23 Novembro 2015
"Observe-se as dificuldades que as/os negras/os remanescentes de quilombos têm de superar, ainda hoje, para verem declarados os direitos que lhes foram reconhecidos pela Constituição federal no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais transitórias", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Passados trezentos e vinte anos do assassinato de Zumbi, neste 20 de novembro, a história brasileira, especialmente a prezada pelo povo negro do país, continua recordando o martírio de um verdadeiro profeta da defesa corajosa dos direitos humanos - numa época em que nem se reconhecia isso - contra toda a espécie de opressão e racismo.
Mais de três séculos ainda não foram suficientes para eliminar dos nossos costumes, da nossa convivência, da nossa cultura preconceituosa, dos paradigmas de interpretação do nosso ordenamento jurídico, o complexo resistente da pretensa superioridade branca sobre negras/os e índias/os.
Trata-se de um racismo persistente, aqui trazido da Europa colonizadora, viciada pela convicção aberrante de deter uma única visão de mundo, uma única forma de exercício do poder, incapaz de enculturação, decidida a impor a toda/o a/o diferente, os seus “valores civilizatórios”, armado de uma ideologia capaz, se não de eliminar - como aconteceu com Zumbi - reduzir pelo desprezo e a humilhação, quem ouse contrariá-la.
Não era para menos. A começar pela propriedade privada anti social, sabidamente um dos principais ícones ao pé do qual se ajoelha a devoção branca, na imposição das desigualdades, era ela, justamente, a primeira expulsa dos quilombos, pois as/os negras/os tinham consciência da capacidade desse direito oprimir e escravizar, como conta Decio Freitas em “Palmares. A guerra dos escravos” (Porto Alegre: Mercado aberto, 1984):
“Tudo de todos, nada de ninguém. Esta economia assentava num sistema de propriedade social. Para ser mais claros, à exceção de objetos de uso pessoal, tudo o mais pertencia ao mocambo. Assim, as terras, os instrumentos de trabalho, as casas, as oficinas artesanais. “Tudo era de todos e nada era de ninguém”, sentenciou um agente dos senhores-de-engenho, infiltrado certa vez na serra, para espionar.” {...} “A produção se destinava fundamentalmente ao consumo da família, mas, ao mesmo tempo, essa família estava obrigada a entregar ao mocambo, como comunidade, um excedente depositado em paiol situado no centro da cidadela. O excedente se destinava ao sustento dos produtores não-diretos e aos improdutivos em geral: chefes, guerreiros, prestadores de serviços, crianças, velhos, doentes. Produzia-se, ainda, um excedente destinado a acudir a emergências, como secas, pragas, ataques externos.”(p. 37).
Os tempos de agora podem ser outros, mas que o individualismo ganancioso, perdulário, predatório e por isso mesmo desumano, do nosso atual sistema econômico, é notoriamente inferior à uma economia solidária como aquela, parece bem difícil negar.
Que ela desagrade profundamente esse sistema, a chamada “ordem vigente”, de ontem e de hoje, não mudou muito, se os párias de outrora forem comparados com os de agora:
“...o que obrigava os senhores a uma luta à morte com as concentrações de escravos fugidos era, antes de tudo, um problema “político”. Essa sociedade afro-brasileira, o quilombo, que irmanava os oprimidos de então, era uma forte ameaça à “ordem social vigente”. Era ela um eterno atrativo para o homem escravizado que encontrava ali uma possibilidade concreta de solução das suas misérias. É, portanto, um perigo objetivo e real para a organização escravista. E ainda mais, transforma-se o quilombo em um referencial que ultrapassou as barreiras sociais sobre as quais constituiu-se, pois começou a atrair não só escravos, mas libertos, índios, ou seja, os párias da sociedade de então.” (MAESTRI, Mario, “Quilombos e quilombolas em terras gaúchas”, Porto Alegre: Escola superior de teologia São Lourenço de Brindes, 1979).
Observe-se, por exemplo, as dificuldades que as/os negras/os remanescentes de quilombos têm de superar, ainda hoje, para verem declarados os direitos que lhes foram reconhecidos pela Constituição federal no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais transitórias:
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Se esse direito lhes foi “reconhecido”, é sinal de que ele precisa somente ser declarado, ou seja, assegurado em sua extensão, confrontações e registro. Diante da forte oposição branca, particularmente a latifundiária, esse artigo da Constituição, está sendo interpretado não como garante de um direito já adquirido pelos quilombolas, mas como um direito ainda a ser constituído, muitas/os delas/es tendo de enfrentar, em demoradíssimos processos burocráticos junto ao INCRA e ao Poder Judiciário, quase ou toda a mesma guerra libertária de gente e terra travada por Zumbi, séculos atrás.
À semelhança de muitas/os sem-terra, sem-teto e índias/os, são obrigadas/os a acampar a beira da terra que já lhes pertence por direito, peregrinar pelos corredores das repartições públicas, responderem a perguntas constrangedoras de autoridades e políticos, serem denunciadas/os como criminosas/os, obrigadas a sacrificar suas culturas, religiões, moradias, modos de ser, vestuário, formas de respeito à terra. Isso quando não são tentadas/os a trocar seu solo e a sua dignidade própria por alguma compensação financeira...
A consciência negra inspiradora dos movimentos populares de defesa dos direitos desse povo, mesmo assim, sabe da sua responsabilidade ético-política e não confunde a ordem vigente com justiça. Sempre que essa ordem esconde a injustiça, ela se lembra de Zumbi. O negro herói, embora tenha vivido quase um século antes de Hegel, sua morte antecipou a “reflexão hegeliana sobre a dialética do amo e do escravo”:
O escravo é aquele que não foi até o fim da luta, aquele que não quis arriscar a vida, aquele que não adotou o princípio dos amos - vencer ou morrer. Aceitou a vida escolhida por outro; por isso, depende desse outro. Preferiu a escravidão à morte, e é por essa razão que, permanecendo com vida, vive como escravo. O Escravo não quis ser Escravo. Tornou-se escravo por que não quis arriscar a vida. Daí a advertência perene: o Amo não é Amo senão pelo fato de que possui um escravo que o reconhece como tal” (Decio Freitas, mesma obra, p. 174)
Honra e glória ao negro Zumbi! Revive hoje em todas/os quantas/os não trocam a libertação própria pela imposição servil de qualquer forma de domínio sobre sua vida e direitos.
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Zumbi redivivo na consciência negra do direito à libertação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU