APPs e Reserva Legal: passivo ambiental do Brasil equivale ao tamanho do Uruguai. Entrevista especial com Marcelo Elvira

Mesmo com as alterações do Código Florestal, o país possui quase 19 milhões de hectares a serem recuperados para mitigar impactos dos eventos extremos, assinala o advogado

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Patricia Fachin | Edição: Cristina Guerini | 09 Julho 2024

Com passivo ambiental semelhante ao tamanho do Uruguai, o Brasil precisa recuperar 19 milhões de hectares para começar a enfrentar o desafio da adaptação frente ao novo regime climático, é o que revela Marcelo Elvira, secretário executivo do Observatório do Código Florestal.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o advogado afirma que “mesmo com os novos parâmetros do Código Florestal, o Brasil possui quase 19 milhões de hectares de passivo ambiental [das Áreas de Preservação Permanente – APPs e Reserva Legal – RL]. É uma área [...] que carece de políticas e medidas de recuperação para adequação ambiental dessas propriedades”, pontua.

Especialista em direito ambiental, o entrevistado acentua a relevância da preservação das APPs e RLs frente aos eventos climáticos extremos que estão ocorrendo no país. “Tanto a RL quanto as APPs requerem proteção pois exercem um importante papel no funcionamento e equilíbrio do meio ambiente”, explica. Enquanto “as APPs de beiras de rios ainda têm um papel primordial na proteção das margens e evitam assoreamento e erosão, além de garantirem estabilidade hídrica, geológica e da biodiversidade”, a Reserva Legal “assegura o uso econômico de forma sustentável, também garantido a proteção da biodiversidade e a reabilitação de processos ecológicos”, esclarece.

A preocupação com a proteção das margens dos rios existe desde o Brasil Colônia. “A proteção dessas áreas é tão relevante que foram declaradas propriedades da Coroa na Carta Régia já em 1797”, destaca Marcelo Elvira. “Sua proteção foi prevista pela legislação desde o Código Florestal de 1934, à época chamadas de ‘florestas protectoras’ que tinham, dentre suas funções, a de conservar o regime das águas”, complementa.

Palco da maior tragédia ambiental do país na história recente, o Rio Grande do Sul ainda carece de cuidado no que tange à proteção do entorno dos cursos d’água. “O Termômetro do Código Florestal mostra que o estado possui mais de 387 mil hectares de vegetação nativa ainda a ser recuperada, área equivalente à quase oito vezes o município de Porto Alegre”, exemplifica. “Destes, 256 mil são de reserva legal (RL) e 129 mil são de áreas de preservação permanente (APPs)”, conclui.

Marcelo Elvira (Foto: Observatório do Código Florestal)

Marcelo Marques Spinelli Elvira é formado em direito pela PUC/SP, tem especialização em direito ambiental pela mesma universidade e em cultura de paz pela Universitat Autónoma de Barcelona. É secretário executivo do Observatório do Código Florestal, uma rede de 45 organizações da sociedade civil que monitora a implementação da lei de proteção da vegetação nativa do Brasil (Lei 12.651/2012).

Confira a entrevista.

IHU – Qual é a importância das APPs e da RL no combate aos eventos climáticos extremos?

Marcelo Elvira – As APPs e RL são extremamente importantes no combate aos efeitos de eventos climáticos extremos. Tanto a RL quanto as APPs requerem proteção pois exercem um importante papel no funcionamento e equilíbrio do meio ambiente. As APPs de beiras de rios ainda têm um papel primordial na proteção das margens e evitam assoreamento e erosão, além de garantirem estabilidade hídrica, geológica e da biodiversidade. Já a RL assegura o uso econômico de forma sustentável, também garantido a proteção da biodiversidade e a reabilitação de processos ecológicos.

A proteção dessas áreas é tão relevante que foram declaradas propriedades da Coroa na Carta Régia já em 1797; Sua proteção foi prevista pela legislação desde o Código Florestal de 1934, à época chamadas de “florestas protectoras” que tinham, dentre suas funções, a de conservar o regime das águas. Quanto mais o Código Florestal estiver implementado e essas áreas protegidas, maior a capacidade do ecossistema reagir positivamente a eventos extremos.

IHU – É possível estimar que percentual de APPs e RL o Brasil precisaria manter para mitigar os efeitos de eventos extremos?

Marcelo Elvira – Não é possível estimar um percentual exato de cobertura vegetal para mitigação de efeitos de eventos extremos pois ainda não se sabe. O que a ciência já sabe e prova cada dia mais é que a cobertura de vegetação tem um papel essencial de manutenção ecossistêmica do país e do mundo, inclusive para a adaptação frente ao caos climático que já vivemos.

E a recuperação da vegetação nativa, essas áreas, é urgente. Uma pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, concluiu que ações de recuperação florestal podem aumentar a absorção de água pelo solo em até 57%, o que reduz o escoamento superficial e, consequentemente, as enchentes.

Além disso, é necessário caminhar rumo a uma diminuição do desmatamento no Brasil, atividade que mais gera gases de efeito estufa no país.

Essa remoção da vegetação nativa altera a dinâmica das chuvas, diminuindo as taxas de evapotranspiração e aumentando a ocorrência de eventos chuvosos extremos no país. Globalmente, a menor capacidade de retenção de carbono gerada pelas florestas agrava ainda mais a crise climática.

IHU – Qual é a situação das APPs e RL desde a aprovação do novo Código Florestal, em 2012? Elas foram ampliadas ou reduzidas?

Marcelo Elvira – Aumentaram, apesar de flexibilizações que permitiram a redução de APPs, seja na nova lei ou em projetos de lei aprovados posteriormente – e merece destaque a Lei 14.285/2021, que alterou o regime das APPs urbanas e é um sério retrocesso ambiental, pois permite que municípios determinem o tamanho dessas áreas dentro dos perímetros urbanos. A constitucionalidade dessa lei está sendo discutida no STF por meio da ADI 7146.

A questão é que, mesmo com os novos parâmetros do Código Florestal, o Brasil possui quase 19 milhões de hectares de passivo ambiental nessas duas categorias. É uma área quase similar ao tamanho do Uruguai, e que carece de políticas e medidas de recuperação para adequação ambiental dessas propriedades. Vale reforçar que a implementação do Código Florestal é também uma medida de adaptação do país frente às mudanças climáticas.

IHU – Como diferentes proprietários de terra reagem diante da legislação sobre APPs e RL em seus territórios? Qual tem sido a adesão a este ponto da legislação?

Marcelo Elvira – Com mais de 7 milhões de cadastros em imóveis rurais privados, pode-se dizer que a primeira etapa da legislação, a inscrição do Cadastro Ambiental Rural (CAR), teve avanços significativos. Mas os desafios ainda são imensos.

O primeiro é o avanço na análise e validação das informações, que são autodeclaradas, e o que gera incertezas para proprietários rurais nas demais etapas de regularização ambiental.

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O segundo é a fase de restauração e recuperação, ou seja, a segunda etapa após análise do CAR, o Programa de Regularização Ambiental (PRA). O programa exige um projeto de recuperação e restauração de eventual passivo de vegetação identificado na primeira.

IHU – O que a nova versão do Termômetro do Código Florestal, publicada em fevereiro, revela sobre qual é o passivo gaúcho em relação a APPs e RL? Em que regiões do estado este passivo é maior?

Marcelo Elvira – O Termômetro do Código Florestal mostra que o estado possui mais de 387 mil hectares de vegetação nativa ainda a ser recuperada, área equivalente à quase oito vezes o município de Porto Alegre, capital gaúcha. Destes, 256 mil são de reserva legal (RL) e 129 mil são de áreas de preservação permanente (APPs). Não é possível verificar o detalhamento por região.

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