07 Abril 2015
A próxima encíclica do Papa Francisco, sobre a crise ambiental, "pode não só dar impulso a um acordo em Paris como encorajar católicos que já estão tentando ajudar outros em harmonia com a Terra. Pode também provocar uma discussão incômoda sobre a relação entre capitalismo e mudança climática - pois é inquestionável que as economias bem-sucedidas e em rápido crescimento estão gerando muito mais gases do efeito estufa do que as nações pobres, que mesmo assim sofrerão os efeitos do clima", escreve Kate Galbraith, jornalista especializada em energia e clima, em artigo publicado pelo Foreign Policy e reproduzido pelo jornal O Estado de S. Paulo, 05-04-2015.
Eis o artigo.
Francisco está colocando as mudanças climáticas em destaque em sua agenda. Conseguirá ele sanar as divisões sobre o tema?
No início de março, diante de uma plateia modesta numa universidade católica na Irlanda, o cardeal Peter Turkson fez um longo pronunciamento sobre a importância de cuidar do meio ambiente, que ele descreveu como inseparável de cuidar dos pobres. Este será, disse Turkson aos estudantes, um “ano crítico para a humanidade”, culminando na conferência internacional sobre mudança climática em dezembro. “Compelidos pelas evidências científicas sobre mudança climática”, disse Turkson, “somos chamados a cuidar da humanidade e respeitar a gramática da natureza como virtudes por seu próprio direito.”
Observadores do Vaticano têm muito com que se banquetear hoje em dia, mas as palavras de Turkson mesmo assim repercutiram porque oferecem uma janela para os planos do papa de encorajar ações sobre mudança climática. Nativo de Gana, Turkson foi um favorito ao papado quando Bento abdicou, em 2013, e agora preside o Conselho Pontifício para Justiça e Paz. Mas o que realmente importa é o seguinte: Turkson teve papel crucial no esboço de um importante documento ambiental que chamará especial atenção para a mudança climática, que o papa Francisco pretende publicar neste verão italiano. O documento, conhecido como encíclica, passou por uma revisão final no fim de março e será traduzido e divulgado em breve.
De modo que o pronunciamento de 50 minutos de Turkson, que citou constantemente as posições do papa, serve como uma preliminar, apontando para a intenção de Francisco de centrar nas relações entre pobreza e meio ambiente em sua entrada nas guerras climáticas. “As ameaças que surgem da desigualdade global e da destruição do meio ambiente estão inter-relacionadas”, disse Turkson, “e elas são os maiores desafios que enfrentamos hoje como família humana.”
A decisão do papa de publicar uma encíclica sobre ecologia é uma dádiva, por assim dizer, para ambientalistas, e uma dor de cabeça para políticos conservadores que elevam a economia acima da ação climática. Encíclicas são documentos filosóficos - cartas, por tradição - disseminadas para autoridades eclesiásticas e o público.
Elas costumam ter dezenas de páginas e normalmente discorrem sobre assuntos espirituais. O papa Bento publicou três nos seus oito anos de papado, sobre caridade, esperança e amor cristão. Esta será a primeira encíclica de Francisco. O fato de ele ter mirado o tema da “ecologia humana” - tópico um pouco mais mundano que o usual - após somente dois anos de papado transmite um claro sinal sobre suas prioridades.
A Igreja já se manifestou anteriormente sobre questões ambientais, é claro. Em 2011, Bento XVI, às vezes apelidado de “papa verde”, defendeu um acordo global sobre o problema “preocupante e complexo” da mudança climática. O papa Francisco vem refinando ultimamente suas considerações climáticas. “Não sei se (a atividade humana) é a única causa, mas principalmente, em grande parte, é o homem que esbofeteou o rosto da natureza”, ele disse, em janeiro, numa viagem à Ásia. Francisco conversou sobre mudança climática com o rei de Tonga e manifestou preocupação de que as Filipinas, uma das nações que visitou em janeiro, “provavelmente seriam gravemente afetadas por uma mudança climática”.
O pronunciamento do cardeal Turkson relaciona a necessidade de preservar o meio ambiente a ensinamentos bíblicos. Ele destaca o segundo capítulo do Gênesis, em que o homem, recém-criado do pó, é posto no Jardim do Éden para “lavrá-lo e conservá-lo”. Isso, desenvolveu Turkson, significa que, mesmo que como humanos extraiamos as dádivas da Terra, também devemos “cuidar dela de maneira a garantir sua fecundidade para gerações futuras”. Ao que parece, estivemos lavrando demais e não preservando o suficiente, em outras palavras. Turkson também fez da melhor gestão da Terra uma questão moral. “Como colocou São João Paulo II, requeremos uma ‘conversão ecológica’, uma mudança radical e fundamental de nossas atitudes perante a criação, os pobres e as prioridades da economia global”, disse ele.
Mas Turkson - e, em última análise, o papa - pode evitar a questão politicamente polarizadora da ciência climática, esquivando-se de um debate que está atolado em calúnias e não serve a seu propósito final de estimular ações para ajudar o planeta. Francisco disse que o homem pode não ser a única causa da mudança climática - algo que nenhum cientista contestaria -, mas com certeza explorou excessivamente a Terra, uma circunstância que precisa mudar. Francisco tem se debatido sobre questões da ciência climática, disse Turkson: “Numa entrevista em avião quando voltava da Coreia em agosto passado, o Santo Padre disse que um dos desafios que enfrenta em sua encíclica sobre ecologia é como tratar do debate científico sobre mudança climática e suas origens”. O papa aí ponderou: “Ela é resultado de processos cíclicos da natureza ou de atividades humanas (antropogênicas), ou talvez de ambos? O que não é contestado é que nosso planeta está ficando mais quente”. Em outras palavras, o papa está procurando um terreno comum e avançar a discussão paralelamente à ação.
Ao se esquivar do debate político sobre ciência climática que vem dividindo algumas nações, entre elas os Estados Unidos, o pronunciamento de Francisco passará por cima das cabeças dos políticos para falar diretamente às massas. Assim como o papa estabeleceu uma reputação de acessibilidade, sua encíclica provavelmente será mais legível que a maioria delas. Outra peça longa de Francisco, sobre a alegria do Evangelho, é o “primeiro documento do Vaticano que já vi usando a palavra rabugento”, disse Michael Budde, chefe do departamento de estudos católicos da Universidade DePaul.
O público de Francisco é certamente enorme - 1,2 bilhão de católicos, muitos deles no mundo em desenvolvimento. Sua promoção desse tópico pode não só dar impulso a um acordo em Paris como encorajar católicos que já estão tentando ajudar outros em harmonia com a Terra, disse Budde. Pode também, acrescentou, provocar uma discussão incômoda sobre a relação entre capitalismo e mudança climática - pois é inquestionável que as economias bem-sucedidas e em rápido crescimento estão gerando muito mais gases do efeito estufa do que as nações pobres, que mesmo assim sofrerão os efeitos do clima.
Estes são temas importantes, e se mobilizarem líderes mundiais além das massas, tanto melhor. Muitos líderes que são, ou poderiam ser, vitais no trabalho sobre mudança climática são católicos. Um deles é Tony Abbott, primeiro-ministro da Austrália, que elogiou o carvão como “a base de nossa prosperidade” no futuro previsível e ajudou a refutar o esquema de imposto do carbono na Austrália. Outro é Dilma Rousseff, a cada vez mais impopular líder do Brasil, que talvez se junte à agenda do papa numa medida para livrar a cara, à luz da grave seca que drena a água de São Paulo.
Nos EUA, o segundo país que mais emite gases do efeito estufa, a resposta à encíclica ecológica provavelmente rachará ao longo de linhas divisórias que já existem sobre o papa Francisco, disse Budde. A posição do papa sobre clima é outra razão para a esquerda abraçar Francisco, que abrandou a linha da Igreja quanto aos gays e ajudou a forjar um acordo sobre Cuba. A direita, e os interesses industriais endinheirados que se alinham com ela, inevitavelmente a combaterão. “Embora respeitemos as posições do papa, acreditamos também que estamos no lado dos anjos quando consideramos o sofrimento de bilhões de pessoas em todo o globo que estão vivendo sem eletrificação e sofrendo com uma pobreza indizível e doenças em função disso”, disse recentemente à Bloomberg Laura Sheehan, vice-presidente de comunicações da American Coalition for Clean Coal Electricity, uma associação do setor de carvão. Stephen Moore, economista-chefe da Heritage Foundation, teve palavras mais duras. “O papa Francisco - e digo isto como católico - é um completo desastre quando se trata de pronunciamentos políticos”, escreveu ele em janeiro. “Sobre a economia, e agora sobre o meio ambiente, o papa se aliou à extrema esquerda e adotou uma ideologia que tornará as pessoas mais pobres e menos livres.”
Essas tensões provavelmente atingirão um clímax em setembro quando o papa visitar os Estados Unidos. Além de discursar perante as Nações Unidas e se reunir com o presidente americano Barack Obama na Casa Branca, Francisco falará ao Congresso a convite do presidente da Casa, John Boehner, um católico que tem criticado a agenda climática do governo Obama por eliminar empregos americanos. Quase certamente, Francisco usará esse púlpito político para exortar ações climáticas enquanto, imagina-se, Boehner estará observando com o rosto impassível atrás dele. A recepção de Francisco será bem mais amena do que a de Obama, que levantou a mudança climática em seus discursos ao Congresso.
Mas a verdadeira missão do papa é trazer esperança e soluções para o mundo numa questão que até agora tem desafiado uma anuência significativa. Ele identificou um problema de ordem espiritual. Como colocou o cardeal Turkson, o papa viu os “sinais aziagos da natureza que sugerem que a humanidade pode ter cultivado demais e conservado de menos”. Se Francisco puder abrandar o tom do debate sobre ciência climática e exortar o mundo a agir - para conservar a Terra em vez de cultivá-la imprudentemente - então isso teria os contornos da vitória.
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O papa verde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU