29 Mai 2007
Henrique C. de Lima Vaz, dedicou sua vida ao ensino e à pesquisa filosófica. Foi considerado como um dos maiores filósofos do Brasil. Professor exímio na arte de fazer pensar, formou toda uma geração de filósofos que hoje estão ativos nas cátedras de universidades brasileiras e estrangeiras, produzindo um conhecimento sólido e elaborando as grandes questões do mundo contemporâneo. Dentre esses alunos está Marcelo Perine, que, no Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?, ministrou o minicurso “A ética e a crise da modernidade. Uma leitura a partir da obra de Henrique C. Lima Vaz”. A IHU On-Line assistiu à palestra e conversou, pessoalmente, com Perine.
Durante a entrevista, Perine fala da importância do pensamento de Pe. Vaz para a filosofia brasileira e como seus ensinamentos são atuais. Fala ainda sobre a crise da ética e da modernidade.
Marcelo Perine é graduado em Filosofia e Teologia. Seu mestrado e doutorado, na área de Filosofia, foram realizados na Pontifícia Universidade Gregoriana, na Itália. Em 2005, obteve o título de pós-doutor em filosofia pela Universita Vita Salute San Raffaele, também na Itália. Atualmente, Perine é coordenador da Capes e professor titular na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o espaço que Pe. Vaz ocupa na filosofia brasileira hoje?
Marcelo Perine – Tem havido algumas tentativas de uma ampliação mercadológica da obra do Pe. Vaz. Estamos trabalhando na tradução para outras línguas de algumas de suas obras. Eu tenho ido, nesses últimos anos, à Feira de Frankfurt (1), onde se negocia a compra de obras. Nessas ocasiões, eu sempre levo algum trabalho do Pe. Vaz para tentar negociá-lo. Só que isso é muito difícil porque as editoras trabalham com critérios eminentemente comerciais e isso torna, muitas vezes, impraticável produzir e traduzir um livro que estará fadado, a princípio, a não ter nenhuma repercussão, nenhum sucesso comercial. Isso por causa de questões mercadológicas, circunstanciais, e por Pe. Vaz não ter sido conhecido nem tido grande circulação fora do Brasil.
No entanto, para mim, é bastante consolador e mais do que suficiente saber que toda a sua obra será publicada (2): a sua tese de doutorado, os seus esquemas de cursos, suas conferências e anotações. Se não publicadas, as obras serão pelo menos publicizadas, ou seja, poderemos ter acesso a elas por meio da rede mundial de computadores, o que já é, para nós, um motivo de satisfação. Eventualmente, isso poderá também, na medida em que o tempo for passando, ampliar o interesse por sua figura fora do Brasil. Provavelmente, o pensamento de Pe. Vaz seja cada vez mais estudado no exterior, mas o grande público dificilmente teve acesso direto a sua obra.
IHU On-Line – Qual é sua reflexão quanto à originalidade e atualidade do pensamento de Pe. Vaz?
Marcelo Perine – Quanto à originalidade filosófica e a atualidade do pensamento de Pe. Vaz, eu diria algumas coisas minimamente sensatas. Primeiro: Pe. Vaz tem uma obra filosófica e isso para mim já é um ponto extraordinário para marcar a sua presença na filosofia no Brasil. Pe. Vaz não introduziu uma rapsódia. Ele produziu uma obra que tem começo, meio e fim, além de uma consistência e uma estrutura – e isso já é o suficiente. Portanto, ele já pertence à nossa herança cultural e já se tornou uma figura obrigatória na história do pensamento filosófico brasileiro.
Ele nunca quis ter alguma originalidade, e talvez nisso consista a sua originalidade. Ele dizia que a originalidade na filosofia consiste na falsidade. A maneira como Pe. Vaz se apropriava, digamos assim, da grande tradição clássica da nossa cultura e a repensava é exatamente a sua marca registrada. Ele mostrou tal talento exatamente naquele texto intitulado “Morte e vida da filosofia”. Era exatamente assim que ele entendia a filosofia. Quem lê os textos dele, seguiu seus cursos, assistiu a suas conferências, percebia imediatamente que esse era o seu modo de proceder na filosofia. Portanto, a sua marca registrada, que não tinha nenhuma pretensão de originalidade, mas apresentava essa atualidade, é a capacidade de trazer os problemas para o momento presente e pensar sobre eles com toda uma tradição, cultura e história anterior. Eu acho que nesse ponto se encontra a sua grande contribuição. Eu acho que ele representa uma escola de pensamento, de fazer filosofia. Eu, mal e porcamente, algumas vezes, tento imitar isso, porque aprendi justamente vendo-o fazer, lendo seus textos etc.
A atualidade de sua obra é algo que ainda não podemos julgar. Eu acho que se trata uma obra atual porque sob muitos aspectos está refletindo, pensando problemas com os quais ainda nos defrontamos e talvez ainda vamos nos defrontar por muito tempo. Eu creio, portanto, que sua obra será ainda mais atual na medida em que ela for sendo mais conhecida, debatida e discutida. Então, o fato de nós termos, nos últimos anos, um crescente número de dissertações e teses sobre sua obra é um sintoma de que ela ainda tem algo para ensinar. Não, pura e simplesmente, como um objeto de estudos que está lá na prateleira da biblioteca, mas como uma fecundidade para pensar o nosso tempo. Eu acho que essa é uma contribuição mais do que o suficiente para marcar um lugar específico na filosofia brasileira.
IHU On-Line – E, para o senhor, o que está em crise: a ética ou o homem?
Marcelo Perine – Eu faria a seguinte distinção: não é a ética que está em crise; e sim nós é que estamos vivendo uma crise ética. A ética até vai muito bem, porque se reflete muito, se pensa muito, se produz, se escreve, se publica muito. Há uma quantidade enorme de produção intelectual em torno da ética. Então, isso significa que a ética vai muito bem, obrigado!
O que não vai bem é exatamente essa quantidade de reflexão sobre a ética. Porque quando a gente é obrigado a pensar muito sobre alguma coisa, certamente é porque ela está exigindo ser pensada. Nós vivemos uma crise ética que está exigindo uma reflexão, uma elaboração cada vez maior, seja em primeiro lugar compreender, seja para eventualmente encontrar caminhos de superação dessa crise. E a crise ética se traduz, justamente como diz o Pe. Vaz, numa crise de valores, de normas, de sentido da própria ética.
IHU On-Line - Quais foram as principais contribuições de Pe. Vaz para compreendermos as relações entre fé, ética e política?
Marcelo Perine – A sua reflexão sobre o fenômeno do ethos, sobre a dimensão ética do ser humano, é a grande contribuição para pensarmos nessas relações: a relação entre a ética e a política, a relação entre a ética e a fé ou a relação entre a política e a fé. Porque sua compreensão do ethos, como modo humano de ser regrado pela razão normativa, revela uma compreensão do homem que possibilita uma abertura inclusive para a fé.
Pe. Vaz era um homem de fé, ou seja, ele vivia seus compromissos éticos como um homem que acredita em Deus. Desse modo, não há nenhuma incompatibilidade, seja entre fé e política, seja entre ética e política, seja entre ética e fé. Para ele, isso não existia: eram problemas que poderiam ser colocados teoricamente, mas existencialmente estavam muito bem equacionados. O que a reflexão dele permite pensar era exatamente na linha do que eu dizia num determinado momento do minicurso. Ele, como pensador desses problemas éticos, via exatamente no fato de pensar sobre esses problemas a resposta a uma exigência ética e, portanto uma ação política, uma resposta pública. Ele refletia publicamente. Portanto, o modo de integrar ética e política na vida e na obra de Pe. Vaz estava dada na sua própria reflexão e se apresentava também pelo fato de ser um homem de fé. Isto estava de uma maneira bastante integrada na vida dele. não havendo nenhuma incompatibilidade.
IHU On-Line - De que forma Pe. Vaz dialogava com a modernidade?
Marcelo Perine – Foi fundamentalmente pensando os problemas que a modernidade põe. Por exemplo, a questão da liberdade, a questão do sentido da vida ou da falta de sentido, as manifestações ou sintomas de uma espécie de mal estar que poderia revelar um problema maior, como a violência. Ele mesmo diz que não teve condições de refletir sobre problemas mais específicos, como as drogas ou coisas do gênero. Porém, o que ele justamente queria era pensar esses problemas e tentar descobrir de onde eles vêm. Por isso que o título do seu último livro chama-se “Raízes da Modernidade”.
Essa é a sua contribuição fundamentalmente teórica, de compreensão. Todo o interesse dele era pensar os problemas e, partindo da sua história e origem, tentar dar a eles uma resposta contemporânea. Não só com uma linguagem contemporânea, mas procurando compreender o mundo contemporâneo com suas estruturas, com suas exigências. Uma sociedade, como ele diz, estruturada em função da tecnociência, em função da produção de bens de consumo, foi o que mudou a face das sociedades. O mundo moderno, o mundo da máquina, o mundo da informática e o mundo da tecnociência precisam ser pensados com essa sua cara, com essa sua estrutura. Mesmo nessa realidade, os problemas antigos, como os problemas da liberdade, da razão normativa, da transcendência continuam, não podem mais ser pensados como pensavam os medievais que não possuíam máquinas, ou técnicas.
IHU On-Line – O senhor afirmou que um dos desejos do Pe. Vaz era escrever e refletir sobre ética e liberdade, mas que não conseguiu realizar esse desejo. O que Pe. Vaz diria sobre ética e liberdade?
Marcelo Perine – De alguma maneira, ele refletiu sobre esses temas, mas não registrou com este título. Dentro do segundo volume de sua "Introdução à Ética Filosófica", ele procura justamente refletir sobre a estrutura do agir humano, da ação humana. E é na compreensão da ação humana que entra o problema da liberdade. É o problema ético por excelência. Só existe ética para seres livres. Os animais, por exemplo, não têm ética porque não têm liberdade. Esse é o problema ético por eminência. É exatamente isso que ele procura pensar nessa sua reflexão. Uma reflexão sistemática ao pensar na estrutura do agir humano, ao pensar as suas dimensões, a sua abertura, para desenhar sua estrutura subjetiva, voltada para si mesmo; sua estrutura intersubjetiva, voltada para o relacionamento com os outros. A estrutura objetiva é da relação humana com a objetividade do mundo. Portanto, ela é das normas e das leis. É exatamente nessa tríplice relação consigo mesmo, com os outros e com a objetividade do mundo que se coloca, se apresenta e se resolve o problema da liberdade. Porque, em última análise, se trata de fazer o bem nessa realidade, nessa estrutura, nesse modo humano de ser e fazer o bem por uma escolha. Escolher o bem é o grande problema da liberdade. E isso está refletido por Pe. Vaz na sua ética filosófica.
Notas:
(1) É o maior encontro mundial do setor editorial, sendo realizado desde 1949 em Frankfurt am Main (Alemanha) e atraindo anualmente mais de 7.000 expositores e 280.000 visitantes. O evento é promovido pela Börsenverein des Deutschen Buchhandels (em português: Associação do Comércio de Livro Alemão).
(2) Durante o minicurso "A ética e a crise da modernidade. Uma leitura a partir da obra de Henrique Lima", ministrado por Marcelo Perine no Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?, o palestrante informa que, com ajuda de um aluno seu da PUC-SP, está organizando os cadernos e a obra que o Pe. Vaz deixou de herança.
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Ética e política segundo Henrique C. de Lima Vaz. Entrevista especial com Marcelo Perine - Instituto Humanitas Unisinos - IHU