“A democracia e os direitos cívicos estão ameaçados pela desinformação.” Entrevista especial com Katya Vogt

“A chamada ‘desordem informacional’ impede que os cidadãos tomem decisões informadas, protejam seus direitos e seu bem-estar e responsabilizem seus governos. Isso é uma ameaça aos próprios fundamentos da democracia”, constata a pesquisadora

Foto: TSF Radio Notícias

Por: Taís Seibt e Ricardo Machado | 20 Junho 2022

 

A desinformação no ambiente digital ameaça a democracia e os direitos cívicos, nenhum país ou setor está imune, e crianças e jovens são ainda mais vulneráveis a informações manipuladas nas mídias sociais. Por essa razão, desenvolver as competências necessárias para navegar na internet e participar do ecossistema informacional atual é uma habilidade central do século XXI.

 

Essa é a visão de Katya Vogt, integrante da ONG internacional IREX, em que projetou o Learn to Discern - L2D (Aprender a discernir, em tradução livre), uma abordagem centrada no ser humano que capacita os cidadãos a navegar no ambiente contemporâneo de informações de maneira segura, saudável, responsável, crítica e orientada para a empatia. Segundo ela, “a ameaça da desinformação on-line continua aumentando: no ano passado, 81 países usaram as mídias sociais para espalhar propaganda e desinformação – um aumento de 15% em relação ao ano anterior”.

 

A especialista foi uma das palestrantes da primeira oficina do Desafio Nuvem de Educação Midiática, programa da Unisinos com apoio da Embaixada e Consulados dos EUA no Brasil para promover a formação de professores do ensino básico para trabalhar o letramento midiático nas escolas. Nesta entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU por e-mail, a pesquisadora detalha sua experiência e suas percepções sobre educação midiática, desinformação e democracia.

 

Katya Vogt (Foto: Arquivo pessoal)

Katya Vogt é mestre em Políticas de Educação Internacional pela Harvard Graduate School of Education. É diretora nacional e gerente sênior de desenvolvimento da IREX em Kiev, na Ucrânia.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Por que a educação midiática é importante, considerando o contexto atual de excesso de informação, especialmente nas mídias digitais?

 

Katya Vogt – Informações manipuladoras – ou a notória família da desinformação (no inglês, dis-, mis- e mal-information) –, desde a ansiedade pelo “like” até a propaganda computacional, ameaçam a democracia, corroem a confiança nas instituições públicas e polarizam comunidades e sociedades. Nenhum país está imune e nenhum setor é poupado. O avanço da informação digital e das mídias sociais reformulou e complicou irreversivelmente o engajamento com a informação tendo profundas ramificações no bem-estar individual, democracia, saúde pública, crescimento econômico, paz e segurança, entretenimento, esporte, diplomacia e muito mais.

 

Jovens e crianças são particularmente vulneráveis à manipulação on-line. Um estudo recente descobriu que os americanos com menos de 25 anos eram os mais propensos a acreditar em informações erradas sobre a Covid-19. A mudança geral no engajamento de jovens com a informação – maior uso de mídias sociais digitais e grandes volumes de conteúdo, muitos não objetivos ou baseados em fatos – levou a mudanças negativas na saúde mental dos jovens, identidade positiva e engajamento cívico. Os jovens enfrentam várias ameaças enquanto navegam no mundo digital. A superestimulação constante das mídias sociais e os altos níveis de estresse psicológico apresentam sérias implicações para a saúde mental dos jovens. A exposição a conteúdos nocivos ou falsos, o cyberbullying, ou mesmo discursos de ódio e estereótipos impactam negativamente a identidade positiva, assim como a constante comparação social negativa.

 

 

No espaço de engajamento cívico, o engajamento on-line pode levar à exploração de jovens (inclusive por grupos digitais extremistas) e a sobrecarga de informações pode levar à apatia e desconfiança. Esses riscos são impulsionados por muitos fatores, entre eles, curiosidade, confusão e incerteza decorrentes da sobrecarga de informações, desejo de pertencimento e “revolta” em relação ao status quo. Preocupantemente, o aumento significativo do tempo gasto on-line durante a pandemia de Covid-19 apenas exacerbou esses efeitos. O isolamento social causado pela pandemia tem sido associado ao aumento das taxas de depressão e ansiedade entre os jovens, em parte devido ao grande aumento do tempo gasto on-line. Em alguns casos, a combinação desses fatores levou ao isolamento social, radicalização ou adoção de ideologias extremistas e até práticas de violência entre os jovens.

 

O letramento midiático moderno, que visa construir o pensamento crítico e hábitos saudáveis de engajamento com a informação, é crucial para o sucesso dos jovens. As competências necessárias para navegar e participar do ecossistema de informações de hoje devem ser tratadas como centrais no século XXI, bem como uma das soluções para combater a influência da má informação. Enquanto outras soluções, como a ampliação do volume e da ressonância do jornalismo de qualidade; dispositivos de tecnologia que monitoram, sinalizam e/ou removem conteúdo ruim; verificação de fatos, e responsabilização das plataformas ainda estão sendo discutidas e testadas, há uma necessidade urgente de esforços centrados no ser humano.

 

Lançamento do Desafio Nuvem de Educação Midiática:

 

IHU – No seu ponto de vista, a educação midiática pode ajudar a construir verdades factuais no ambiente digital?

 

Katya Vogt – Learn to Discern - L2D (Aprender a discernir, em tradução livre) é a abordagem da IREX que reconhece as raízes da vulnerabilidade à desinformação e ao discurso de ódio nos “sistemas operacionais” humanos e nos incentivos incorporados à infraestrutura de mídia social. Essa abordagem equipa aqueles que consomem informações com habilidades de pensamento crítico para navegar no espaço poluído da informação de maneira saudável, responsável e orientada pela empatia. Desde sua impactante performance original na Ucrânia, onde alcançou mais de 90 mil pessoas em nove meses, o Learn to Discern transmitiu uma capacidade duradoura de reconhecer a desinformação entre os participantes - um ano e meio após os treinamentos, os participantes continuaram a ter 25% mais chances de verificar várias fontes de notícias e foram 13% mais propensos a discernir entre desinformação e uma reportagem objetiva.

 

Desde então, o L2D foi coadaptado com parceiros e públicos locais em mais de 20 países, a maioria deles fragilizados por conflitos, onde se constrói a resiliência das comunidades à desinformação patrocinada pelo Estado, inocula comunidades contra desinformação de saúde pública, promove comunidades inclusivas ao empoderar seus membros a reconhecer e rejeitar narrativas que geram divisão e discursos de ódio, melhora a capacidade dos jovens de navegar em espaços on-line cada vez mais poluídos e permite que os líderes tomem decisões com base em fatos e informações de qualidade.

 

Globalmente, as iniciativas do L2D hoje incluem treinamentos on-line por pares, baseados em jogos liderados por jovens na Geórgia, Tunísia, Jordânia e Sérvia; integração nos sistemas educativos da Ucrânia, através do ensino secundário e da formação de professores, e da Letônia, Lituânia, Estônia e Jordânia, através do ensino superior; treinamentos eficazes conduzidos por influenciadores de confiança local para cidadãos de todas as idades no Sri-Lanka, Jordânia, Montenegro e Ucrânia; e plataformas de mídia social e jogos on-line ou conteúdo interativo na Indonésia, Ucrânia, Sérvia, Albânia e Jordânia.

 

Learn To Discern: Citizen Media Literacy in Ukraine and Beyond (9-minute version)

 

IHU - Qual é o impacto potencial da educação midiática para o futuro das sociedades democráticas? Você acredita que há democracia possível sem verdade factual?

 

Katya Vogt – Claro que não acredito que a democracia seja possível sem verdade factual. Globalmente, a democracia, os valores e direitos cívicos estão ameaçados à medida que a desinformação desenfreada polariza a política, põe em perigo as comunidades, enfraquece as instituições e ameaça a governança efetiva e ética, a coesão social, a segurança nacional e até a saúde pública. A chamada “desordem informacional” impede que os cidadãos tomem decisões informadas, protejam seus direitos e seu bem-estar e responsabilizem seus governos. Isso é uma ameaça aos próprios fundamentos da democracia.

 

 

Mídias sociais e a propagação da desinformação

 

No centro da crise está o surgimento das mídias sociais digitais, que permitiram que informações manipulativas fossem produzidas em escala, velocidade e alcance sem precedentes, bem como corromperam modelos de negócios de mídia tradicional. As informações manipuladoras on-line se espalham significativamente mais rápido, mais longe, mais profundamente e de forma mais ampla do que a verdade. A ameaça da desinformação on-line continua aumentando: no ano passado, 81 países usaram as mídias sociais para espalhar propaganda e desinformação – um aumento de 15% em relação ao ano anterior. Conforme discutido anteriormente, os jovens, em particular, são vulneráveis à manipulação on-line, mas também os adultos e aqueles que tomam decisões hoje em dia são vulneráveis. É por isso que, na IREX, acreditamos que é importante ajudar jovens e adultos a ganhar consciência, conhecimento e habilidades necessárias para navegar e participar do ecossistema informacional atual de maneira saudável, segura, responsável e orientada para a empatia – a moderna alfabetização midiática e informacional – habilidades centrais do século XXI.

 

IHU – Qual a sua perspectiva sobre a relevância da liberdade de imprensa para a democracia, e como a liberdade de expressão se relaciona com a educação midiática?

 

Katya Vogt – A imprensa livre é muito importante – precisamos ter acesso a informações de alta qualidade, objetivas e imparciais que estejam lá para nos informar sobre os fatos. Infelizmente, a imprensa livre está competindo com a mídia altamente manipuladora, barata de se fazer, rápida para espalhar desinformação, clickbait, notícias sensacionalistas e outros tipos de manipulação no espaço da informação. Nossa atenção e receita publicitária são atraídas para conteúdo rápido, envolvente e que provoca emoções fortes. É por isso que é importante desenvolver habilidades para discernir o que está em nosso ambiente informativo e cultivar a apreciação de informações de alta qualidade, para que essas vozes críticas, objetivas e imparciais sejam ouvidas.

 

 

IHU – Sua perspectiva de educação midiática é baseada na empatia. Você poderia explicar melhor esse conceito?

 

Katya Vogt – A empatia é um dos elementos essenciais da nossa abordagem na IREX. É uma das habilidades cognitivas, ao lado do controle emocional; reflexão cognitiva, que é a capacidade de “apertar um botão de pausa” na resposta imediata, intuitiva e muitas vezes errada; e pensamento crítico e analítico que nos ajudam a manter uma mente aberta e ágil. Ser capaz de refletir sobre o que estamos vendo, lendo, ouvindo e como estamos reagindo – curtindo, comentando – requer a capacidade de reconhecer várias coisas, como preconceitos, a infraestrutura de disparo de informação, bem como nossa vulnerabilidade inerente no ambiente digital, e como o que fazemos afeta os outros. É aí que entra a empatia; para conter comentários negativos e ofensivos, não encaminhar uma postagem cheia de discurso de ódio ou não atacar alguém de volta e encerrar uma discussão tóxica nas mídias sociais ou pessoalmente. Também pode ser uma capacidade de entender como os outros se sentirão, considerar as emoções e perspectivas dos outros e não contribuir para discussões manipuladoras ou compartilhamento de informações. A empatia é uma habilidade fundamental que queremos que nossos alunos tenham quando se envolvem com informações, porque traz um elemento de bondade, uma ação positiva, fazendo com que eles se sintam empoderados, desenvolvam uma autoimagem positiva e protejam seu espaço informacional.

 

IHU – De quem é a responsabilidade de ensinar educação midiática entre os jovens? Pais, professores, poder público, imprensa?

 

Katya Vogt – Existem muitas partes interessadas que podem e devem desempenhar um papel na proteção da integridade das informações e ajudar crianças e adolescentes a navegar no ambiente informacional atual. As empresas de tecnologia são responsáveis pela infraestrutura das mídias sociais, seus algoritmos e pela proteção de nossos dados contra abusos, para destacar apenas algumas prioridades. A mídia livre e independente é responsável por garantir o acesso e a qualidade da informação ressonante, amigável aos jovens, objetiva e baseada em fatos.

 

Os educadores, que já compartilham conhecimento, ajudam os jovens a desenvolver valores e pensamento crítico. Como já construíram sua confiança, estão em ótima posição para ensinar alfabetização midiática em escala. É difícil pensar em outro sistema em qualquer sociedade que seja capaz de ter um impacto tão grande quanto a educação. Esses sistemas precisam de desenvolvimento profissional, apoio à política educacional e recursos para fazê-lo bem. As autoridades públicas precisam considerar políticas que permitam que escolas e universidades ensinem essas habilidades a crianças e jovens, bem como alcancem aqueles que não estão nas escolas.

 

 

IHU – Como professores podem estimular o pensamento crítico sobre a mídia junto a crianças e jovens na educação básica?

 

Katya Vogt – Há muitas maneiras pelas quais os sistemas educacionais podem construir competências modernas de alfabetização midiática. Desde a integração dessas habilidades no ensino de várias disciplinas em todos os níveis de ensino, até a atualização da educação cívica, o fornecimento de opções eletivas e extracurriculares de alta qualidade, a capacitação dos bibliotecários escolares para fornecer essa capacitação. As escolas têm muitas opções.

 

Para ilustrar, descreverei brevemente nosso trabalho de L2D em Educação na Ucrânia, antes da guerra. Este programa, que é cofinanciado pelos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido, integra competências para se envolver com o espaço de informação atual no ensino de disciplinas do ensino médio. Envolveu quase 1,3 mil escolas, onde mais de 84 mil alunos do ensino médio aprendem história, literatura, idiomas e artes por meio de aulas enriquecidas com L2D. Na avaliação recente, esses alunos demonstraram melhora em seus conhecimentos sobre análise de mídia e informações, e capacidade de diferenciar fatos e opiniões. Eles agora mantêm maior controle sobre seu ambiente informacional e suas escolhas. Em abril, o programa entrevistou 350 professores e 99% deles relataram que o L2D os ajudou a navegar no ecossistema informativo durante a guerra; 93% dos professores discutiram o tema da alfabetização midiática e informacional pelo menos uma vez desde a invasão com alunos, parceiros e outros; e 90% dos professores ajudaram outras pessoas a analisar informações. A maioria deles estava ajudando sua família, amigos e colegas.

 

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