04 Novembro 2015
Há três anos, documentos confidenciais do Papa Bento XVI tinham sido publicados na imprensa italiana e reunidos em um livro do jornalista italiano Gianluigi Nuzzi, depois furtos feitos pelo mordomo do soberano pontífice. O escândalo que se seguiu, chamado de "Vatileaks", revelou a existência de uma ampla rede de corrupção e de favoritismo. O novo livro de Nuzzi, Via Crucis, oferece novas revelações sobre os assuntos financeiros do Vaticano.
A reportagem é de Philippe Ridet, publicada no jornal Le Monde, 04-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
No seu livro, você evoca uma "guerra no Vaticano". Quem são os combatentes?
Quando você é um leigo, como você e como eu, tentamos simplificar entre os "bons" e os "malvados", os "vermelhos" e os "azuis" etc. Há sete anos eu me interesso pelo menor Estado do mundo. A Santa Sé é o terreno ideal para os jogos duplos ou até mesmo triplos. Os campos e as alianças são moventes, fazem-se e desfazem-se com base em interesses às vezes obscuros para os não especialistas.
Digamos que, de um lado, estão o papa e os especialistas leigos e religiosos dos que eles se cercou para reformar a Igreja, e, de outro, o sistema curial que se opõe a Francisco por meios legais, como a inércia, e por meios ilegais, tais como os furtos ou a intimidação.
Como se desenrola essa "guerra"?
Francisco tentou, através das nomeações, superar as fraturas e os confrontos entre os clãs para manter a unidade da Igreja. Mas os fatos testemunham que foram postos obstáculos no seu caminho. Os inimigos de Francisco são os mesmos de Bento XVI. O que aconteceu com a revelação da falsa doença do papa, a "saída do armário" do padre polonês Krzysztof Charamsa e a carta dos cardeais é uma verdadeira tentativa de deslegitimação de Francisco. Fazer com que se acredite, sem qualquer prova, que ele sofre de um tumor no cérebro, embora benigno, é um modo de pôr em dúvida as suas faculdades mentais. Tudo isso ocorre também em um momento da sua história em que a Igreja nunca foi tão frágil e em que o papa tenta dar mais responsabilidade para os leigos e para as mulheres na Cúria.
O que chama a atenção na sua investigação é também o amadorismo e a leveza com que o Vaticano é gerido...
No meu livro, há verdadeiros exemplos de corrupção ou de peculato, como as mercadorias que desaparecem das lojas pontifícias. E depois há a inércia e a mediocridade administrativas da Cúria em geral, como demonstram as contratações injustificadas, o déficit do sistema de pensões ou mesmo o fato de que não existe um inventário das propriedades imobiliárias da Santa Sé. Os padres são melhores para cuidar das almas do que do dinheiro. Mas o Vaticano também é um Estado com muitos interesses cruzados, com chantagens permanentes. Ninguém controla ninguém, o que permite que os mercadores vivam felizes no templo.
O Vaticano está tecnicamente em falência?
Senão em um estado de pré-falência. É um pântano que já engoliu Bento XVI. Francisco terá o mesmo destino? As finanças de certos dicastérios estão no vermelho. O Óbolo de São Pedro, que deveria ajudar a socorrer os pobres, serve em grande parte para preencher os buracos nas finanças da Cúria e para permitir que o Estado funcione. Os cardeais não têm nenhuma relação com o dinheiro. Eles não gastam nem mesmo três euros para comprar um sanduíche. Eu não sei se a corrupção é mais grave do que o diletantismo. Em todo o caso, essa situação assusta. O que mais me impressiona é o clima pesado, crepuscular, em que o Vaticano vive hoje.
O seu livro está repleto de documentos inéditos e confidenciais, incluindo uma gravação de uma fala do papa. Como você os obteve?
Comecemos com um esclarecimento. Quando eu fui contatado por Paolo Gabriele, o mordomo do papa que me permitiu revelar o escândalo Vatileaks e escrever o meu livro Sua Santità em 2012, ele me assegurou que não tinha nenhum interesse financeiro. Na opinião dele, era necessário fazer com que se soubesse o que acontecia dentro da Cúria. Aqueles que estavam envolvidos nesse escândalo foram todos descartados por Francisco e privados do seu poder. Depois da publicação do livro, eu me ocupei com outras coisas. Eu trabalho agora em um programa televisivo – "Quarto Grado", na Rete 4.
Eu não tinha nenhuma intenção de voltar a escrever um livro sobre o Vaticano. Mas, em 2013, depois da eleição de Francisco, obtive informações sobre os obstáculos e as dificuldades que o papa encontrava, e voltei ao trabalho. As pessoas que me ajudaram também querem que se saiba de certas coisas, porque não conseguem mais fazer o seu trabalho na Igreja. Eu devo acrescentar que os livros escritos por mim anteriormente, naturalmente, me designam como o seu interlocutor.
Duas pessoas foram presas. Elas são suspeitas de serem os seus informantes...
Estou espantado com o fato de que o Vaticano responde com prisões. Mas, relendo o livro, eu entendo que ele possa causar medo em alguns setores da Cúria. Os escândalos que eu descrevo nele não têm nada a ver com o Evangelho.
Você relata um furto em um dos organismos instituídos por Francisco para reformar o Vaticano. Você tem certeza de que nenhum dos documentos roubados se encontra no seu livro?
Absolutamente seguro.
O seu livro pode ser lido como uma defesa para o papa?
Ele se defende muito bem sozinho.
Francisco pode conseguir fazer o que Bento XVI não conseguiu?
A equipe que ele instituiu para ajudá-lo custa a fazer com que os diversos dicastérios colaborem. Os seus membros são vistos como intrusos. Em certa medida, o próprio Papa Francisco é visto como um intruso. É mais fácil para ele reconciliar os Estados Unidos e Cuba do que reformar o menor Estado do mundo. Ele tenta mudar tanto as mentalidades quanto as leis e as pessoas.
É uma revolução doce, mesmo que ele seja um monarca absoluto. Mas é possível modificar todas as leis e todas as regras possíveis; se as mentalidades daqueles que devem aplicá-las não mudarem, é inútil. Esse livro tenta sondar um poço do qual eu mesmo não conheço a profundidade. Mas, talvez, a situação é pior do que a que eu contei.
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"O próprio papa é visto como um intruso no Vaticano." Entrevista com Gianluigi Nuzzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU