A hiperaceleração apaga a possibilidade de um futuro comum. Entrevista com Rodrigo Turin

Historiador analisa a tríplice crise do presente: a vertigem climática, a corrosão da experiência pela hiperaceleração digital e o desmonte programado do nosso futuro pela precarização da ciência

Foto: Pixabay

21 Outubro 2025

A separação moderna entre história da natureza e história humana ruiu; hoje, a geopolítica é diretamente afetada por partículas de carbono na atmosfera. É o que constata o historiador e professor Rodrigo Turin, na entrevista concedida por e-mail ao pesquisador Thiago Gama, que cedeu o texto ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU"No cruzamento dessas relações entre natureza e história é a própria possibilidade de viver o futuro que se coloca como um desafio a ser enfrentado", pontua.

Em diálogo com o pensamento contemporâneo, o entrevistado descreve como a lógica produtivista "vampirizou" o sentido da pesquisa nas universidades, submetendo-as a uma corrida por números em relatórios que nos arrasta para uma "avalanche contínua". "Os professores, por exemplo, são hoje levados a ocupar muitos cargos e funções burocráticas, a realizar inúmeros relatórios, a voltar quase toda a sua atividade em função da produção de números que servirão como a base das avaliações dos seus cursos e de suas carreiras individuais. É uma grande corrida medida por números e rankings que, por sua vez, traduziriam a produtividade, a eficiência, a transparência...", assinala Turin. "E a produção desses números acabou vampirizando, em grande medida, o próprio sentido da pesquisa e da docência – que passaram a ser pensados e geridos no cotidiano da universidade como meios de alcançar números em relatórios, e não mais como fins em si mesmos", complementa.

O argumento central é que vivemos uma hiperaceleração que, diferentemente do "progresso" de outrora, não possui um sentido final e ameaça a própria possibilidade de vivermos a história. "A hiperaceleração da sociedade atual não está apenas corroendo a nossa experiência da narrar a história, mas também está ameaçando a própria possibilidade de vivermos a história", adverte Rodrigo Turin. "O aquecimento climático é, hoje, o maior efeito da aceleração da sociedade capitalista, colocando em risco a existência do futuro humano e de outras espécies", avalia.

Rodrigo Turin (Foto: Reprodução Youtube)

Rodrigo Turin é historiador, professor da UniRio e doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com período sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, sob orientação de François Hartog. Sua trajetória o posiciona como uma das vozes mais importantes de sua geração na historiografia brasileira.

Thiago Gama é doutorando em História Comparada na UFRJ.

Eis a entrevista.

Em trabalhos recentes, o senhor tem explorado como a crise climática e a noção de Antropoceno tensionam os regimes de historicidade modernos. Diante desse cenário, como a disciplina histórica pode ressignificar suas ferramentas e temporalidades para responder a um presente que parece exigir, ao mesmo tempo, urgência e profundidade?

A mudança climática, com todos os seus efeitos ambientais e sociais, muda a nossa própria condição de viver a história. Uma série de pressupostos do regime moderno de historicidade – que é o modo como a sociedade moderna organizou de maneira hegemônica o seu modo de viver e de fazer a história – não são hoje mais possíveis de serem reproduzidos. Por exemplo, a separação entre uma história da natureza e uma história humana não se sustenta mais quando temos que lidar, cotidianamente, com as relações existentes entre partículas de carbono na atmosfera e a geopolítica contemporânea. No cruzamento dessas relações entre natureza e história é a própria possibilidade de viver o futuro que se coloca como um desafio a ser enfrentado.

Diante dessa mudança nas condições de viver a história, não é possível continuar a escrever a história como se nada estivesse acontecendo. Afinal, o modo como vivemos a história e o modo como a escrevemos são intimamente relacionados. Precisamos de novas perguntas (envolvendo diferentes agentes históricos, humanos e não humanos), novas formas de imaginar as diferentes temporalidades envolvidas nessa nova condição, elaborar novos tipos de narrativas.

Assim como também precisamos revisitar a tradição da disciplina, recuperando aspectos dessa tradição que possam ser valiosos para pensarmos a escrita da história hoje. Em parte, a disciplina já esteja fazendo isso, em diferentes campos de pesquisa – da história social, passando pela história ambiental, história indígena, entre outras. Em uma publicação recente que organizei com o colega Walter Lowande, da Unifal, reunimos algumas dessas reflexões sobre as mudanças na escrita da história em face das mudanças climáticas. Elas são tantas e tão variadas que não seria possível reduzir aqui em alguns poucos traços, até porque também essa mudança na disciplina implica pensá-la na chave da pluralidade, e não tentar encarcerar ela dentro de alguma nova matriz singular. Afinal, se estamos tendo que enfrentar o entrelaçamento de temporalidade plurais, a disciplina história também precisará ser plural.

A aceleração do tempo, tema central em sua pesquisa, parece ter se intensificado com a cultura digital e as demandas por produtividade imediata. Que consequências o senhor enxerga dessa aceleração para a formação intelectual, sobretudo em áreas como as Humanidades, que dependem de pausa, maturação e criticidade?

A sociedade moderna, desde o fim do século XVIII – com a Revolução Industrial, com as revoluções políticas, com o comércio mundializado – se caracterizou como uma sociedade movida pela aceleração. Como aponta o sociólogo alemão Hartmut Rosa, a sociedade moderna é uma sociedade que precisa estar sempre em aceleração para se manter estável. Isso é facilmente percebido pela importância dos índices de crescimento, como o PIB, que estruturam e legitimam a organização social e política. Nas últimas décadas, no entanto, a aceleração entrou em um novo ritmo e, mais do que isso, em uma nova forma. As novas tecnologias digitais e a nova organização do capitalismo afetaram o mercado de trabalho, as relações sociais, a vida política, as subjetividades, nos levando a uma hiperaceleração que é, no limite, insustentável.

No caso da universidade, em particular, é necessário entender suas especificidades, como esse processo de aceleração se realizou ali. A universidade passou nas últimas décadas por um rápido e intenso processo de democratização e de burocratização. Democratização no sentido em que mais pessoas, oriundas de diferentes estratos sociais, passaram a ter acesso à instituição. Esse foi um processo fundamental e que ainda precisa ser continuado. Tal processo, contudo, não foi acompanhado de uma mudança na estrutura da universidade (pelo menos, equivalente ao crescimento da demanda), seja na absorção de professores e funcionários, seja na melhoria das condições materiais para receber com dignidade esse aumento de demanda. O resultado, em muitas instituições, é também um aumento da precariedade, seja da relação professor/aluno, seja da qualidade das salas, bibliotecas, refeitórios, etc.

Junto a esse processo de democratização convergiu o processo de burocratização, mas uma burocratização específica. Ela se deu com a adoção de uma cultura auditorial na qual conceitos como “produtividade”, “eficiência”, “transparência”, entre outros, foram sendo aplicados sem muita reflexão crítica. O resultado foi a incorporação de uma série de práticas, de formas de organização e de uma ética que prejudicam, ao final, a própria realização da pesquisa e da docência. Os professores, por exemplo, são hoje levados a ocupar muitos cargos e funções burocráticas, a realizar inúmeros relatórios, a voltar quase toda a sua atividade em função da produção de números que servirão como a base das avaliações dos seus cursos e de suas carreiras individuais. É uma grande corrida medida por números e rankings que, por sua vez, traduziriam a produtividade, a eficiência, a transparência... E a produção desses números acabou vampirizando, em grande medida, o próprio sentido da pesquisa e da docência – que passaram a ser pensados e geridos no cotidiano da universidade como meios de alcançar números em relatórios, e não mais como fins em si mesmos. Uma série de estudos já demonstraram como essa lógica muda o tempo e a forma das pesquisas, em diferentes áreas. Projetos de pesquisa hoje são pensados menos em função do tempo da pergunta e do objeto pesquisados, e mais em função do tempo homogêneo dos relatórios.

Tanto a democratização como a burocratização se desenvolveram, por fim, com o desenvolvimento de uma série de aparatos tecnológicos que, longe de serem instrumentos neutros, foram partes ativas nesse processo. Essas tecnologias, na forma como foram desenvolvidas, intensificaram e moldaram aspectos daqueles dois processos. A tecnologia digital possibilitou, por exemplo, que aquela lógica de gerenciamento da produtividade pudesse se reproduzir em níveis absurdos, com a criação de uma série de plataformas diferentes, criadas por diferentes instâncias da administração, onde relatórios e números são demandados e gerados o tempo todo.

Tudo isso gera um sistema de aceleração que vem afetando profundamente a universidade. A Universidade é um lugar que foi desenhado para ter um tempo próprio, que é o tempo da pesquisa e da docência, assim como da extensão. Esses tempos deveriam ser medidos em função do próprio processo que eles implicam, ou seja, o tempo de elaborar as perguntas certas, de respeitar o ritmo e as imprevislibilidades do processo de investigação, o tempo dos debates e das divergências, a dinâmica das trocas em sala de aula... enfim, tudo aquilo que não se deixa reduzir a uma tabela de números. Essa forma de aceleração acaba colocando a universidade contra ela mesma, contra aquilo que ela deveria ou poderia ser.

No que diz respeito às humanidades e à história, em específico, hoje é cada vez mais difícil encontrar as condições necessárias para a produção e a sedimentação de narrativas históricas mais estruturantes, que de fato se sedimentem como experiência coletiva. Estamos tão acelerados que temos dificuldades de dar sentido aos eventos e às experiências que vivemos ou presenciamos, estabelecendo relações mais estáveis entre passado, presente e futuro. Tudo se torna mais efêmero, mais precário, como se vivêssemos em uma avalanche contínua, onde somos arrastados tentando respirar e encontrar alguma perspectiva, mas sem saber onde estávamos e para onde exatamente estamos indo. E essa é a diferença da aceleração da modernidade clássica (do final do séc. XVIII até meados do séc. XX) para a sociedade atual: antes a aceleração podia ser entendida como “progresso”, como tendo um sentido final, hoje a hiperaceleração é vivida sem essa estrutura de sentido, como se valesse por si mesma.

Para lidar com isso, seria necessário um movimento político coletivo de criar e valorizar espaços onde outros tempos sejam possíveis, de regulamentar os sistemas que produzem a nossa hiperaceleração (como as plataformas digitais), e de pensar a produção a partir de outras bases, para além do desenvolvimento infinito. A hiperaceleração da sociedade atual não está apenas corroendo a nossa experiência da narrar a história, mas também está ameaçando a própria possibilidade de vivermos a história. O aquecimento climático é, hoje, o maior efeito da aceleração da sociedade capitalista, colocando em risco a existência do futuro humano e de outras espécies.

Em um contexto em que precisamos reinventar os modos de produzir conhecimento e as formas de relacionar ciência e sociedade, é urgente quebrar esse ciclo aceleratório e conseguir colocar de novo na mesa projetos mais amplos de universidade.

Nos últimos anos, testemunhamos cortes significativos no financiamento da pós-graduação, com redução drástica de bolsas de mestrado e doutorado. Como o senhor analisa os impactos dessas políticas para a pesquisa brasileira daqui a 5, 10 e 15 anos? Há riscos de um apagão geracional de pesquisadores?

Essa é uma das consequências dos processos a que me referi anteriormente. Por um lado, temos um aumento importante da demanda, da produção de mestres e doutores (em parte motivada também pela própria lógica auditorial, produtivista, que alimenta a máquina de concorrência entre programas). De outro lado, fica patente a falta de infraestrutura e de investimento para acompanhar esse crescimento, intensificando assim a precarização.

Em 2023, foram titulados 66.293 mestres e 25.170 doutores no Brasil, enquanto, para se ter uma ideia, em 1973 foram 3.500 mestres e 500 doutores. O ano de 2023 teve um incremento de 47% com relação a 2013 no número de discentes. O que mostra o tamanho do crescimento sistema de pós-graduação no Brasil nas últimas décadas, principalmente a partir dos anos 2000. Temos hoje, de fato, um sistema de pós-graduação bastante pujante e com ótimos quadros. Mas não basta crescer por crescer. É necessário também ter um projeto mais amplo e integral a respeito do papel desses mestrandos e doutorandos, com eles sendo integrados com qualidade. Caso contrário, estamos criando uma situação insustentável.

Não sei se haverá um apagão geral de pesquisadores em um futuro próximo, mas, nessa toada, com certeza vai haver um imenso contingente de ótimos pesquisadores excluídos do sistema que os formou, gerando com isso precarização – além de um ressentimento justo, que já existe... E, necessário dizer: há muito espaço ainda para inclusão desses mestres e doutores, mas isso depende de investimentos e de um projeto claro a respeito do que esperamos ao formar novos mestres e doutores.

A fuga de cérebros e a descontinuidade de projetos de longo prazo são alguns dos efeitos visíveis da falta de investimento. Quais alternativas o senhor vislumbra para manter vivo o sistema nacional de pós-graduação em um contexto de escassez crônica de recursos?

Primeiro, acho que temos que entender a própria escassez de recursos como um projeto. Diz respeito ao modo como se pactua ou se impõe um modo de arrecadação e distribuição de recursos. A recente reforma tributária é um exemplo. Houve avanços, mas também permaneceram muitos critérios injustos envolvendo arrecadação de riquezas, principalmente de grandes fortunas e de negócios como as empresas de apostas.

Sem recursos, o sistema nacional de pós-graduação – e todo o sistema universitário – tende a se precarizar cada vez mais, perdendo conquistas recentes, como a sua democratização. Sem recursos que sejam orientados por um projeto amplo, um grande contingente de pesquisadores formados nos últimos anos (e que serão formados nos próximos) permanecerão excluídos do sistema, ao mesmo tempo sem encontrar no mercado de trabalho brasileiro – dominado por exportação de commodities e pelo setor de serviços – espaços que tenham interesse e capacidade de absorvê-los em função de suas qualificações científicas. É preciso fortalecer alianças políticas para valorizar a pesquisa e o ensino, ainda mais em um contexto no qual essas áreas estão sob forte ataque de negacionistas de toda espécie.

Uma alternativa que eu vejo como desejável seria tentar encarar as consequências daquelas transformações que mencionei no início, vinculadas à mudança climática. Como afirmou a Naomi Klein, isso é algo que muda tudo. Ou, pelo menos, deveria mudar. As mudanças que estamos enfrentando e que tendem a se acirrar nas próximas décadas, dependendo da quantidade de gases de efeito estufa que continuarmos emitindo, são tão profundas e brutais que afetarão todo o nosso modo de vida. E as ciências, tanto naturais como humanas (e essa própria divisão tende a ser tornar mais porosa), podem ter um papel decisivo para lidar com essas novas condições planetárias, contribuindo para a mitigação desse processo, assim como para os processos de adaptação. Nesse sentido, é preciso tanto incorporar estruturalmente esse desafio existencial em nossos projetos de universidade, como estabelecer alianças a partir deles, revalorizando o espaço da Universidade e suas diferentes possibilidades.

Por fim, gostaria de abordar um tema que me inquieta pessoalmente: o avanço dos modelos de linguagem generativa e da inteligência artificial no ambiente acadêmico. Que desafios e transformações o senhor antevê para a graduação e a pós-graduação diante de ferramentas que, de certo modo, simulam a produção de pensamento? Haveria, na sua avaliação, possibilidades de incorporação crítica dessas tecnologias sem abrir mão do rigor e da autonomia intelectual?

As tecnologias têm um papel fundamental no modo como produzimos conhecimento. Elas não são apenas “instrumentos” que nós usamos para agir sobre o mundo. As tecnologias constituem quem somos, como nos entendemos como sujeitos e como sociedade, configurando modos de estar no mundo. E justamente por isso não é possível pensar a tecnologia como uma esfera autônoma de realidade, separada de outras, e politicamente neutra.

Os efeitos de aceleração da tecnologia, hoje, são indissociáveis dos modos como ela é produzida e desenhada dentro da sociedade capitalista, afetando, por sua vez, a organização dessa mesma sociedade. O caso da Inteligência Artificial é um bom exemplo disso. O modo como ela é desenhada, desenvolvida, tornada acessível, tudo isso tem efeitos no modo como será usada, como as pessoas vão interagir com ela, o modo como essas pessoas serão afetadas e transformadas por ela. Hoje temos uma corrida insana entre empresas para conquistar o monopólio da produção e distribuição dessa tecnologia, como aconteceu antes na história da internet (e criando possivelmente uma imensa bolha financeira em torno de especulações e promessas).

Então a questão é como a universidade vai se posicionar em relação a essas novas tecnologias. Adotaremos a IA produzida pela Open AI, pelo Google (como já adotamos sistemas da Microsoft e do Google, em vez de sistemas de software livre)? A opção pela adoção desses modelos monopolistas, desenhados por grandes corporações, significa estar sujeito aos efeitos da arquitetura algorítmica desses produtos. Algo que já vemos no uso cotidiano que se faz hoje de alguns desses serviços de IA e seus diversos problemas, como o plágio sistemático, a violação de direitos autorais, a extração de dados, entre outros. Ou, então, buscaremos desenvolver programas alternativos de IA, tendo alguma soberania e autonomia nas formas de desenhar essas tecnologias, pensando nos efeitos que elas podem ter na produção de conhecimento?

A IA, como qualquer tecnologia, pode ter usos e efeitos muito diferentes, dependendo de como são desenhadas, desenvolvidas, de como se inserem na sociedade. Colegas aqui no Brasil já estão fazendo um trabalho incrível nesse sentido, elaborando ferramentas de IA a partir de preocupações teóricas envolvendo a construção do conhecimento histórico. É possível, portanto, usar essas tecnologias sem perder o rigor intelectual e acadêmico. Mas isso deve ser valorizado, expandido, senão corremos o risco de simplesmente adotarmos algum produto que se tornará hegemônico no mercado mundial, com todos os efeitos nocivos que isso traz (e já vem trazendo). Para além da oposição entre apocalípticos e integrados, acho que o importante é politizar a tecnologia, vinculando ela a reflexões mais amplas sobre modos de estar no mundo e de produzir saberes sobre esse mundo.

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