Contra a monocultura ignorante e devastadora, as manifestações sagracionais de povos do sertão brasileiro. Entrevista especial com Cícero Félix de Sousa

Pesquisador que vive no chamado Oeste da Bahia estuda as manifestações sagracionais no médio São Francisco

Imagens cedidas por Cícero Félix | Arte: Mateus Dias/IHU

Por: Baleia Comunicação | 26 Fevereiro 2025

O sertão brasileiro é composto por incontáveis paisagens, modos de vida e crenças. Nesse caleidoscópio pouco conhecido para a maioria dos brasileiros, residem e resistem manifestações culturais, religiosas e artísticas cujas fronteiras são difíceis (senão impossíveis) de demarcar. Cícero Félix de Sousa, professor, pesquisador e conhecedor profundo das culturas do oeste baiano cunhou, em sua tese de doutorado, a expressão “manifestações sagracionais” para falar desses fenômenos, que tratam “dos saberes sagracionais, que são aqueles saberes através dos quais as pessoas se reúnem para pedir, agradecer e celebrar o estar juntos e em festa através do sagrado”, explica, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

“A folia, a reza, o estar juntos, o samba, a comilança coletiva, o batuque, tudo isso é sagrado; a barriguda, a umburana, a sucupira, a aroeira, o sofrê, o cardeal, o sabiá, o fogo-apagou, o carcará, tudo isso é sagrado. Mas, é claro, meu foco é o sagracional das manifestações mencionadas, embora essa dimensão do sagrado também esteja presente nos elementos que compõem a narrativa”, complementa.

A região marcada por um imaginário simbólico, artístico e cultural muito particular e múltiplo foi, progressivamente, se pausteurizando. O local é berço de artistas importantes do modernismo popular como Francisco Guarany, escultor de “carrancas [que] espantavam os seres encantados que habitavam o fundo dos rios, como o Nêgo d’Água, o Caboclo d’Água e o Minhocão”, a região passou a ser vista tão somente como uma nova fronteira agrícola.

“Tudo isso foi invisibilizado com a epifania do Oeste da Bahia. Nas últimas quatro décadas 2,3 milhões de hectares do cerrado baiano viraram berço das monoculturas de soja, milho e algodão. Tudo que fazia parte da história daquele lugar – a memória e todas as marcas identitárias da formação dos povos que habitavam aquele espaço – ficou no além, no não-lugar, habitat dos encantados, dos desqualificados, dos esquecidos, dos desviados. A região não mudou apenas de nome, mudou de paisagem, consolidando uma nova identidade. A violência da grilagem se espalhou, posseiros foram assassinados ou expulsos de suas terras, riachos começaram a desaparecer e os conflitos fizeram da região uma área em permanente estado de tensão. De modo que a ponte [em Ibotirama], que poderia representar o fim do insulamento regional, decretou o apagamento de um lugar e o nascimento de outro lugar”, ressalta.

“De 1985 a 2022, o cerrado baiano perdeu 23,1% de sua cobertura; entre 1980 e 1990, 17 riachos morreram no município de Correntina; recentemente, a CPT Centro Oeste da Bahia divulgou que há na região 7.120 km de trechos de águas mortas, entre córregos, riachos, nascentes e cabeceiras de rios; de 1964 a 1985, 68 pessoas morreram em conflitos agrários na região, entre elas 48 crianças. No entanto, o que se vê é o discurso de que o ‘Agro é pop’, ‘Agro é a indústria-riqueza do Brasil’. E é um discurso que está na mídia, na escola, na política, no comércio, na sociedade”, lamenta.

Frente a aridez da monocultura, manifestações culturais, artísticas e sagracionais se tornam um território de resistência importante. “Precisamos pensar a arte com o lugar onde vivemos, como meio de refletir sobre nossa existência, que nos faça olhar para o que fomos, somos e seremos. O que devemos saber com os saberes ancestrais? Sepultá-los com os antigos? Não. Creio que devemos plantá-los. Quem sabe crie raízes, se espalhe como sementes”, propõe.


Cícero Félix de Sousa (Foto cedida pelo entrevistado)

Cícero Félix de Sousa é doutor em Artes Cênicas pela da Universidade de Brasília (UnB). Atua como professor adjunto da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), onde é o atual Coordenador de Arte e Cultura da Pró-reitoria de Extensão e Cultura (PROEC). É graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Estadual da Paraíba e mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Em 2001, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, categoria Primeira Página, com o trabalho "Terroristas atacam os EUA", publicado no jornal Diário da Borborema, em Campina Grande (PB). Produziu vários documentários, entre eles "Seu Limiro, quando a caretagem chegar", em 2022. Em 2024, publicou, em organização conjunta com o professor Graça Veloso (UnB), o livro "Etnocenologia: saberes de vida, fazeres de cenas". Em parceria com o Fotógrafo Rui Rezende, publicou os livros "Cerrado e outras riquezas do Maranhão, Tocantins, Piauí e da Bahia (2023), "Bahia vista por um passarinho" (2022), "Oeste da Bahia - Novo Mundo" (2014) e "Vaqueiros do Raso da Catarina" (2018). 

Confira a entrevista.

IHU – Como você pensa e como podemos pensar o conceito de arte a partir das manifestações populares e manifestações estéticas sagracionais do Brasil profundo?

Cícero Félix – Eu lembro que na minha infância, toda criança buliçosa, travessa, que não deixava nada quieto e estava sempre entretida com seu imaginário criativo, para lá de ser uma criança atentada, era uma criança arteira. Nesse sentido, arte é aquilo feito por um arteiro, e não por um artista. Ela nasce da experiência da vida. Por isso não me arrisco a definir um conceito sobre arte a partir dessas manifestações. Eles não pensam nisso. Eles pensam em só em fazer, em realizar. Uma vez perguntei a dona Pulu, benzedeira e rezadeira da comunidade Jataí, de Canápolis (BA) em que ela acreditava quando levantava o Altar do Menino Deus. Ela respondeu: “É felicidade pra mim e pra todos”. Seu Limiro, de Santo Antônio, comunidade vizinha do Jataí, fez caretas e bonecos para a Malhação de Judas por mais de 60 anos. Perguntei se ele era artista e essa foi a resposta: “Faço apenas parência”, respondeu ele, se distanciando da definição de artista.

Tem um poema que Manoel de Barros diz que atrás da casa dele tinha um rio. Para ele, aquele rio era uma cobra de vidro mole que fazia uma volta atrás de sua casa. Aquilo era fantástico. Aí, um dia chegou um homem e disse: Esse rio que faz volta atrás de sua casa se chama enseada. “Acho que o nome empobreceu a imagem”. Nós, da academia, temos a mania de sair dando nomes a coisas que já têm nomes, a fazeres que já têm nomes. Saímos arrogantemente com nossa caixinha de ferramenta teórica/científica conceituando, definindo, classificando. A despeito disso, inclusive, evito usar a palavra “popular” para me referir a essas manifestações. Porque é uma palavra que define aqueles fazeres a partir de uma classificação de lugar, de uma escala de valores sociais, em oposição àquilo que é erudito, culto, clássico. Eu acho que essas manifestações não querem e não pediram para ser classificadas, nem definidas por essa ótica.

IHU – Embora tenha nascido no sertão da Paraíba, você mora no oeste baiano há mais de uma década. Há algo curioso nesta região da margem esquerda do médio São Francisco, que é, precisamente, a denominação “oeste da Bahia”. Até o final da década de 1820 o território pertenceu a três estados diferentes: Pernambuco, Minas Gerais e, finalmente, Bahia. Como se deu a história da região e como isso ajuda a compreender as características e contradições do território?

Cícero Félix – O professor Paulo Baqueiro Brandão, do Centro de Humanidades da UFOB, faz uma abordagem interessante sobre os nomes da margem esquerda do médio São Francisco ao longo da história. Da descoberta do grande rio, em 1501, até 1827, era uma região indiferenciadamente sertaneja, com forte presença de tapuias. Tudo era sertão. De 1827 a 1985 a região passa a ser chamada de Além São Francisco. Talvez por ser um lugar distante, isolado, habitado por comunidades tradicionais, longe dos grandes centros urbanos, ou talvez por ser considerado um lugar insignificante, infértil, mal-assombrado, casa do além, lugar do encantado. De 1985 pra cá, virou Oeste da Bahia, uma das mais importantes fronteiras do agronegócio brasileiro. Essa divisão demarca a gestão administrativa e o desenvolvimento científico e econômico da região, influenciado sobretudo pela Revolução Verde estadunidense que surge na década de 1960, fundada na modernização tecnológica do maquinário agrícola, implementação de fertilizantes, agrotóxicos e insumos químicos.

A partir dessa divisão proposta por Brandão, quero destacar a difusão do imaginário católico, do imaginário das encantarias são-franciscanas e o apagamento das culturas tradicionais da região. A construção da capela São Francisco das Chagas, em Barra (BA), da capela Santo Antônio, na atual cidade de Paratinga (BA), ambas entre 1670 e 1680, bem como a chegada do português Francisco Mendonça Mar à gruta do morro, em 1691, hoje Bom Jesus da Lapa, cujo santuário é o maior centro religioso do sertão são-franciscano, demarcam efetivamente a presença e a disseminação do imaginário católico no médio São Francisco, nas duas margens do rio. Do período Além São Francisco, faço um ajuste em relação ao intervalo proposto por Brandão.

Considero o fim simbólico do Além São Francisco e o início do Oeste da Bahia não 1985, mas 1986, ano em que foi construída a primeira ponte sobre o grande rio na região, em Ibotirama (BA). É nesse período que o imaginário das encantarias são-franciscanas ganha destaque, com o surgimento das carrancas, nas últimas décadas do século XIX. Esses seres zooantropormóficos com expressões de pavor navegam na proa das barcas do São Francisco até 1955. De acordo com o maior carranqueiro do São Francisco, Francisco Bicuiba Dy Lafuente Guarany (1882-1985), as carrancas espantavam os seres encantados que habitavam o fundo dos rios, como o Nêgo d’Água, o Caboclo d’Água e o Minhocão. Guarany foi, provavelmente, “o primeiro artista moderno da arte popular brasileira”, segundo Lorenzo Mammì, o professor da Universidade de São Paulo - USP. Não sei se Guarany se considerava artista, muito menos moderno. De qualquer forma, é um reconhecimento importante.

Então, tudo isso foi invisibilizado com a epifania do Oeste da Bahia. Nas últimas quatro décadas 2,3 milhões de hectares do cerrado baiano viraram berço das monoculturas de soja, milho e algodão. Tudo que fazia parte da história daquele lugar – a memória e todas as marcas identitárias da formação dos povos que habitavam aquele espaço – ficou no além, no não-lugar, habitat dos encantados, dos desqualificados, dos esquecidos, dos desviados. A região não mudou apenas de nome, mudou de paisagem, consolidando uma nova identidade. A violência da grilagem se espalhou, posseiros foram assassinados ou expulsos de suas terras, riachos começaram a desaparecer e os conflitos fizeram da região uma área em permanente estado de tensão. De modo que a ponte, que poderia representar o fim do insulamento regional, decretou o apagamento de um lugar e o nascimento de outro lugar.

 O Oeste da Bahia fica à esquerda da margem do Rio São Francisco na ilustração (Mapa: Reprodução)

IHU – Hoje, se pesquisarmos no Google “cultura do oeste da Bahia” um grande número de resultados nas primeiras páginas direcionará a resposta para o agronegócio monocultor. Qual a importância, diante deste cenário, de se fazer memória sobre a multiplicidade de culturas presentes na região?

Cícero Félix – Sempre que tinha oportunidade, Nego Bispo (Antônio Bispo dos Santos) contava a história de uma conversa que teve com seu tio Norberto Máximo, que estava muito doente e pediu para ele não deixar de passar para as outras gerações aquilo que ele havia passado para ele. Desse modo, mesmo que ele estivesse enterrado, estaria vivo. Agora se ele deixasse de passar para as outras gerações aqueles saberes, mesmo que ele estivesse presente, estaria morto. Eu penso que cuidar da memória desse lugar e da cultura dessas pessoas é manter essa memória em movimento, viva, latente. É resistir às metodologias discursivas, estéticas, religiosas sobre uma região que é anterior a esse “novo lugar” e que tem sido impactada violentamente por tudo isso. De 1985 a 2022, o cerrado baiano perdeu 23,1% de sua cobertura; entre 1980 e 1990, 17 riachos morreram no município de Correntina; recentemente, a CPT Centro Oeste da Bahia divulgou que há na região 7.120 km de trechos de águas mortas, entre córregos, riachos, nascentes e cabeceiras de rios; de 1964 a 1985, 68 pessoas morreram em conflitos agrários na região, entre elas 48 crianças. No entanto, o que se vê é o discurso de que o “Agro é pop”, “Agro é a indústria-riqueza do Brasil”. E é um discurso que está na mídia, na escola, na política, no comércio, na sociedade.

IHU – Em linhas mais gerais, sua tese tem como objeto de investigação aquilo que você chama de manifestações sagracionais populares. Gostaria que você explicasse do que se tratam e qual a característica cultural e mística deste fenômeno?

Cícero Félix – Dizer que o Altar do Menino Deus e a Folia de Nossa Senhora do Livramento são manifestações sagracionais tem mais a ver com uma escolha ética, uma postura contracolonial. É muito comum encontrarmos nos textos que falam sobre manifestações religiosas tradicionais a expressão “catolicismo popular”. Também evito usar. Se há em cada manifestação, como diz Armindo Bião, características de múltiplas matrizes culturais oriundas de diversos processos de transculturação, por que destacar nessa expressão apenas catolicismo? Por isso, prefiro usar a expressão “manifestação sagracional” para tratar dos saberes sagracionais, que são aqueles saberes através dos quais as pessoas se reúnem para pedir, agradecer e celebrar o estar juntos e em festa através do sagrado, como diz o professor Graça Veloso. Agora, é claro, a ideia de sagrado é muito mais ampla. A folia, a reza, o estar juntos, o samba, a comilança coletiva, o batuque, tudo isso é sagrado; a barriguda, a umburana, a sucupira, a aroeira, o sofrê, o cardeal, o sabiá, o fogo-apagou, o carcará, tudo isso é sagrado. Mas, é claro, meu foco é o sagracional das manifestações mencionadas, embora essa dimensão do sagrado também esteja presente nos elementos que compõem a narrativa.

IHU – Ainda sobre a sua pesquisa, você estuda mais profundamente dois fenômenos: o Altar do Menino Deus e a Folia de Nossa Senhora do Livramento, que acontecem no Jataí, comunidade rural de Canápolis, no oeste baiano. Gostaria que você explicasse melhor o que são essas manifestações.

Cícero Félix – Primeiro, o Altar do Menino Deus é uma manifestação que acontece no período natalino, entre 24 de dezembro, véspera do dia em que se celebra o nascimento de Jesus Cristo, e 6 de janeiro, Dia de Reis. Até o final do século XXI, levantar o altar nesse período não era algo raro nas comunidades rurais da região, embora levantar a lapinha fosse mais comum – altar, lapinha e presépio são coisas distintas. O Altar do Menino Deus do qual trato na pesquisa é o realizado na família Barbosa do Rosário. É importante fazer essa observação porque cada pessoa e grupo realiza sua manifestação a sua maneira. Nenhuma manifestação é igual a outra. Não se sabe quando o altar começou a ser levantado na família Barbosa do Rosário pela véia Joana, a Joana do Jataí. Deduz-se que ela nasceu antes de 1905, e que um dia levantou o altar para pagar uma promessa e, a pedido da madrinha, continuou levantando até o fim da vida. Dona Pulu, sua neta, nasceu em 1948 e desde pequena ajudou a avó a levantar o altar. Assim o fez até morrer, em 2021. Então imagino que essa tradição, nessa família, acontece há mais de 60 anos. Hoje, está adormecida. Se dona Pulu herdou da véia Joana os saberes sagracionais de reza e benzeção, Malvina herdou de sua mãe, dona Pulu, os mesmo saberes. Inclusive, ela levantou o altar em 2023. Quem sabe não volte a levantar no futuro?

Devoção (Foto cedida pelo entrevistado)

A Folia de Nossa Senhora do Livramento realizada por , primo de dona Pulu, acontece entre o dia 31 de janeiro e 2 de fevereiro, dia da santa. A folia surgiu de uma promessa feita para Rê, em 1987, que costumava desmaiar nas quadras da lua. O pai tentou curá-lo através do esoterismo e de medicamentos farmacêuticos, mas foi a promessa feita por sua tia-mãe a Nossa Senhora Livramento que o livrou daquele mal. Desde então, foliões da região se reúnem e saem em giro pela comunidade para que cumpra seu compromisso com a santa. É importante destacar que, a cada ano, as manifestações também sofrem mudanças, quer seja na quantidade de dias, nas etapas da manifestação, na duração, na formação das rezadeiras e rezadores ou no grupo de foliões. Cada ano, a manifestação se atualiza de acordo com suas condições e com seus integrantes.

IHU – Quais são as características estéticas destas manifestações? Como cultura popular e sacra se misturam neste universo?

Cícero Félix – O Altar do Menino Deus da família Barbosa do Rosário tem uma característica estética que me chamou bastante atenção: eles penduram no teto da sala onde é montado o altar incontáveis galhos com mangas. É como se a mangueira entrasse pelo telhado e transformasse o teto em uma generosa copa a milagrar frutas. Era assim na época da véia Joana, foi assim na época de dona Pulu. Outra característica interessante do altar é que a reza é feita só por mulheres, nos 14 dias da manifestação. Há a participação masculina na reza em apenas um oferecimento, feito por seu Camilo, companheiro de dona Pulu. O coro de mulheres rezando, se revezando em duplas e grupos com aquelas ladainhas arrastadas e dolorosas, me lembra a imagem do parto. A estética daquela reza, com algumas orações em latim rural próprio, para mim, é a representação de um parto. O que não deixa de ter seu fundamento, a reza se encerra à meia-noite, na hora em que o Menino Jesus nasce, conforme o imaginário cristão.

Casa decorada para a celebração | Foto cedida pelo entrevistado

O giro da Folia de Nossa Senhora do Livramento, em si, se assemelha aos demais giros de folia. É feito de visitas, canto de reverência a santa, canto de agradecimento ao dono da casa, sambas e se encerra com o canto de louvação da mesa. Cada folião se veste como quer. Uns tem fitas coloridas e festões no chapéu, outros usam uma espécie de estola branca com desenhos coloridos nas pontas envolta no pescoço. Bandeirolas feitas de livros são a decoração da sala. O altar está sempre pronto, na sua simplicidade. Sobre a reza, há uma cena que se destaca: acompanha toda a Ladainha de Nossa Senhora, em latim, de joelhos, com uma vela na mão e a imagem de Nossa Senhora do Livramento sobre uma toalha na sua cabeça, segurada por alguém que fica atrás. Encerrada a reza, foliões, rezadeiras, rezadores e demais participantes saem da sala pela porta da frente com santos, santas e velas em cortejo ao redor da casa, retornando para sala. A esse movimento Rê chama de “arvorada”. A partir desse momento a alegria dos foliões toma conta da sala com seus sambas de chula e outros batuques. A folia é encerrada com o canto de louvação à mesa e com um almoço.

Altar da Pulu (Foto cedida pelo entrevistado)

IHU – Como se caracterizam os “ritos espetaculares”, no sentido dado pela etnocenologia, e de que maneira eles fazem um diálogo entre resíduos do devocionário colonial português e as culturas afro-indígenas? Até que ponto são e não são sincréticos?

Cícero Félix – Tem várias questões nessa pergunta. Primeiro, ritos espetaculares, assim como artes do espetáculo e formas cotidianas espetacularizadas pelo olhar do pesquisador constituem os grupos de objetos de estudo da Etnocenologia organizados por Armindo Bião quando a disciplina foi implantada na UFBA, em 1995. Ritos espetaculares são eventos extracotidianos, como rituais religiosos, festejos públicos, cerimônias, eventos sazonais e outras formas de ações coletivas.

Sobre o sincretismo, acho difícil uma fé que não seja sincrética. Um dia perguntamos pra dona Pulu se ela era católica. “Deus é quem sabe”, respondeu. E por que ela pensa assim? Ela mesmo explica: “Eu sô da igreja, eu sô da medicina, eu sô de tudo que pensar”. Essa medicina a qual ela se refere é fundada na cultura afro-indígena da cura através de plantas e de rituais de benzeções. Esses saberes são frutos de processos de transculturações, ressignificações, resistências. Veja o que diz o Plano Territorial de Desenvolvimento Sustentável (PTDS) de 2010: “a presença da igreja católica na região foi deficiente, levando os princípios católicos a serem desnaturados nas classes mais baixas”. Essa visão se perpetua sobre esses fazeres e essas manifestações sagracionais desnaturadamente sincréticas e ressignificadas.

IHU – Como esse pertencimento coletivo se manifesta através da relação com o sagrado? Como imaginário, simbólico e realidade se misturam neste universo?

Cícero Félix – É prática entre os antigos plantar o umbigo da criança na porteira do curral, na encruzilhada (minha vó Santa fazia assim), ao pé de uma planta ou com uma planta. Cada lugar, cada gente, com sua cultura. É uma prática de encruzilhada que acontece em vários lugares do mundo, em várias aldeias, com vários povos. Esse ritual praticamente não existe mais entre as gerações mais novas do Jataí. Malvina, mesmo, diferente de sua mãe dona Pulu, não enterrou nenhum umbigo de seus filhos. De qualquer forma considero a imagem da plantação do umbigo uma representação poética sobre o pertencer. Quando dona Pulu diz “Nasci, criei e tô aqui até hoje” ela declara o ciclo de seu pertencer, que é contínuo. Daí vem seu Limiro e diz que as pessoas são plantadas quando morrem. Veja a potência desse pertencer: seu umbigo é plantado quando você nasce e seu corpo é plantado quando você morre. Como diz Eduardo Galeano, “la muerte es mentira”. A gente nasce, cresce e permanece, porque se transforma, porque renasce, porque continua no movimento da vida.

IHU – Além dessas manifestações espetaculares, a região é fértil em termos artísticos. Dois escultores, com trajetórias bem distintas, são nomes importantes da arte brasileira: Deocleciano Martins de Oliveira, escultor de estátuas em bronze, e Francisco Guarany, carranqueiro, reconhecido como primeiro artista popular modernista. Quem são esses personagens e qual a importância da obra deles?

Cícero Félix – A importância de Guarany para a história da arte brasileira, para a história do rio São Francisco, é indiscutível. No entanto, não há nenhum monumento em Santa Maria da Vitória em memória desse ilustre mestre carranqueiro. Mas há um letreiro escrito “Eu [imagem de um coração] Santa Maria da Vitória”, que propõe um pertencer pasteurizado, que nega a ancestralidade e a cultura do território. Esse negar é esquecer, e o esquecimento é uma forma de invisibilização, de apagamento. Outro santa-mariense notável foi Osório Alves de Castro (1898-1978), vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura de 1962, com o romance Porto calendário. Este livro é uma das obras primas da literatura são-franciscana.

Deocleciano Martins de Oliveira (1906-1974) nasceu na cidade da Barra (BA). Foi jornalista, juiz, escultor, pintor, crítico, poeta e escritor. Em seu exercício literário foi premiado três vezes pela Academia Brasileira de Letras por obras sobre a região são-franciscana. Mas quero chamar atenção para o Ciclo de bronze, iniciado na década de 1950. Nesse período, Deocleciano espalhou esculturas em bronze por quatro estados da bacia do rio São Francisco: Minas Gerais (Pirapora), Bahia (Bom Jesus da Lapa, Barra, Juazeiro e Paulo Afonso), Pernambuco (Petrolina) e em Alagoas (Penedo).

Acho que Guarany, Osório e Deocleciano são um bom caminho para se conhecer um pouco dessa região.

IHU – Diante de todo esse contexto no qual nos debruçamos nesta entrevista, pergunto: qual a pertinência da arte hoje?

Cícero Félix – Então, depende da qual arte estamos falando. Talvez haja no inconsciente coletivo uma ideia de arte que não corresponde àquilo que é feito por muitos arteiros ou artesãos tradicionais. Como essas pessoas são percebidas dentro do cotidiano de seu lugar? É uma questão interessante. Acho que precisamos pensar na arte em um sentido contracolonial. Que lugar no atual ideário coletivo de arte tem a rabeca de seu Adrião, por exemplo, feita de folha de buriti e colada com sambaré, plantas próprias dos Gerais. E as caretas e os bonecos de seu Limiro? E o grupo de foliões que ajuda as pessoas a pagarem suas promessas? E a poesia e o samba de Chico de Helena? E as ceramistas da Barra? Precisamos pensar a arte com o lugar onde vivemos, como meio de refletir sobre nossa existência, que nos faça olhar para o que fomos, somos e seremos. O que devemos saber com os saberes ancestrais? Sepultá-los com os antigos? Não. Creio que devemos plantá-los. Quem sabe crie raízes, se espalhe como sementes.

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