científica nos apresenta a objetividade como razão de ser da geração de conhecimentos, afastando-nos das diferentes interpretações provenientes de diferentes contextos culturais; a “neutralidade” da Rede sugere que a dita tecnologia é um objeto separado dualisticamente do sujeito e de seu contexto social onde não se deve permitir nenhuma intervenção, dado que tal intervenção – considera-se – contamina negativamente o nosso objeto: a Rede.
Todavia, podemos argumentar que esta separação dualística nunca tenha existindo ao recordar, por exemplo, a estreita relação entre a Internet e o processo de Globalização, principalmente a partir dos anos 90. Nesses anos o “global” foi ganhando maior preponderância no conjunto das transformações culturais, políticas e econômicas que ocorreram nas diferentes sociedades convocadas a formarem a sociedade “global”. Esta convocatória ocorreu através da confluência de muitos mecanismos, mas não dá lugar para dúvidas em relação à Internet, considerada o grande meio para a transmissão de dados a nível mundial, que acabou por transformar-se no espaço ideal para impulsionar uma “nova economia”, que tem o conhecimento como eixo central de intercâmbio e consumo (2).
Mesmo que desde os anos sessenta e setenta já tenha se falado sobre a “Sociedade da Informação”, a “Economia da Informação” e a “Revolução das Tecnologias da Informação e Comunicação”, foram nos anos 90, com o desenvolvimento da Internet, que consolidou-se a nova estrutura de mercado que tem a informação como “matéria-prima”. Nesse sentido, a discussão sobre a gestão da Internet, no início, centrava-se no acesso a tal tecnologia, já que em seu início foi um projeto de comunicação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, assim como dos Centros de Investigação, contudo, posteriormente, o debate centrou-se, como podemos observar nas relações comerciais que poderiam ocorrer na participação de provedores de serviço e em como deveria ser realizado o comércio eletrônico.
Iniciou-se o comércio na Rede e assim todo um sistema de produção de conteúdos, liderado por grandes corporações de comunicação (3) junto a empresas de telecomunicações e fábricas de hardware y software (4) dos Estados Unidos:
Edward A. Comor observa, com razão, que essas empresas são algo mais do que simples canais de intercambio de ideias, vias de acesso para mercados ou meios de difusão de produtos digitais. Em muitos casos, são também geradores e reprodutores de ideologia liberal, de formas de vida consumista e de cultura popular norte-americana (pop culture). Por isso o esmagador domínio estadunidense nos processos da globalização cultural contemporânea, que Neal E. Rosendorf atribui, principalmente, as grandes empresas que produzem e distribuem produtos de cultura popular, pois contam com um acesso sem igual aos meios de produção e difusão de ideias e de formas de vida por todo o mundo (Ibáñez, 2006, p. 14).
Esse é o ponto no qual evidenciamos que, desde suas origens, a Rede não tem sido neutra, mas muito pelo contrário, tornou-se um espaço de poder para a difusão do paradigma da globalização. De onde passou a ser transmitida a mesma informação, produtos culturais como filmes, publicidade, etc.; para diferentes partes do mundo. Isto foi possível através do projeto, chamado pelo vice-presidente dos Estados Unidos, Albert Gore, de “Super-rodovias da informação”, o qual tratava da constituição de uma rede de sistemas de comunicação digitais e telecomunicações para o fluxo global de informação. Ampliar o alcance da banda através da tecnologia de fibra ótica significaria não apenas ter mais informação de maneira mais rápida, mas ir muito mais além, pois implicaria o início de novas relações socioculturais, que ganhariam vida no virtual, mas que definiriam a política e a economia mundial.
O Governo de Clinton iria criar a Infraestrutura Nacional da Informação (NII), o conjunto de bens e serviços que possibilitaria a interconexão na “Era da Informática” e onde o Estado teria uma função de árbitro, como diria Gore: “Atuar como catalisador para promover a inovação tecnológica em suas novas aplicações (...) comprometer importantes programas e fundos governamentais de investigação a fim de ajudar o setor privado para desenvolver e por em prática a tecnologias necessárias para a NII e desenvolver as aplicações e serviços que maximizem seu valor para os usuários” (1994, s.p.).
Desta maneira, um novo modelo e relação entre a tecnologia e a sociedade instauravam-se, em que a globalização adquiriria várias perspectivas: de um lado, poderíamos refletir sobre esse espaço no qual a nação seria a unidade de análise para o estudo da tecnologia, já que são elas que inovam e difundem a inovação, tendo seus pressupostos para a investigação e o desenvolvimento (Tecnonacionalismo). E, por outro lado, poderíamos concebê-lo como um espaço que permitiria ao mercado da informação implantada em todo o globo que tem a tecnologia como o motor para a “aldeia global”, na qual a nação seria apenas um meio para que se desenvolva a nova economia e cultural global (Tecnoglobalismo) (Adaptado e traduzido de Edgerton, 2007, p. 1). Na primeira categoria, o Tecnonacionalismo, é fundamental a inovação gerada nos Sistemas Nacionais da Inovação, isto é, o conhecimento inovador produzido a nível nacional sem dar-se conta da forma utilizada para aumentar a obtenção da tecnologia do exterior. Todavia, a produção, distribuição e transferência tecnológica passaram a ser crucial nos novos modos de desenvolvimento econômico e o Tecnoglobalismo, a partir do surgimento das empresas multinacionais, foi adquirindo maior protagonismo na economia internacional.
Sob as duas categorias promoveu-se a “Economia do Conhecimento”, ou com as políticas implementadas pelos Estado-nações com respeito a gestão da ciência e a tecnologia, ou mesmo com as diretrizes emitidas desde o capital internacional; e a Internet foi um espaço que permitiu o fortalecimento de tal economia na qual diminui-se o caráter público do conhecimento, ao considerá-lo uma mercadoria. A privatização, o individualismo e com ele a fragmentação social, a desintegração social em diferentes grupos de acordo com interesses particulares mediante a não adesão a concepção de comunidade com valores comuns, prevalecendo o indivíduo separado do coletivo, que acabaram caracterizando a chamada “sociedade globalizada”.
Isso demonstra que a neutralidade não tem estado presente na Rede como feito sócio-tecnologico, e permite pensar que os movimentos sociais poderiam apropriar-se da mesma para reverter tal realidade. O convite é para gerar novas relações onde o conhecimento já não seja concebido como mercadoria, mas como uma ferramenta de poder para o encontro de diferentes visões que trabalhem no conjunto, não para mundo mercantilizado, mas para o cuidado e cultivo do bem comum. Isto implicaria uma relação harmônica entre tecnologia e sociedade para o beneficio desta última e não para sua destruição, uma Rede que permita sair da experiência de ofuscação e que permita refletir sobre a lógica da manipulação e persuasão daqueles que exercem o controle da tecnologia e desta maneira, gerar um conhecimento realmente libertador.
Por outro lado, podemos perceber como a postura que refuta a suposta neutralidade da tecnologia concebe o modo no qual trata-se de desmantelar uma construção social do que é inerente a esta, como são os valores e interesses próprios do contexto sociocultural do qual emerge. É assim que rechaça uma tese que alimenta uma visão unidimensional da sociedade e, neste caso, a compreensão da Internet como um espaço “neutro”. Perguntamo-nos então: Terá algum sentido fazer um clamor ao chamado valor “universal” de não intervir no acesso e uso da Rede, mesmo reconhecendo as relações que podem estar embutidas nesta?
Relações de poder que ganham vida quando tratamos do tema da “liberdade” de expressão. Assim o chamado para um Internet “livre” e vão ao encontro da apologia de uma concepção enganosa em relação ao que a “liberdade” de expressão se refere. A concepção de “liberdade” dentro da defesa da “neutralidade” da Rede fundamenta-se no livre acesso para certos fins e a diminuição do controle. Deste modo, considera-se um direito de acesso ao espaço, como a Rede, como qualquer finalidade esquecendo, supostamente, a violação de outros direitos em nome de uma “liberdade” mal entendida.
Para compreender porque falamos de uma “liberdade” mal entendida, podemos revisar algumas abordagens sobre o “pluralismo na comunicação”. De acordo com Barbero: “A questão do pluralismo converte-se em um enclave de paradoxos e desafios para a comunicação: o que está em jogo não são apenas problemas de “expressão” – um pouco mais de espaço na imprensa, ou de tempo no rádio e na televisão para as minorias ou os radicais -, ou são de outro calibre e espessura tanto de uma perspectiva filosófica como política?” (1995, p. 300). Quer dizer, o paradoxo ao qual faz referência trata do que planeja o modelo de comunicação promovido pela globalização, a reivindicação de uma liberdade baseada na garantia do acesso aos meios, sem importar se a variedade de meios existentes concedem a capacidade de compreender e questionar o que estes transmitem.
O pluralismo que promove o homem universal globalizado, na realidade, leva consigo um discurso que produz a fragmentação social. Instaura-se um constrangimento nas sociedades pós-modernas orientadas em diferentes “subsistemas”, impossibilitando a construção de uma identidade que ajuda a resolver as consequências que tal fragmentação traz consigo. De tal maneira que, encontramo-nos frente a um:
“Cenário, expressivo como nenhum outro, das contradições desta época, os meios nos expõem cotidianamente a diversidade dos gostos e as razões. A diferença, contudo, também é para a indiferença, a crescente integração do heterogêneo das raças, das etnias, dos povos e dos sexos no ‘sistema de diferenças’ com o que, segundo Baudrillard, o Ocidente conjura, neutraliza e funcionaliza os ‘outros’: ‘enquanto a diferença prolifera ao infinito na moda, nos costumes, na cultura, a alteridade dura, a da raça, a loucura, a miséria terminou ou se transformou em um produto escasso’. Como se fossem submentidas apenas ao ‘esquema da estrutura de diferenças’ que o Ocidente propõe, como nos fosse possível nos relacionar com as outras culturas (...) Contanto que ninguém busque as razões desse esquema, que desde os meios neutraliza as diferenças (...) Sua racionalidade não é outra além a do contraditório movimento de globalização e fragmentação que configura o espaço-mundo da economia e cultura hoje” (Barbero, 1995, pp. 301-302).
Por isso, é urgente aceitar nossa natureza heterogênea e diversa, não apenas no discurso, mas também na prática comunicacional; mediante a construção de espaços que em vez de fragmentar permitam a construção comunitária de identidade e assim, o resgate de uma verdadeira concepção de liberdade para o bem comum. O desafio consiste em possibilitar o encontro de visões apresentadas como divergentes, não para buscar uma só visão que tenda ao fortalecimento do interesse individual e “neutralize as diferenças”, mas para aprofundar a construção coletiva da identidade nacional no fortalecimento do bem público.
A Liberdade como a possibilidade de gerar um conhecimento público verdadeiramente libertador e soberano de seres conscientes de nossa realidade sociopolítica, é pouco reclamada sem pensá-la como uma necessidade imperiosa na Rede, mas muito além do acesso de dados. A concepção de “liberdade” que se reivindica com a “neutralidade” tem, em si mesma, um interesse particular na diminuição de barreiras para aqueles que pretendem impor seus interesses e, em muitos casos, para aqueles que atentam contra o bem comum.
Indistintamente de nossas realidades, a “liberdade” e a “neutralidade” as quais o modelo de comunicação que impera nos convida, são utilizadas para estabelecer uma linguagem “universal”, onde tenhamos que reclamá-las sem nem sequer chegar a refletir. Sobre o que há por detrás disso, quer dizer, aceitando uma linguagem anticrítica catalogando como ignorante e propagandístico todo o argumento que busca vislumbrar as contradições existentes. A propaganda é definitivamente a manipulação da informação que consiste em transformar, para bem ou para o mal, o que uma pessoa pretende comunicar a outra recorrendo, em reiteradas ocasiões, a métodos de engano para fazer com que o receptor assimile a informação com o objetivo de que opine e reaja de uma forma em particular. Por isto, nos perguntamos: Buscar visualizar as contradições inerentes a “Neutralidade” da Rede pode qualificar-se como manipulação de informação sob métodos enganosos? Uma resposta afirmativa que evidenciaria uma clausura e negativa a autocrítica ao pensamento transformador, e que poderia ir mais além do que as instancias internacionais nos apresentam como vias a seguir, especificamente em relação a gestão da Internet.
Por consequência, respaldamos a postura que afirma que a geração de um conhecimento verdadeiramente LIVRE passa pela concepção do fato científico-tecnológico como um agente sociopolítico que encontra-se vinculado diretamente com a defesa de um projeto nacional e, assim, é fundamental para a Soberania Nacional. A Rede chega a ser entendida como um espaço onde pode-se viabilizar o papel que tem o conhecimento e a informação com a agenda política da Venezuela e do mundo. Uma comunicação transformadora deve ser capaz de nos proporcionar espaços, como a Rede, onde não se contribua para a fragmentação da pós-modernidade, mas a “construção de um novo tecido do coletivo” (Barbero, 1995, p. 310).
A descontextualização torna-se então o fio condutor da “Neutralidade” da Rede e assim, de uma estafa de “Liberdade” de Expressão onde há a Rede, como objeto “neutro”, e o indivíduo, como sujeito desejoso de “expressar-se”, consideram-se objeto e sujeitos não-históricos, universais, os quais deveriam interagir apenas em um meio de transferência de dados, sem que o bem comum tenha importância. Desta maneira, fica evidente o modelo preponderante da comunicação o qual possui uma armadilha conceitual, suscitando uma neutralidade e liberdade fictícia que nos levam a cegueira em quanto nossa realidade social. De outro lado, emerge um modelo de comunicação que tem, em si, elementos libertadores ao possibilitar, em primeiro lugar, o mascaramento das concepções que buscam ocultar as visões do mundo assim como, permitir a inclusão do bem comum como condição fundamental para compreender nosso contexto e, a partir de então, a reconstrução como povo. Consideramos então a possibilidade de ter uma comunicação na Rede embasada em nosso contexto sociocultural, que contribua para a construção de nossa Soberania ao invés de sua desconstrução; tornando-se necessário por em evidência as contradições do discurso quando reivindica-se neutralidade e liberdade...
Referências:
Barbero, J. (1995). La Comunicación plural. Paradojas y desafíos. Nueva Sociedad, 140. Disponível em: http://www.nuso.org/upload/articulos/3081_1.pdf
Bauman, Z. (2009). En busca de agencia. En Z. Bauman. En busca de la política (pp. 67-118). Bueno Aires: Fondo de Cultura Económica.
Beltz, C. (1997). Global Telecommunications Rules: The Race with Technology. En C. Beltz. Issues in science and technology (pp.63-70). Texas: University of Texas at Dallas.
Edgerton, D. (2007). The Contradictions of Techno-Nationalism and Techno-Globalism: A Historical Perspective. New Global Studies, 1. Disponible en: https://workspace.imperial.ac.uk/humanities/Public/files/Edgerton %20Files/edgerton_contradictions_of_technoglobalism.pdf
Gore, A. (1994). Autopistas de la Información, reto del Siglo XXI. La Infraestructura Nacional de Datos (NII) de Estados Unidos de América: Agenda para la Acción (Informe Gore). Novática,110 . Disponible en: http://www.ati.es/novatica/1994/jul-ago/gore110.html
Ibáñez, J. (2006). Globalización e Internet: poder y gobernanza en la sociedad de la información. Revista Académica de Relaciones Internacionales, 5. Disponível em: http://www.relacionesinternacionales.info/ojs/article/view/38.html
(1) A “desinformação” resume uma atividade difusa e pouco perceptível sobre o que é verdadeiramente a realidade e busca distorcer os fatos factuais que ocorrem na sociedade, tudo isto com o objetivo de alcançar um nível de aceitação pelos grupos que se localizam em oposição as ideias ou abordagens que manifestam-se em um tipo de regime político.
(2) Nos anos 90 pesquisadores anunciavam: “Neste entorno caótico dos mercados convergentes e de complexa competência, o fenômeno da Internet reflete as tendências em tecnologia e a demanda dos usuários que estão rompendo as barreiras entre indústrias e nações num ritmo muito mais rápido do que as normativas oficiais das instituições podem reagir. Como resultado, a competência nas telecomunicações internacionais se intensificam nos próximos anos (...)” (Tradução própria de Beltz, 1997, p. 63).
(3) NBC, Sony, Time-Warner, News Corporation, Universal.
(4) Microsoft, Bell South, Oracle, American Online, IBM.
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A neutralidade da rede e a liberdade de expressão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU