Professor analisa a origem dessa literatura popular nordestina, lembrando as raízes europeias, mas a vê completamente ressignificada desde uma realidade de gente brasileira posta à margem e que não se cala
A literatura de cordel é um dos ícones da cultura nordestina. Muitas vezes vista como uma escrita marginal, o gênero chegou a ser fadado à morte. “A partir do momento em que o rádio a pilha e a televisão adentraram os lares brasileiros, principalmente no Nordeste, as cadeiras começaram a rarear nas calçadas. A prática tradicional de contar histórias e ler folhetos à luz do lampião ou da lamparina foi se perdendo, assim como a venda dos folhetos, os quais eram lidos nos saraus aos fins de semana ou ainda nas leituras familiares ao redor da mesa, após o jantar”, conta o professor Francisco Cláudio Alves Marques, um dos pesquisadores da literatura de cordel.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele revela que essa morte não chegou. “Os poetas precisaram se reinventar para salvar o cordel e garantir a sobrevivência de suas famílias. A solução encontrada passou pela adoção de temas mais universais e de interesse da população brasileira em geral, principalmente os temas políticos, tratados quase sempre por um viés satírico e dessacralizador das verdades instituídas”, observa. E embora seja uma “reinvenção”, Marques também reconhece que esse espírito contestador e de crítica social sempre esteve no cordel brasileiro, o fazendo diferente de seus “avôs” italianos e franceses. “A despeito de os folhetos nordestinos emprestarem determinados arquétipos da tradição literária europeia, as regras de composição entre nós passaram por transformações significativas em contato com as diversas dicções do Nordeste brasileiro”, acrescenta.
Com isso, em certa medida, podemos ainda ver e ler a potência do cordel também como uma manifestação decolonial bem brasileira. “Quando o cordel, por meio de seus poetas, porta-vozes do povo, dá voz e visibilidade aos atores subalternizados e oprimidos da nossa história, secularmente silenciados, ele participa desse processo de decolonialidade”, reitera o professor. Como exemplo, basta pensar na poesia de Patativa do Assaré, que “se preocupou em desconstruir a sombria caricatura do sertanejo ‘nordestinizado’, esboçada pela mídia da época e por boa parte da literatura sobre o Nordeste; dissolver a ideia que consagrou os nordestinos como ‘marginais socioculturais’, sempre suplicando, com lágrimas no rosto, os favores dos donos do poder”.
Assim, o professor Marques vai da origem, a ressignificação do cordel até a contemporaneidade, onde artistas anônimos e famosos contam a sua realidade, regada de crítica social sem perder o bom- humor. “Mesmo enveredando por caminhos poéticos nem sempre coincidentes, Leandro e Patativa compartilham do mesmo sentimento de inconformismo frente às injustiças sociais e aos desmandos dos poderosos”, aponta, ao lembrar desses dois que toma como referência. Porém, não se esquece de “tantos outros que contam e recontam a história do Brasil e da humanidade da perspectiva das classes subalternas ou que foram silenciadas pela historiografia oficial”.
Francisco Cláudio Alves Marques (Foto: Arquivo pessoal)
Francisco Cláudio Alves Marques é bacharel e licenciado em Letras-Português/Italiano pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Letras (Língua e Literatura Italiana) e doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada), pela mesma instituição. Realizou pós-doutorado na Università degli Studi di Roma "La Sapienza". É coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura Popular e Tradição Oral: Vertentes (CNPq), que busca investigar as vertentes europeias e africanas da cultura popular brasileira. Atualmente é professor assistente doutor no Departamento da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Assis/SP.
IHU – A poesia de cordel pode ser um caminho para animar nossa resistência em tempos sombrios como o que temos vivido?
Francisco Cláudio Alves Marques – O estudo sistemático da literatura de cordel ganhou força na década de 1960, encabeçada pelos pesquisadores franceses Robert Mandrou e Geneviève Bollème. Mandrou classificou esse conjunto de produções populares como literatura de “evasão” e reacionária, afirmando que tais produções teriam alimentado por séculos uma visão de mundo banhada de fatalismo e determinismo, de maravilhoso e misterioso, impedindo que seus leitores tomassem consciência da própria condição social e política.
Bollème, por sua vez, enxergou no gênero a expressão espontânea de uma cultura popular original e autônoma, permeada de valores religiosos, conforme destacou o historiador italiano Carlo Ginzburg (1987). O que os referidos pesquisadores não levaram em consideração foi o fato de que a literatura de folhetos, nascida no século XVI, na Europa, prosperou sob o signo da irreverência, especialmente porque foi a grande responsável pela vulgarização de textos gregos e latinos, até então acessados apenas por uma elite letrada.
Respondendo à pergunta sobre se a poesia de cordel pode ser um caminho para animar nossa resistência em tempos sombrios como o que temos vivido e de que forma, se levarmos em consideração a forma como ela se ajustou ao contexto de recepção, principalmente no Nordeste brasileiro, diria que sim. A despeito de ter sido considerada uma literatura de evasão, na década de 1960, e de sua origem europeia, o fato é que, no início do século XX, ao lado de folhetos que revitalizavam arquétipos literários europeus, prosperaram também, e às centenas, folhetos que escarneciam das autoridades no poder, das deliberações governamentais que cerceavam direitos e excluíam as minorias; satirizavam os comportamentos copiados da tão prolatada civilidade europeia e que mal se ajustavam à realidade brasileira, a exemplo dos folhetos satíricos de Leandro Gomes de Barros.
Os tempos sombrios da República e as contradições do regime que substituiu a monarquia foram sarcasticamente criticados nas sextilhas de Leandro. Seus poemas suscitaram o riso no público reunido nas praças e estações ferroviárias, ajudando a destronar no plano da sátira os pontos falsos por trás do discurso dos idealizadores da República. A situação caótica dos primeiros decênios da República causava terror ao poeta, o que ele expressou no poema “Um pau com formigas” (1912):
Chamam este século das luzes
Eu chamo o século das brigas
A época das ambições
O planeta das intrigas
Muitos cachorros num osso
Um pau com muitas formigas.
Então depois da república
Tudo nos causa terror
Cacete não faz estudo
Mas tem carta de doutor
A cartucheira é a lei
O rifle governador.
Trata-se da mesma literatura de cordel que sobreviveu às inovações da modernidade, se expandiu e atualmente circula por todas as regiões do Brasil, com o mesmo potencial desmascarador das mentiras institucionalizadas.
IHU – Como nasce a literatura de cordel e por que houve essa perspectiva de uma literatura marginal?
Francisco Cláudio Alves Marques – Como dito anteriormente, a literatura de cordel nasce na Europa, com a invenção da imprensa, tendo se desenvolvido entre o final do século XV e início do XVI. Antes de se reinventar no nordeste brasileiro, no final do século XIX, a literatura de folhetos correu “as sete partidas do mundo”, ou os “quatro cantos do mundo”, como preferem os nordestinos.
Na Itália, sobretudo nas províncias do Sul, vendedores ambulantes, à maneira de mascates, saíam vendendo folhetos, os chamados “libretti muriccioli”, impressos às centenas nas prensas recém-instaladas. As narrativas, estampadas em papel ordinário e vendidas a baixo preço, compostas em prosa ou em verso, consistiam em vulgarizações de Ariosto, Tasso e até de clássicos da literatura grega e latina. Até o final do século XIX, os italianos das províncias tomavam conhecimento dos “acontecidos”, da vida de santos, dos “briganti” (bandidos) e dos romances de cavalaria, vulgarizados, por meio desses impressos não raro compostos em oitava rima.
Na França, por volta dos séculos XVI e XVII, prosperaram os livrinhos da Bibliothèque bleue, os quais integravam a chamada literatura de colportage, impressos à semelhança dos folhetos italianos. Na Espanha, segundo R. Chartier (2005), “é no século XVIII que os pliegos de cordel encontram sua forma clássica, a de pequenos livros de uma ou duas folhas, e uma difusão maciça, assegurada em parte pelos vendedores ambulantes cegos que cantam os seus textos em verso antes de os venderem”. No Nordeste brasileiro, transportados na bagagem dos colonizadores, os folhetos de cordel, em prosa ou em verso, inspiraram cantadores e poetas, que os adaptaram à realidade de seus leitores/ouvintes.
Na acepção do termo marginal, dos anos de 1970, os poetas de cordel se aproximam dos autores da época no sentido de que procuravam aproximar sua produção do leitor e da vida; já no sentido contemporâneo do termo, o cordel pode ser considerado literatura marginal no sentido de que seus autores, tanto pela condição social como de não ajustados ao cânone, lutam por reconhecimento literário por meio de uma produção mais acurada, tratando de temas mais universais e de interesse do público em geral, sem deixarem de fazer a crítica costumeira ao sistema e às contradições que lhe são inerentes, como fizeram os primeiros poetas de cordel do nordeste.
IHU – A literatura de cordel também pode ser observada como a transposição de uma poesia oral à escrita. Mas qual a gênese dessa poesia, sua essência, e como é transformada quando vira um livro de cordel?
Francisco Cláudio Alves Marques – Segundo o medievalista Paul Zumthor (1980), uma primeira relação do cordel com a oralidade se refere ao fato de o texto se oferecer à leitura em voz alta:
Escrito, o folheto se oferece à leitura. Mas seu texto está repleto de marcadores que convidam à recitação pública: interpelação dos ouvintes, apóstrofes, exclamações admirativas ou indignadas estão em todo a narrativa. Obrigação estilística? Talvez. De fato e pelo menos no estado atual do seu uso, o folheto tem por vocação a leitura em voz alta, mesmo que solitária. (...) Um único fato permanece indubitável: a existência de tradições orais entre os colonos portugueses que, nos séculos XVI e XVII, povoaram o litoral do Brasil, tanto quanto entre os negros que foram trazidos da África. Seria inverossímil que, entre essas tradições, não tivessem sido mantidas algumas formas poéticas oriundas do velho folclore europeu, quiçá africano, senão da prática letrada.
Além da tradição ibérica, a contribuição da oralidade africana para a formação do cordel é uma realidade referenciada por muitos estudiosos do gênero. O fato é que na região Nordeste as histórias resultantes da fusão das tradições europeias e africanas eram transmitidas por contadores e contadoras de histórias que saíam de fazenda em fazenda narrando os feitos e façanhas dos heróis do passado, emprestando ao repertório de histórias local modelos de conduta e bravura que, mais tarde, se juntariam ao brio dos paladinos de França e cangaceiros da literatura de cordel. Gilberto Freyre (2006) observa que, no Brasil, as histórias portuguesas sofreram consideráveis modificações na boca das “negras velhas” ou “amas de leite”, dando continuidade à antiga tradição de contar histórias na África:
Os africanos (...) possuem os seus contistas. “Alguns indivíduos fazem profissão de contar histórias e andam de lugar em lugar recitando contos.” Há o akpalô fazedor de alô ou conto; e há o arokin, que é o narrador das crônicas do passado. O akpalô é uma instituição africana que floresceu no Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias às outras pretas, amas dos meninos brancos.
Ainda segundo Freyre, através dessas negras e das amas de meninos as histórias africanas “principalmente de bichos – bichos confraternizando com as pessoas, falando como gente, casando-se, banqueteando-se – acrescentaram-se às portuguesas, de Trancoso, contadas aos netinhos pelos avós coloniais.” (FREYRE, 2006, p. 414). A atuação desses e dessas contadoras de histórias parece ter sido de significativa importância para a difusão de histórias que, um pouco mais tarde, ajudariam a compor o universo das variantes impressas em cordel.
Tradicionalmente, os poetas de cordel liam as notícias veiculadas pela imprensa periódica, ou ainda romances e contos e os adaptavam para o folheto, na forma de versos. Os autores de textos de cordel costumam denominar “romance” ou “obra feita” os folhetos com 24 ou mais páginas resultantes de recriações poéticas a partir de narrativas pertencentes à tradição escrita. Essa prática consiste na transformação da matriz impressa em folheto, um gênero particular de “romance” adaptado a um ambiente social específico e colocado ao alcance do leitor/ouvinte, como faziam os primeiros autores medievais quando traduziam em língua vulgar os textos latinos.
IHU – Compreendemos a poesia e literatura de cordel como uma manifestação autêntica da cultura e dos modos de vida do brasileiro nordestino. Porém, o senhor descobriu conexões dessa poesia e literatura com a Europa? Que conexões são essas e como vai se constituir como uma produção tão enraizada no Nordeste brasileiro?
Francisco Cláudio Alves Marques – Na verdade, quando decidi investigar as origens europeias da literatura de cordel nordestina, tinha em mente buscar uma possível filiação e identificar semelhanças entre procedimentos poéticos e regras de composição entre nossos folhetos e os europeus. Como já existem muitos estudos associando nossos cordéis às folhas volantes portuguesas, decidi buscar essas possíveis semelhanças em outra parte da Europa: na Itália.
No final da pesquisa, percebi que, a despeito de os folhetos nordestinos emprestarem determinados arquétipos da tradição literária europeia, as regras de composição entre nós passaram por transformações significativas em contato com as diversas dicções do Nordeste brasileiro. Aqui, a viola do trovador provençal teve que redefinir seus acordes, ajustar-se à forte oralidade africana presente na região. A viola do repentista precisou responder no ritmo do “de repente” à provocação do pandeiro do embolador de coco, geralmente um afrodescendente.
Apesar de suas origens europeias, no Nordeste o cordel ganhou características próprias. Manuel Diégues Júnior (1977) explica que o surgimento da literatura de cordel no Nordeste foi possível por condições sociais e culturais peculiares, tornando-se característica da própria fisionomia cultural da região. Para isso contribuíram fatores de formação social como “a organização da sociedade patriarcal, o surgimento de manifestações messiânicas, o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando desequilíbrios econômicos e sociais, as lutas de família” que, dentre outros fatores, permitiram “que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores como instrumentos do pensamento coletivo, das manifestações da memória popular”.
IHU – Nesse mesmo sentido da questão anterior, podemos ler as apropriações que fazem o cordel brasileiro nordestino tão particular como um processo de decolonialidade?
Francisco Cláudio Alves Marques – Em certa medida, acredito que sim, se levarmos em consideração o fato de que tais narrativas em verso, quando adaptaram os textos europeus para a sextilha e para a realidade de seus leitores/ouvintes, haja vista que a decolonialidade é concebida como caminho para resistir e desconstruir padrões, conceitos e perspectivas impostos aos povos subalternizados, especialmente no contexto do capitalismo.
Quando o cordel, por meio de seus poetas, porta-vozes do povo, dá voz e visibilidade aos atores subalternizados e oprimidos da nossa história, secularmente silenciados, ele participa desse processo de decolonialidade, sem dúvida.
IHU – Apesar de grande expressão e circulação no século XX, estudiosos e autores chegaram a falar na morte da literatura de cordel nos anos de 1980. Mas hoje, ao que parece, ela vive um reflorescimento. Como o senhor analisa esses movimentos?
Francisco Cláudio Alves Marques – A partir do momento em que o rádio a pilha e a televisão adentraram os lares brasileiros, principalmente no Nordeste, as cadeiras começaram a rarear nas calçadas. A prática tradicional de contar histórias e ler folhetos à luz do lampião ou da lamparina foi se perdendo, assim como a venda dos folhetos, os quais eram lidos nos saraus aos fins de semana ou ainda nas leituras familiares ao redor da mesa, após o jantar.
A partir da década de 1980, os poetas precisaram se reinventar para salvar o cordel e garantir a sobrevivência de suas famílias. A solução encontrada passou pela adoção de temas mais universais e de interesse da população brasileira em geral, principalmente os temas políticos, tratados quase sempre por um viés satírico e dessacralizador das verdades instituídas.
Outro movimento que pode ser apontado como um dos responsáveis pela difusão e sobrevivência da literatura de cordel foi a criação, no Rio de Janeiro, do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, também conhecido como Feira de São Cristóvão, pavilhão que promove a cultura e o comércio de produtos nordestinos e trouxe ao sudeste a cultura do cordel.
IHU – Quais são, para o senhor, os maiores nomes da literatura de cordel e o que sua poesia pode nos inspirar nos tempos que temos vivido?
Francisco Cláudio Alves Marques – Leandro Gomes de Barros (1865-1918) e Patativa do Assaré. Leandro atuou na Zona da Mata pernambucana nos primeiros decênios da República. Além de uma vasta produção de histórias adaptadas do antigo romanceiro, o poeta compôs dezenas de poemas satíricos denunciando os desmandos dos políticos e as mazelas sociais decorrentes da violência e da corrupção que marcaram a vida política e social do país no começo do século XX.
No poema “A Ave-Maria da Eleição”, por exemplo, Leandro critica a violência e as práticas eleitoreiras republicanas, como a do “voto de cabresto”, na forma de uma ave-maria paródica, utilizando o também “pé-quebrado”, medida tradicionalmente empregada nesse tipo de sátira:
No dia da eleição
O povo todo corria
Gritava a oposição
Ave Maria.
Via-se grupos de gente
Vendendo votos nas praças
E a urna dos governos,
Cheia de graça.
Uns a outros perguntavam:
O Sr. vota conosco?
Um chaleira respondia:
Este é convosco.
No sertão cearense ganhou visibilidade, a partir da década de 1930, a poesia cabocla de Patativa do Assaré, poeta que soube interpretar com sensibilidade e agudo senso de justiça aspectos da vida do camponês nordestino. Patativa se preocupou em descontruir a sombria caricatura do sertanejo “nordestinizado”, esboçada pela mídia da época e por boa parte da literatura sobre o Nordeste; dissolver a ideia que consagrou os nordestinos como “marginais socioculturais”, sempre suplicando, com lágrimas no rosto, os favores dos donos do poder.
No folheto “Nordestino sim, nordestinado não”, Patativa não só procura conscientizar o nordestino de que suas agruras não provêm de Deus como também convencê-lo de que o flagelo decorre da desigualdade econômica e social que assola o país:
Nunca diga nordestino
Que Deus lhe deu um destino
Causador do padecer,
Nunca diga que é o pecado
Que lhe deixa fracassado
Sem condições de viver.
Não guarde no pensamento
Que estamos no sofrimento
É pagando o que devemos,
A Providência Divina
Não nos deu a triste sina
De sofrer o que sofremos.
Deus o autor da criação
Nos dotou com a razão
Bem livres de preconceitos,
Mas os ingratos da terra
Com opressão e com guerra
Negam os nossos direitos.
Não é Deus quem nos castiga,
Nem é a seca que obriga
Sofrermos dura sentença,
Não somos nordestinados,
Nós somos injustiçados
Tratados com indiferença.
Leandro compôs e divulgou seus folhetos em uma região que, desde o período colonial, vinha experimentando um considerável progresso econômico e social; parte de seu público vivia nas periferias das capitais nordestinas, no entanto, uma parcela dessa população tinha migrado de suas terras em busca de melhores condições de vida na cidade e muitos, ao fazê-lo, não fizeram mais que padecer as mazelas comuns à maioria das periferias brasileiras. Boa parte dos folhetos satíricos de Leandro teciam críticas aos políticos e coronéis e denunciavam a caótica situação social dos nordestinos que viviam ou da pequena agricultura, “nos encostos de matas”, ou de pequenos expedientes, nos arrabaldes da Recife republicana. A poesia de Patativa nasceu e circulou em um contexto marcado por graves e longas secas periódicas que, ao lado da total ausência do Estado, impulsionaram o deslocamento em massa de centenas de famílias para o “sul” do país na busca pela sobrevivência.
Em ambos os poetas, a crítica social denuncia a imutabilidade do poder, concentrado nas mãos de poucos, algo que passa de geração a geração na região Nordeste. Além dessa crítica, reivindicam ainda igualdade para todos, que o grande e o pequeno tenham acesso, democraticamente, à terra, aos bens de consumo e aos espaços de sociabilidade, de modo que sejam vistos como seres humanos. Ambos exprimem certo pessimismo com relação às mudanças, pois acreditam que o sistema opressor continuará sem operar transformações significativas, de modo que os pobres continuarão sofrendo, sem orientação e ajuda, e cada vez mais explorados pelos detentores dos meios de produção. Mesmo enveredando por caminhos poéticos nem sempre coincidentes, Leandro e Patativa compartilham do mesmo sentimento de inconformismo frente às injustiças sociais e aos desmandos dos poderosos.
IHU – Manoel Camilo dos Santos tem em seu cordel “Viagem a São Saruê” um Brasil onde a vida é boa e fácil. Em que medida essa descrição revela uma crítica social? Como podem ser lidas as questões de fundo, as críticas dos alegres cordéis?
Francisco Cláudio Alves Marques – Em 1947 Luiz Gonzaga compôs a canção “Linforme extravagante”, uma variante paródica dos relatos cocanianos que corriam os sertões desde a ocupação francesa no Nordeste. As mesmas projeções sociais cantadas por Gonzaga já haviam sido publicadas por Manoel Camilo dos Santos no folheto “Viagem a São Saruê”.
Quando Camilo compôs o poema, o governo Dutra tinha sido instalado. Através do plano Salte, Dutra integra os campos social e econômico priorizando, sobretudo, saúde, alimentação, transportes e educação. O plano, porém, não opera grandes transformações na vida dos nordestinos. É significativo também que o tema de São Saruê tenha vindo à tona em um momento em que se temia o avanço da ideologia comunista no campo da política brasileira. Composto de 31 sextilhas e duas décimas e editado pela tipografia Estrela da Poesia, do próprio autor, o dito folheto fala de uma viagem imaginária ao igualmente imaginário país de São Saruê:
Doutor mestre pensamento
Me disse um dia: – Você
Camilo vá visitar
O país São Saruê
Pois é o lugar melhor
Que neste mundo se vê.
Eu que desde pequenino
Sempre ouvia falar
Nesse tal São Saruê
Destinei-me a viajar
Com ordem do pensamento
Fui conhecer o lugar.
De acordo com Hilário Franco Júnior, o país de São Saruê tem sua raiz utópica no imaginário país da Cocanha, cuja versão mais antiga seria o Le fabliau de Cocagne, datado de meados do século XIII. O introito da versão nordestina assemelha-se, em muitos aspectos, ao do tradicional relato cocaniano. Neste, o poeta é enviado ao país da Cocanha com a ajuda do “apóstolo de Roma”, certamente São Pedro.
Jacque Le Goff acredita que o tema da Cocanha tenha nascido no período de grande desenvolvimento da sociedade medieval, de meados do século XII a meados do XIII, quando os sucessos materiais, sociais, políticos e culturais aguçaram os apetites e fizeram lamentar que a sociedade cristã não tenha podido superar os limites, as impotências e as repressões que ainda a constrangiam. O imaginário país medieval pode ser concebido também como um sonho de protesto contra as sanções impostas pela Igreja à época.
Hilário Franco Júnior analisa, no relato cocaniano, quatro temas principais correlacionados com o mito de São Saruê. O primeiro deles é relativo à abundância como resposta à vontade de opor-se à realidade vivida e sofrida por dupla insatisfação alimentar – de um lado, decorrente de uma produção ainda limitada pela natureza e por um progresso econômico que não havia eliminado a fome; de outro, decorrente da abstinência e dos jejuns quaresmais impostos pela Igreja. No país da Cocanha, os muros são feitos de “barbos, salmões e sáveis”, os caibros de esturjões, os telhados de toicinho e as cercas de salsichas. Pelos caminhos e ruas, podem ser vistas mesas postas e fartas, nas quais se pode beber e comer à vontade, sem restrições. A versão nordestina difere da matriz apenas pelas atualizações geoculturais e lexicais. Em São Saruê, as pedras “são de queijo e rapadura / as cacimbas são de café / já coado e com quentura”:
Feijão lá nasce no mato
já maduro e cozinhado,
o arroz nasce nas várzeas
já prontinho e despopado,
peru nasce de escova
sem comer vive cevado.
Galinha põe todo dia
em vez de ovo é capão
o trigo em vez de semente
bota cachadas de pão,
manteiga lá, cai das nuvens
fazendo ruma no chão.
No país da Cocanha, “Três dias por semana chovem / Pudins quentes / Para cabeludos e calvos”. Na imaginária Cocanha, “Corre um riacho de vinho”, no qual as canecas aproximam-se por si sós. Metade do dito riacho é de vinho tinto; a outra metade de vinho branco. Aqueles que dele se aproximam podem “Pegar pelo meio ou pelas margens, / E beber em qualquer lugar / Sem oposição e sem medo, / Sem pagar sequer uma moeda”. No sertão nordestino, é o desejo imediato de saciar a carência alimentar que orienta a versão de Manuel Camilo dos Santos:
Lá eu vi rios de leite
barreiras de carne assada
lagoa de mel de abelhas
atoleiros de coalhada
açudes de vinho quinado
montes de carne assada.
No Nordeste do tempo de Camilo não há empregos formais para o sertanejo que migrou para a zona urbana e os poucos empregados no incipiente setor industrial são mal remunerados. Contudo,
O povo em São Saruê
tudo tem felicidade
passa bem, anda decente
não há contrariedade,
não precisa trabalhar
e tem dinheiro à vontade.
A fadiga e o cansaço, decorrentes das intermináveis horas gastas com o plantio da mandioca e do milho e com o corte da cana faz irromper o desejo da abolição do trabalho no tão sonhado São Saruê:
Maniva lá não se planta
nasce e em vez de mandioca
bota cachos de beijus
e palmas de tapioca,
milho, a espiga é pamonha
e o pendão é pipoca.
As canas em São Saruê
em vez de bagaço é caldo
umas são canas de mel
outras açúcar refinado
as folhas são cinturões
de pelica preparado.
A despeito do esvaziamento de sua função sociocultural, em virtude das transformações provocadas pela sociedade industrial, pelo menos na Europa ocidental de meados do século XX, a utopia da Cocanha parece ter estendido seus tentáculos às regiões de características marcadamente arcaizantes, ressurgindo, sobretudo, no Nordeste brasileiro com a denominação de São Saruê. No folheto de Camilo, o tema da abundância alimentar passa a ser o elemento central, pois o ideal utópico cocaniano ressurge com força nos primeiros decênios do regime republicano, marcados pela carestia, pela cobrança excessiva de impostos e, consequentemente, pela fome. Aliás, a crítica por trás do poema de São Saruê parece falar para o Brasil de hoje, tão envolto pelas mesmas contradições que caracterizaram as primeiras décadas do século XX.
IHU – Que Brasil se revela na literatura de cordel?
Francisco Cláudio Alves Marques – Se pensarmos nos cordéis mais recuados no tempo, temos um Brasil que se revela ainda fortemente apegado aos costumes, valores e crenças que se mantiveram quase que inalterados em virtude das grandes distâncias entre Sudeste e Nordeste, pelo menos até a década de 1940. Um Brasil devoto, religioso, apegado à moral católica, mas, algumas vezes, muito crítico às contradições políticas e sociais, o que pode ser verificado nas quadrinhas satíricas recolhidas por Francisco Pereira da Costa em seu Folk-lore Pernambucano, de 1909.
Nas produções atuais, em que mulheres como Jarid Arraes, Josenir Lacerda e Dalinha Catunda começam a protagonizar as narrativas poéticas, revela-se um Brasil na direção de uma tomada de consciência quanto à preservação dos direitos, das reparações, da igualdade e do respeito mútuo: um Brasil que, apesar dos avanços, ainda está atrasado para tomar o bonde do século XXI, em virtude dos muitos retrocessos.
IHU – Que cordel é escrito hoje no Brasil? E o que essa literatura tem dito sobre as crises econômica, social, ambiental e política que temos vivido?
Francisco Cláudio Alves Marques – Ainda temos poetas que procuram manter a prática das recriações a partir de matrizes impressas e consagradas pela tradição. Seja o Brasil de ontem ou o Brasil de hoje, o vasto universo do cordel retrata um país marcado por diversas crenças religiosas, das mais variadas convicções; o Brasil de Mané Garrincha e que chora a morte de seus ilustres, dando margem ao aparecimento de folhetos como A chegada de Ariano Suassuna no Céu (2014), de Mestre Bule-Bule e Klévisson Viana;
Chico Anysio: brilhou na terra, hoje brilha no céu (2012), de Isael de Carvalho; ou ainda folhetos de sátira política e social, como O país do mensalão (2013), de Almir Gusmão; Brizolão para Brizocão, Delfim deu fim no Brasil, Muita sarna na Sarneira do Sarney, Presidente João Teimoso, todos de Gonçalo Ferreira da Silva; de autoria feminina, tais como Babados no Cordel (2011), A morena que calou o malandro (s/d), Não deixe o homem bater nem em seu atrevimento (2011), Cobra criada (2010), de Dalinha Catunda; Nas asas do Pavão Misterioso (2013), A mulher e sua trilha (2013), de Maria do Rosário Pinto; históricos, como O Manifesto Comunista em cordel (2007), de Antônio Queiroz de França; Brasil da Nova República: farol do Terceiro Mundo (s/d), de Gonçalo Ferreira da Silva; A linha do tempo dos negros no Brasil (2009), de Ivamberto A. de Oliveira; A revolução redentora de 64 (2013), de José Franklin; A Guerra do Contestado (2011) e A Era do feudalismo (2011), de Medeiros Braga; folhetos educativos, preocupados com a questão ambiental e da saúde, como Brasil, um paraíso ameaçado (2005), de Moreira de Acopiara; O sal nosso de cada dia (2008), de Luiz Antônio; Cuidado, ele pode te ferroar. Dengue, o mosquito estrangeiro ataca no Brasil (2001), de Francisco Zênio; Proteja o meio ambiente (s/d), de Mestre Azulão,
e tantos outros que contam e recontam a história do Brasil e da humanidade da perspectiva das classes subalternas ou que foram silenciadas pela historiografia oficial.
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