Quem acompanha as manchetes de jornais é levado a crer: o Estado do Rio Grande do Sul vive uma crise financeira e fiscal como nunca antes foi vista. Em parte, essa é uma realidade, pois servidores recebem salários em atraso, faltam investimentos em infraestrutura e a educação e a segurança pública vivem um caos. Mas é uma realidade parcial, porque essa crise não é nova, ou seja, tal situação de crise financeira e fiscal já vem sendo vista e vivida há vários governos. “Há muito que se vem errando no tratamento da crise fiscal. O problema de fundo é que os gestores não parecem entender que a crise fiscal do RS é muito peculiar”, aponta o professor Carlos Águedo Paiva, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “No nosso triste Estado, do governador recém-eleito (tenha a idade que tiver) ao mais humilde participante de uma reunião do Corede e votante na Consulta Popular, viceja a convicção de que a solução é simples e que ele sabe qual é”, acrescenta.
Paiva defende que a crise do RS tem origem secular. “O Império instituiu a aposentadoria integral para os funcionários públicos, mas reservou a prebenda apenas para o alto escalão. Logo após a proclamação da República, o Exército impôs tratamento isonômico para todo o funcionalismo. Mas deixou os Estados Federados livres para adotar – ou não – a universalização da aposentadoria integral”, explica. O RS, já em 1891 adotou a benesse. “O resultado foi que o orçamento estadual começou a ser impactado pela aposentadoria já nos anos 20 do século passado”, completa.
E o problema não para, pois, segundo o professor, o desajuste seguiu. Categorias de servidores demonstraram seu grande potencial de mobilização e pressionaram os governos, que para “driblar as demandas de reajustes imediatos” foram “concedendo vantagens significativas no Plano de Carreiras. O que se buscava era jogar para a frente o impacto sobre o orçamento. E, de fato, foi o que ocorreu”. Depois, ainda ocorre, especialmente a partir do governo de Antônio Britto, o que Paiva chama de “farra dos subsídios”, quando foram concedidos incentivos fiscais a empresas de forma quase que irresponsável. Por fim, o quarto fundamento para crise apontado por Paiva é a “péssima negociação da dívida estadual efetuada pelo Governo Britto. Todas as negociações foram ruins. Mas a do RS foi a pior”, além da infindável luta por créditos da Lei Kandir.
Assim, não encarando a perspectiva histórica da crise, vende-se a ideia de que o problema é de hoje e requer respostas simples. “Que um cidadão do povo, não especialista no tema, diga que o problema do RS se resolve ‘fazendo o dever de casa e gastando o que arrecada’, vá lá. Mas um gestor público deveria entender que há Estados da Federação recém constituídos que não têm um único aposentado na folha de pagamentos, enquanto o RS tem mais da metade da folha comprometida com inativos e pensionistas”, critica Paiva.
Para o professor, “não se chegou a esta situação por descontrole, por gastos excessivos. Esta situação não pode ser enfrentada com cortes de dispêndio ou aumento de impostos”. Por isso defende que se apreenda a complexidade do problema para gestar saídas possíveis que não funcionem como a metáfora de “enxugar gelo”. E é nesse sentido que defende a manutenção de organismos estatais que sejam capazes de construir análises complexas e contextualizadas. Exatamente o contrário do que têm feito as últimas gestões, com a extinção de fundação de pesquisa que se dedicavam a esse fim. “Por onde começar?”, questiona. “Pelo resgate da reflexão, da pesquisa, dos instrumentos de planejamento. Mas não apenas no plano formal. É preciso pôr fim no amadorismo. Em especial, no amadorismo arrogante que vem reinando em nosso querido e sofrido Estado”, sentencia.
Carlos Paiva (Foto: Arquivo Pessoal)
Carlos Águedo Paiva é professor doutor e vice-coordenador do Mestrado em Desenvolvimento Regional da Faculdades Integradas de Taquara - Faccat. Bacharel em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, possui mestrado e doutorado em Economia pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Entre suas publicações, destacamos Evolução das desigualdades territoriais no Rio Grande do Sul (Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008), Como Identificar e Mobilizar o Potencial de Desenvolvimento Endógeno de uma Região? (Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 2004) e A Metamorfose Inconclusa: transição capitalista e construção do Estado burguês no Brasil (Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2012).
IHU On-Line – Como compreender a crise financeira do estado do Rio Grande do Sul? E quais os desafios para se compreender essa crise nos contextos nacional e global?
Carlos Águedo Paiva – A crise financeira gaúcha tem quatro fundamentos. O primeiro deles é secular e deita raízes na transição para a República. O Império instituiu a aposentadoria integral para os funcionários públicos, mas reservou a prebenda apenas para o alto escalão (destino da parentela menos abastada das famílias dos grandes proprietários). Logo após a proclamação da República, o Exército impôs tratamento isonômico para todo o funcionalismo, inclusive o baixo escalão das Forças Armadas. Mas deixou os Estados Federados livres para adotar – ou não – a universalização da aposentadoria integral.
O único Estado que adotou a regra foi o Rio Grande do Sul, já em 1891. E o fez para garantir o apoio do Governo Floriano na Revolução Federalista. O resultado foi que o orçamento estadual começou a ser impactado pela aposentadoria já nos anos 20 do século passado. Por oposição, a maior parte das demais Unidades da Federação só implantou a aposentadoria integral após a Constituição de 1946 e só começaram a pagar esta conta nos anos 70.
O segundo fundamento da crise fiscal encontra-se na extraordinária força e capacidade de mobilização do movimento sindical do funcionalismo público estadual na crise da ditadura, em especial do CPERS/Sindicato. Neste momento, as finanças estaduais já se encontravam relativamente comprometidas com o peso das aposentadorias. E a estratégia adotada pelos sucessivos governos foi a de driblar as demandas de reajustes imediatos concedendo vantagens significativas no Plano de Carreiras. O que se buscava era jogar para a frente o impacto sobre o orçamento. E, de fato, foi o que ocorreu. Mas o “para frente” estava logo ali na esquina. E, quando chegou, mostrou todo o seu peso.
O terceiro fundamento foi a “farra dos subsídios”, em especial a grande farra do Fundo Operação Empresa do Estado do Rio Grande do Sul - Fundopem, no Governo [Antonio] Britto. Não é à toa que o Governo [José Ivo] Sartori não deu publicidade ou entregou para o Tribunal de Contas do Estado os inúmeros acordos de isenção e benefícios, alegando sigilo fiscal. A farra foi muito grande. Esta caixa-preta não será aberta tão cedo. Até, pelo menos, que haja absoluta segurança de que todos os “equívocos” prescreveram.
O quarto e último fundamento é a péssima negociação da dívida estadual efetuada pelo Governo Britto. Todas as negociações foram ruins. Mas a do RS foi a pior, porque nos recusamos a privatizar o Banrisul. Esta cláusula era explícita: a percentagem do orçamento comprometido com a rolagem da dívida era maior para os Estados que mantivessem seu sistema financeiro. E o governo do RS optou por manter.
A crise fiscal-financeira nacional é muito distinta. Ela tem uma base essencialmente conjuntural. Vale dizer: ela se resolve com a retomada do crescimento. O que não é uma tarefa assim tão fácil. Mas não há comparação com a crise fiscal gaúcha. No nosso caso, as raízes são seculares.
IHU On-Line – No cenário nacional, fala-se da crescente desindustrialização. No contexto gaúcho, qual o peso da desindustrialização? E como ela se dá?
Carlos Águedo Paiva – O processo de desindustrialização brasileiro é muito peculiar e, de acordo com diversos analistas, é o mais acelerado do mundo (o professor Ha-Joon Chang, da Universidade de Cambridge, é um dos muitos autores a defender esta perspectiva ). Onde se encontra nossa peculiaridade? Na política anti-inflacionária adotada em 1994 com o Plano Real e seguida até os dias de hoje. Em função do crescimento acelerado da China e de sua grande carência de proteína animal e vegetal, o Brasil passou a ser um grande player mundial, com saldos comerciais expressivos.
A despeito de nosso déficit crônico nas Balanças de Renda e de Serviços, conquistamos um relativo equilíbrio na Balança de Transações Correntes, que permitiu nossa reinserção no mercado internacional de capitais. Assim, a política monetária voltou a ser eficaz para controlar a taxa de câmbio e, através dela, controlar a taxa de inflação.
O sistema funciona da seguinte forma: se a taxa de inflação se eleva além de um patamar tomado como mínimo aceitável (o centro da meta inflacionária) o Banco Central eleva a taxa de juros, colocando-a significativamente acima do padrão internacional. Como a remuneração do capital fica mais elevada no Brasil, atraímos capital volátil do exterior e entram mais dólares (e demais divisas) na economia do que o necessário para realizar as importações. Se o Banco Central oferece estes dólares excedentes no mercado, o preço do dólar cai em termos da moeda nacional, tornando os importados mais baratos. Um exemplo pode ajudar. Imaginemos que no início do processo seja preciso dar 4 reais para comprar um dólar, e o calçado chinês padrão custe 10 dólares. Neste caso, seu preço no mercado interno será de 40 reais para o importador (e de 60 a 80 reais para o consumidor final). Mas se o dólar fica mais barato – passando a custar apenas 2 reais – o mesmo calçado que custa 10 dólares pode ser adquirido por 20 reais (sendo vendido por 30 ou 40 reais para o consumidor final).
Dessa forma, quando os preços internos aumentam, o Banco Central - Bacen valoriza o real (e desvaloriza o dólar, torna-o mais barato) e estimula as importações. Os preços mais baixos dos produtos importados impõem a depressão dos preços dos produtos produzidos internamente. O processo é um pouco mais complexo que isto. Há uma diferença entre as taxas de câmbio nominal (a relação de troca observada) e a taxa de câmbio real (que envolve deflacionar o real e o dólar). Isto significa dizer que, passados muitos anos de inflação no Brasil (a despeito do Plano Real), 4 reais por dólar equivalem a 1 real por dólar de 1994. Vale dizer: a moeda nacional está muito sobrevalorizada e nossas exportações estão caras.
Por que isto leva à desindustrialização? Simples: os únicos produtos que recebem o impacto do câmbio são os chamados tradables (transportáveis). Não importa que a variação de câmbio deixe o tratamento dentário ou o corte de cabelo mais barato na China do que no Brasil. Ninguém vai à China tratar os dentes ou cortar o cabelo. Quais são os bens transportáveis? Produtos agropecuários, bens da indústria extrativa mineral e produtos da indústria de transformação.
Ora, o Brasil é o país mais produtivo do mundo no setor agropecuário. Somos o único país que pode ter três safras de “verão” no ano e o mais rico em pastagens. Somos ricos em diversos minérios – do ferro ao petróleo (após a descoberta do Pré-Sal). Não há taxa de câmbio que nos leve a importar estes bens. Onde é que a política cambial de combate à inflação vai incidir para se mostrar eficaz? Na Indústria de Transformação. A história da “lenta, gradual e segura” destruição da indústria calçadista do Vale dos Sinos é a história do “bem-sucedido controle inflacionário do Brasil pós-Real”.
O problema de fundo é que a inflação não nasce na indústria. Desde 1994 que o setor com maior taxa de inflação anual são os serviços. Dois fatores impactaram os serviços de forma extraordinária: 1) as privatizações, com suas políticas muito liberais de formação de preços determinaram uma extraordinária elevação dos custos de telefonia, energia elétrica, transporte ferroviário etc.; 2) a política de elevação sistemática do salário mínimo acima da inflação dos governos petistas.
O primeiro fator é autoevidente. O segundo se explica pelo fato de que o segmento mais empregador da economia são os serviços. E também são eles que recebem a maior pressão de demanda quando os salários aumentam, pois apresentam elasticidade de renda maior que a unidade. Com a elevação dos salários, os setores intensivos em trabalho sofrem uma pressão de custos. Como a demanda é elevada junto com os custos, estes últimos são repassados para os preços, emergindo uma inflação acima da meta.
Para controlar a inflação em Serviços, o Bacen eleva a taxa de juros e fortalece a concorrência externa... à indústria. De sorte que a Indústria passou a pagar o pato pelas pressões inflacionárias no setor de Serviços.
Dilma [Rousseff] foi a única presidente desde Itamar [Franco] até [Jair] Bolsonaro que parece ter atentado para o problema. E tentou enfrentá-lo por duas estratégias. No seu primeiro mandato, buscou deprimir o poder monopolista dos serviços privatizados nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso - FHC. Houve uma grande reação dos segmentos atingidos. Houve algum avanço até 2012. Mas, em 2013, ela teve que capitular. No segundo mandato ela adotou uma política de controle fiscal, que gerou grande desemprego e diminuiu a pressão altista dos salários. Esta política deprimia os custos salariais e a pressão de demanda dos serviços. Mas ela minou o apoio de sua base social e alimentou o impeachment. Até o reino mineral sabe que o impeachment não teve nada a ver com pedaladas (que sequer existiram de fato). Os setores que haviam sido afetados pelas políticas de enfrentamento dos monopólios, depressão da taxa de juros, desvalorização do Real e – por fim – de controle salarial se uniram para derrubá-la, impondo um “terceiro turno eleitoral”.
IHU On-Line – De que forma as recentes demissões em empresas no Rio Grande do Sul, como Duratex, Nestlé e Paquetá, podem ser entendidas nesse contexto de crise econômica e desindustrialização? E, nesses casos em específico, quais os caminhos possíveis para a reversão desse quadro?
Carlos Águedo Paiva – A desindustrialização está na base da crise dos últimos cinco anos e o fechamento destas plantas é reflexo e manifestação da crise. Neste sentido, a relação é direta.
Não obstante, há mais elementos por trás dos fechamentos citados. Há a crise da Argentina (determinada por fatores distintos dos nossos, mas que impacta a decisão de localização de empresas voltadas para o Mercosul). E há os enormes equívocos de concessão de subsídios dos governos passados. O caso da Nestlé é um exemplo perfeito. Foram dadas vantagens para uma empresa multinacional que entrou no mercado com custos muito menores do que qualquer laticínio gaúcho (pois estes, não foram beneficiados). A concorrência se mostrou tão pesada que vários laticínios locais quebraram, desarticulando parte de nossas linhas de produção leiteira.
Ao mesmo tempo, nem o Governo Yeda [Crusius], nem o Governo Sartori, adotaram qualquer política de apoio à consolidação e qualificação da produção leiteira gaúcha. A operação Leite Compensado (por mais correta e necessária que tenha sido) aprofundou a crise do setor. Com a crise econômica dos últimos cinco anos, a demanda por produtos alimentares mais sofisticados – como leite, queijo, iogurtes etc. – caiu. O resultado de tudo isto foi extremamente negativo para o RS, pois o setor leiteiro era o segmento do mercado nacional e mundial de proteína animal no qual o Rio Grande do Sul apresenta maiores vantagens competitivas, em relação a Santa Catarina e Paraná. E estamos ficando para trás.
IHU On-Line – Quais tem sido as contribuições da agroindústria no sustento da economia do Rio Grande do Sul? E como assegurar o desenvolvimento econômico, sem esquecer das questões ambientais, da agricultura e pecuária gaúcha?
Carlos Águedo Paiva – A agroindústria é o principal motor da economia gaúcha e a agropecuária é a base deste motor. Muitas vezes, subestima-se a importância da agricultura por que se toma a participação no PIB como índice de expressão econômica relativa. Isto é um grande equívoco. Tomemos, por exemplo, a Microrregião de Santa Cruz do Sul (regionalização do IBGE). O Valor Acrescentado Bruto - VAB agrícola é pouco mais de 10%, o VAB industrial é de 30% e o VAB de serviços é 60%.
Na aparência, a produção agropecuária é pouco importante. Mas ela está centrada no tabaco e a principal indústria da região são as fumageiras. Sem tabaco, não há indústria expressiva no território. E com os serviços se dá o mesmo. O emprego do comércio e serviços locais é totalmente dependente da demanda exercida pelos fumicultores, seja na aquisição de insumos, seja no plano do consumo. Assim como depende da demanda dos funcionários da indústria fumageira.
Tomei o exemplo acima propositalmente. Sabemos que o tabaco é nocivo à saúde do usuário e seu cultivo é intensivo em defensivos agrícolas altamente tóxicos, que agridem a saúde do agricultor e o meio ambiente. Mas, de outro lado, é preciso ter claro o significado econômico e social desta cultura para o território. Como o fumo é um produto intensivo em mão de obra, o módulo rural da região fumicultora é muito pequeno. A média é de 16 hectares, mas inúmeros agricultores contam com a metade (ou menos) desta área. Que outro produto – além do fumo – poderia sustentar uma unidade familiar numa área tão pequena? Existe demanda suficiente para garantir a eficácia desta reconversão produtiva?
Não há uma reflexão sistemática sobre estas questões. Aqueles que apontam para os riscos da agricultura que opera com agrotóxicos estão 100% certos em apontar o problema. Mas não parecem ter consciência da tragédia social que pode advir da proibição de uma cultura que alimenta dezenas de milhares de família. O que importa entender é que estas questões não são simples. São complexas. Há solução para os impasses. Mas elas têm que ser pensadas e projetadas no tempo, avaliados todos os custos e os benefícios das mesmas.
O problema é que as agências que tentavam refletir e desenvolver projetos para temas tão importantes foram extintas no governo passado. Todas as fundações de pesquisa o foram. E, no que diz respeito a este tema, Fundação de Economia e Estatística - FEE e Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária - Fepagro são insubstituíveis.
Uma outra dimensão da subestimação da agropecuária é a dificuldade em perceber que ela não é apenas a geradora da matéria-prima de todo um amplo conjunto de produtos. Ela é mercado para uma indústria extremamente complexa e sofisticada. A Nova Zelândia tem na indústria do leite um dos seus dois pilares econômicos (o outro é o turismo). Mas isto não faz da Nova Zelândia um país agropastoril e de serviços. A ordenha é totalmente automatizada. Em 90% das propriedades, o agropecuarista sequer toca nas teteiras da ordenhadeira: elas se acoplam à vaca sem qualquer intervenção humana.
Além disso, o leite é armazenado num tanque computadorizado que conta com um programa de análise química e física extremamente sofisticado. Igualmente bem, o caminhão de coleta faz a análise do leite antes de embarcá-lo através de um sistema similar, mas que faz análises ainda mais complexas. E todos estes equipamentos são produzidos na Nova Zelândia. As pesquisas genéticas – para o desenvolvimento do gado de leite e corte, assim como do plantel ovino – são extremamente sofisticadas. O gado neozelandês tem genética própria, consistente com suas condições climáticas e pastoris específicas. Estamos a milhares de quilômetros disto.
IHU On-Line – Quais as regiões do estado que mais têm sido atingidas pela crise, com reflexos diretos na perda de empregos e renda?
Carlos Águedo Paiva – A Metade Sul vive um drama secular. Parte deste drama diz respeito a sérias limitações edafoclimáticas [relativo ao clima e ao solo]. A cobertura vegetal do Pampa não é profunda, os solos são pouco espessos e se mostram inadequados para um manejo mais intensivo da pecuária. A defesa do bioma Pampa envolve a manutenção da dimensão extensiva e pouco produtiva da nossa pecuária. Mas isto não é tudo, evidentemente. O grande problema da Metade Sul é sua estrutura fundiária. Onde predomina a agricultura familiar, a renda do agricultor não é suficientemente elevada para ele consumir fora do território. A agricultura familiar estimula o comércio e o artesanato local. A renda se multiplica na comunidade. Esta é condição necessária – mas não suficiente – para o desenvolvimento sustentável das regiões de base agropecuária.
Para além de uma estrutura fundiária e uma distribuição de renda inclusiva e democrática, há uma outra questão: o produto no qual o território se especializa. Distintas culturas exigem distintos graus de beneficiamento no local. O frango não pode ser transportado vivo por muitos quilômetros. Ele se estressa e os animais passam a se agredir, perdem peso e qualidade. Portanto, onde a pecuária avícola é expressiva, emergem frigoríficos, que precisam de câmaras frias. Assim como um sistema de transporte sofisticado, com refrigeração.
A soja é o oposto. Seu beneficiamento torna seu transporte muito mais caro. Além disso, ele é um grão tão rico, tão cheio de potencialidades, que os compradores querem comprá-lo inteiro. Se um território decide beneficiar a soja para vender produtos extraídos dela, as chances de o mesmo perder clientes é quase que de 100%. A China quer nossa soja em grão. O transporte é simplificado e seus custos são menores. E a China explora a soja há milênios. Ainda não conseguimos extrair tudo o que ela retira da soja. E certamente, não com a mesma qualidade.
Qual a importância disto? É que os territórios que se especializam em bens agrícolas que os compradores demandam virtualmente in natura não alcançam desenvolver estruturas industriais complexas. E, com a mecanização do cultivo, o êxodo rural gera um excedente de mão de obra que não alcança ser absorvido no local. É isto que vem ocorrendo com a região noroeste do Estado. Há Conselhos Regionais de Desenvolvimento - Coredes que vêm sofrendo perdas populacionais há mais de uma década. O Corede Missões perdeu cerca de 20 mil domiciliados desde o início do século XXI. Entre 1991 e 2018, o Corede Celeiro perdeu quase 30 mil domiciliados. A população total decresceu 27%. O sistema produtivo regional e local não está conseguindo incluir os jovens.
IHU On-Line – Como o senhor analisa as ações que vêm sendo tomadas pelos últimos governos para a recuperação financeira do Estado? Qual a gênese dessas propostas?
Carlos Águedo Paiva – Há muito que se vem errando no tratamento da crise fiscal. O problema de fundo é que os gestores não parecem entender que a crise fiscal do RS é muito peculiar (veja resposta à primeira questão acima). Que um cidadão do povo, não especialista no tema, diga que o problema do RS se resolve “fazendo o dever de casa e gastando o que arrecada”, vá lá. Mas um gestor público deveria entender que há Estados da Federação recém constituídos que não têm um único aposentado na folha de pagamentos, enquanto o RS tem mais da metade da folha comprometida com inativos e pensionistas. Comparar o RS com o Amapá é motivo de riso. Ou choro. Se a comparação sair da boca de um gestor público.
Não se chegou a esta situação por descontrole, por gastos excessivos. Esta situação não pode ser enfrentada com cortes de dispêndio ou aumento de impostos. A alíquota de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS do RS é uma das mais altas do Brasil, os salários do funcionalismo estão muito defasados, estamos carentes de pessoal em áreas fundamentais, como segurança, por exemplo. A saúde vive uma situação periclitante. E o governo quer gastar ainda menos.
IHU On-Line – Qual a sua avaliação sobre o Plano de Recuperação Fiscal, que vem sendo negociado com a União desde o governo de José Ivo Sartori? Quais as questões a fundo desse plano? E, na sua opinião, o que essa proposta de acordo revela sobre a relação entre a União e os estados?
Carlos Águedo Paiva – A renegociação da dívida em curso – com o ingresso do RS no Regime de Recuperação Fiscal – envolve o abandono de nossa soberania sobre a política fiscal interna. A renegociação deveria ser radicalmente distinta. O governo do Estado deveria esclarecer a população sobre as origens do problema e conquistar a unidade dos gaúchos para não pagar a dívida. A renegociação do governo Britto foi um despautério. A dívida já foi paga. E, mesmo que se considerasse que há um resíduo, a dívida do governo federal com o RS em função da lei Kandir é muito maior do que o resíduo da dívida legítima (se é que há um resíduo) do Estado com a Federação.
É difícil entender como um Estado que sempre foi tão brioso, tão altaneiro, que contou com políticos capazes de se fazerem ouvir no cenário nacional chegou a este patamar. Nos “amenorzamos” a cada governo que passa. É muito triste para alguém que, como eu, sempre fui orgulhoso de nossa história.
IHU On-Line – Outro assunto que aparece como saída para recuperação financeira do Rio Grande do Sul é a venda de estatais. Qual os limites e potencialidades dessas ações?
Carlos Águedo Paiva – O RS já havia vendido a maior parte de suas estatais no Governo Britto. Sobraram três: um pedaço da CEEE (que recebeu todos os esqueletos, dívidas e problemas da antiga CEEE), o Banrisul e a Companhia Riograndense de Mineração - CRM. No Governo Olívio, foi criada a Sulgás. Todas as empresas são lucrativas. Os déficits da CEEE resultam do fato dela ter ficado com o ônus do pagamento da aposentadoria da antiga CEEE. Este ônus não vai ser vendido, é claro. Vai ficar para o Tesouro Estadual (que deveria ter assumido lá atrás, no governo Britto).
O lucro das quatro empresas tem sido fundamental para minimizar os problemas de caixa do governo. Vivemos uma crise profunda. Os ativos empresariais estão depreciados. Dificilmente o governo obterá bons preços pelas empresas. E, para piorar, a CEEE tem uma pendência judicial antiga com o governo federal. Ganhou em todas as instâncias e está prestes a receber uma soma extraordinária de recursos. Eu não me admiraria nada se a CEEE fosse vendida antes de receber a dívida federal, e de que a empresa compradora receba o valor estimado em mais de 1 bilhão de reais.
IHU On-Line – Muito se comenta da dívida do RS com a União, mas o RS é credor da União por meio dos recursos da Lei Kandir que nunca foram pagos ao Estado. Por que essa pauta não avança? O que se sabe de concreto sobre esses recursos?
Carlos Águedo Paiva – O Governo Federal também está enfrentando uma crise fiscal. Não tem a gravidade ou a estruturalidade da nossa crise, mas é séria. Ele não quer esta pauta no Congresso. E todos os governos fazem o mesmo jogo político do “Presidencialismo de Coalizão”. Através de cargos e benesses, conquistam a maioria do Congresso e garantem a lealdade dos Partidos da base aliada.
Só os Governos Estaduais poderiam escapar deste cerco. Mas isto não é fácil. É preciso clareza e estatura política, o que vem nos faltando. Além disso, é preciso entender o papel da ideologia política. Vivemos (novamente, como nos anos 90 do século passado) uma hegemonia do pensamento liberal. Lutar pela execução da dívida da Federação em função da Lei Kandir geraria um problema: se fôssemos vitoriosos, acabaria o problema da rolagem da nossa dívida. E não seria mais necessário privatizar o patrimônio público ou fechar fundações. A maioria do povo gaúcho já havia se manifestado contra as privatizações. Foi por isto que se alterou a Constituição do Estado, acabando com a exigência do plebiscito.
Se não houvesse “crise fiscal”, qual seria a reação da população à mudança constitucional? Será que a base aliada continuaria tão coesa? Será que o apoio dos grandes jornais e da mídia em geral continuaria tão forte?... Por vezes, uma crise é oportuna para que se façam algumas “maldades” que não seriam aceitas sem ela.
IHU On-Line – Como os últimos governos, e em especial o de Eduardo Leite, vêm tratando do tema do desenvolvimento regional? Em que medida o desenvolvimento regional pode ser uma saída para a crise financeira? E no que consistiria um eficiente projeto de desenvolvimento regional?
Carlos Águedo Paiva – Eu não sei como o Eduardo Leite vai tratar a questão regional quando ele, de fato, começar a governar. Até agora só vejo um tema: o tema fiscal, capitaneado pelas privatizações. Não vejo qualquer política regional em curso e duvido que haja algo em projeto. Pelo simples motivo de que esta pauta não está posta há muito tempo no RS, desde, pelo menos, o Governo Collares.
O Governo Olívio até que tentou fazer algo em torno desta questão. Mas os conflitos entre Orçamento Participativo e Coredes dificultaram a construção de uma estratégia negociada. E a aposta nos Arranjos Locais de Produção (automotivo, calçadista, moveleiro, conserveiro e máquinas e implementos agrícolas) não era eficaz no que diz respeito ao enfrentamento das desigualdades. Estes arranjos são locais e se desenvolveram em territórios que, ou são (a Serra, nucleada por Caxias do Sul e Bento Gonçalves) ou foram polos de alto dinamismo (o Vale dos Sinos, Pelotas, e o triângulo industrial do extremo Noroeste cujos vértices são Ijuí-Panambi, Santa Rosa e Horizontina).
Por que não temos política regional? Por inúmeras razões. Mas – por incrível que possa parecer – eu acredito que o relativo sucesso dos Coredes seja parte do problema. O projeto de Collares envolvia instituir uma regionalização com base em sólidos critérios geoeconômicos. As Associações de Município protestaram e venceram a briga. Ora, toda a vitória “das bases” carrega uma positividade. Mas na medida em que as Associações Políticas Municipais passaram a dar a referência para a regionalização dos Conselhos de Desenvolvimento, emergiram algumas formações bastante estranhas. Canoas foi para o Corede Vale dos Sinos, a despeito de não ter identidade cultural ou produtiva com os demais municípios. Santo Antônio da Patrulha – que deu origem a todos os municípios do Litoral e que divide com estes mananciais e recursos turísticos subexplorados (como as lagoas) – faz parte do Corede Metropolitano-Delta do Jacuí!
Cito estes exemplos porque persistem. Mas a lista seria quase infindável se tomássemos a regionalização inicial. Estes problemas foram “resolvidos” de uma forma algo problemática: pela divisão dos Coredes e emergência de novos a partir de secessões e reunião dos insatisfeitos. Como as mudanças tampouco estiveram baseadas em qualquer planejamento, a configuração final – a despeito de ser mais consistente – manteve uma série de problemas. A começar pela excessiva fragmentação.
Mas o problema maior, do meu ponto de vista, sequer é esse. O problema maior é que o mesmo “basismo” que levou à recusa de qualquer intervenção dos técnicos do Governo do Estado na divisão regional dos Coredes ganhou corações e mentes na nova estrutura de planejamento. Os Coredes reivindicaram para si o “Planejamento do seu Futuro”. Ora, o Planejamento de uma região dentro de um ente Federado deve ser pensada à luz do todo. Há solidariedade entre as partes e há prioridades que só podem ser adequadamente observadas a partir de uma perspectiva totalizante. E, acima de tudo, a partir do adequado conhecimento da realidade orçamentária.
Mais uma vez, os Coredes “venceram”. A demanda de autoridade e autonomia levou a que o Governo delegasse o debate da questão regional para os Coredes. Mas só o debate foi delegado. Os recursos não foram. Nem poderiam ser: o Estado vive – de fato – uma grave crise fiscal. Sobrevive, é verdade, a Consulta Popular. Mas os recursos arrecadados com ela são insuficientes para pôr em curso qualquer planejamento efetivo. E não me parece que seja possível exigir uma ampliação significativa destes recursos. Primeiro, porque não há sobras no Orçamento. Mas, em segundo lugar, porque é legítima a demanda dos governos eleitos a partir de programas e debates públicos de participarem ativamente da alocação dos poucos e escassos recursos orçamentários livres.
Para piorar o quadro, o Governo Sartori extinguiu aquela instituição que poderia dar cobertura aos Coredes, qualificando o seu planejamento e integrando-o com os programas mais gerais do Governo Estadual: a Fundação de Economia e Estatística. Estamos a pé.
IHU On-Line – Que outros caminhos possíveis o senhor vislumbra para a superação do estado de crise no Rio Grande do Sul?
Carlos Águedo Paiva – Eu trabalhei durante 15 anos na FEE. Coordenei durante a Gestão do Aod Cunha o Núcleo de Desenvolvimento Regional. O volume de pesquisas que esta casa produziu sobre o RS é extraordinário. Nós produzíamos periodicamente a Matriz de Insumo-Produto do RS. Este é o instrumento de Planejamento do Desenvolvimento sonhado por todo e qualquer economista no governo. Ela nos revela o impacto fiscal, de emprego, de massa salarial, de saldo comercial com os demais estados e com o exterior, de toda e qualquer política econômica de apoio a este ou aquele setor. Você sabe quantas vezes este instrumento foi utilizado? Nenhuma. Absolutamente nenhuma.
Cada Governador que assume o Palácio tem uma certeza: a de que ele sabe a resposta para os problemas, e não precisa perguntar para ninguém. Todos saem derrotados. Desde a redemocratização, nenhum governador se reelegeu no RS. E continuam sem perguntar aos técnicos o que poderia ser feito. Enquanto isto não mudar, não haverá solução para a crise econômica do RS. Há um traço cultural muito nosso que é assustador: a arrogância. Que vem sempre acompanhada pelo “complexo de vira-lata”. Foram poucos os governos que deixaram de contratar uma consultoria externa para Planejar o Desenvolvimento do Rio Grande do Sul, enquanto os técnicos da FEE – como eu –, dávamos consultoria para outros Estados, onde nosso trabalho sempre foi muito valorizado.
Há uma fábula da administração de empresas que está muito em voga. Ela narra a história de um sábio mestre que viajava com seu discípulo pelo mundo (ou pela China, se preferires) e via tudo mudando em cada volta que dava. Mas havia uma família muito pobre que morava num local inóspito e vivia exclusivamente do leite de uma velha vaca. Dali saía o leite para alimentar a família e fabricar o queijo que vendiam na vila. Um dia o mestre, ao sair da casa da família, mandou o discípulo empurrar a vaca no precipício que havia ao lado da casa. O discípulo ficou chocado, mas obedeceu. E passou anos se consumindo pelo ato. Resolveu visitar a família e descobriu que ela havia prosperado muito. Perguntou como e obteve a resposta: vivíamos às custas de uma velha vaca. Um dia, ela caiu no precipício. Fomos obrigados a pensar em alternativas. Descobrimos que o solo, apesar de pedregoso, era fértil. Retiramos as pedras e fizemos muros para proteger a plantação. As primeiras colheitas foram ótimas. Compramos equipamento e ampliamos a área plantada. Hoje somos os maiores produtores da região.
Linda lição. Ela nos conta que o óbvio pode estar errado. E que vale a pena confiar nos mestres. Mesmo quando suas propostas parecem estranhas. Mas ela não se aplica a nós, infelizmente. No nosso triste Estado, do governador recém-eleito (tenha a idade que tiver) ao mais humilde participante de uma reunião do Corede e votante na Consulta Popular, viceja a convicção de que a solução é simples e que ele sabe qual é. A FEE pedia para não dar vacas (subsídios) e apostar nos setores internos de grande potencial que poderiam nos transformar em uma Nova Zelândia (do leite às máquinas agrícolas). Tanto o mestre insistiu, que os discípulos resolveram o problema. Empurraram o mestre-FEE no precipício.
Por onde começar? Pelo resgate da reflexão, da pesquisa, dos instrumentos de planejamento. Mas não apenas no plano formal. É preciso pôr fim no amadorismo. Em especial, no amadorismo arrogante que vem reinando em nosso querido e sofrido Estado.