Antropoceno: a drástica virada na relação entre os seres humanos e a biosfera. Entrevista especial com José Eli da Veiga

Desmatamento na Amazônia | Foto: Emoni Jones-Slaughter - Wikimedia Commons

Por: Ricardo Machado | 25 Junho 2019

A era geológica em que estamos inseridos se chama, por enquanto, Holoceno. Sua definição remonta a, mais ou menos, 12 mil anos e se refere a certa estabilização climática que permitiu o início da agricultura e o desenvolvimento da espécie humana. Some-se a isso, a despeito de todas contradições que podem ser ensejadas e dos inúmeros desafios a serem vencidos, o fato de que vivemos um dos momentos mais prósperos da humanidade. “O preço de tão prodigioso salto continua desconhecido. Então, será muito importante apreender, desde o ensino médio, que a partir de meados do século passado houve drástica virada na maneira como o homo sapiens-demens se relaciona com a biosfera. Quais serão as implicações políticas, sociais e ambientais dessa radical mudança cognitiva é algo absolutamente impossível de ser previsto”, avalia o professor José Eli da Veiga em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Ocorre que desde meados de século passado a ação humana no planeta terra tem provocado desestabilizações no sistema do holoceno, por meio de um processo que se denominou “A Grande Aceleração”. “A proposição de que tal Época já deu lugar a outra, chamada de Antropoceno, parte da constatação de que as atividades humanas passaram a subverter a tal estabilidade ecossistêmica que caracterizou o Holoceno”, avalia. “Grosso modo, já estão até bem prognosticados os efeitos da ação humana na atmosfera em perspectiva com o futuro do Sistema Terra. Tais prognósticos constam dos relatórios do Painel Internacional sobre Mudança Climática - IPCC. E são eles que levaram quase todas as nações a apresentar metas voluntárias de redução de suas emissões de gases de efeito estufa”, explica o entrevistado.

 

José Eli da Veiga (Foto: Agência UnB)

José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo - IEE-USP. Por trinta anos (1983-2012) lecionou no Departamento de Economia da FEA-USP, tendo chegado ao nível de Titular em 1996. Tem dezenas de livros publicados, entre os quais O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra (2019), Para entender o desenvolvimento sustentável (2015) e A desgovernança mundial da sustentabilidade (2013), todos estes pela Editora 34: São Paulo.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais as implicações políticas, sociais e ambientais de pensar os seres humanos – homo sapiens – como agentes de uma nova era geológica?

José Eli da Veiga – Por mais que se fale de “meio ambiente”, desde 1972, ou de “desenvolvimento sustentável”, desde 1992 – e por mais que a adoção, em 2015, da Agenda 2030 (com seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) tenha sido uma iniciativa altamente louvável –, a verdade é que ainda não há consciência coletiva sobre o real corolário do progresso. Com o poderoso avanço do processo civilizador no último século, a humanidade está hoje melhor do que nunca. Esta é a época mais próspera da história. Pode parecer mentira, mas por toda parte as pessoas estão mais ricas e mais livres; têm mais educação; estão menos violentas; e desfrutam de menor desigualdade social. O problema é que “não existe almoço grátis”, como pontifica o velho e sábio provérbio. O preço de tão prodigioso salto continua desconhecido. Então, será muito importante apreender, desde o ensino médio, que a partir de meados do século passado houve drástica virada na maneira como o homo sapiens-demens se relaciona com a biosfera. Quais serão as implicações políticas, sociais e ambientais dessa radical mudança cognitiva é algo absolutamente impossível de ser previsto.

17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU

IHU On-Line – Em seu novo livro O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra (2019), o senhor reúne alguns conceitos-chaves sobre o debate em torno de nossa atual era geológica. Poderia descrever, de forma breve, os principais?

José Eli da Veiga – A rigor, os principais são apenas dois: “A Grande Aceleração”, conceito-chave da História Ambiental, e “Época” – também com maiúscula! –, conceito-chave da Escala do Tempo Geológico, definida por essa subdisciplina das Geociências que é a Estratigrafia. Alguns alegam a necessidade de muitas outras altas abstrações para que realmente se entenda o advento do Antropoceno, mas o que meu livro procura mostrar é que estão redondamente enganados.

Capa do Livro de José Eli (Foto: Divulgação)

IHU On-Line – Do que se trata “A Grande Aceleração” que se iniciou a partir de meados do século XX?

José Eli da Veiga – Os poucos historiadores ambientais que estudaram a questão global – em vez de se aterem a menores escalas ecossistêmicas, como fez a maioria de seus colegas – não demoraram a concluir que a depredação da natureza pelas atividades humanas teve um brutal salto qualitativo em meados do século passado. Isso está primorosamente explicado no livro The Great Acceleration, de J.R. McNeill e Peter Engelke, publicado em 2014 pela Harvard University Press.

IHU On-Line – Voltando um passo atrás no debate, mas para tentar elucidar um ponto sensível, como se caracterizam o Holoceno e o Antropoceno? No que se aproximam e no que se distanciam radicalmente?

José Eli da Veiga – O Holoceno – que oficialmente ainda é a atual Época da história geológica – teve como característica essencial um grau de estabilidade ecossistêmica – e principalmente climática – absolutamente inédito nos 3,8 bilhões de anos de existência da vida, para nem falar nos 4,5 bilhões de anos da Terra. Foi tal estabilidade que favoreceu, há muito pouco tempo – no máximo uns doze milênios – o surgimento da agricultura e o consequente processo civilizador. A proposição de que tal Época já deu lugar a outra, chamada de Antropoceno, parte da constatação de que as atividades humanas passaram a subverter a tal estabilidade ecossistêmica que caracterizou o Holoceno.

IHU On-Line – O senhor acredita que a comunidade científica internacional oficializará a era geológica do Antropoceno?

José Eli da Veiga – É quase certeza de que tal reconhecimento ocorrerá no 36° Congresso Geológico Internacional, na Índia (Nova Deli), em fevereiro de 2020. E um bom indicador dessa tendência já poderá ser observado em breve, entre 11 e 13 de julho, em Londres, durante o Congresso Mundial de Geologia e Ciência da Terra.

IHU On-Line – O reconhecimento científico de uma nova era geológica pode trazer consequências políticas positivas para a crise climática que vivemos?

José Eli da Veiga – Direta e imediatamente, não. Mas certamente contribuirá para avanços nas negociações em curso sobre o regime climático.

IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades de prognosticar os efeitos da ação humana na atmosfera terrestre em perspectiva com o futuro do “sistema terra”? Quais os efeitos políticos e econômicos dessa dificuldade?

José Eli da Veiga – Grosso modo, já estão até bem prognosticados os efeitos da ação humana na atmosfera em perspectiva com o futuro do Sistema Terra. Tais prognósticos constam dos relatórios do Painel Internacional sobre Mudança Climática - IPCC. E são eles que levaram quase todas as nações a apresentar metas voluntárias de redução de suas emissões de gases de efeito estufa.

IHU On-Line – De que ordem são os desafios no sentido de construir um diagrama humano, físico e ambiental para traçarmos cenários futuros sobre a vida no planeta?

José Eli da Veiga – Talvez a pergunta seja sobre os desafios de se modelar todo esse complexo que vem sendo chamado de “Sistema Terra”, certo? Por enquanto, os esforços no enfrentamento desses desafios apenas engatinham. Mas isso não chega a impedir que alguns cenários possam ser construídos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

José Eli da Veiga – Sim, recomendar a leitura do artigo Deplorável inércia, na edição de janeiro/março de 2019 da revista Ciência e Cultura, da SBPC (vol. 71, n° 1). Pois destaca a importância das atuais modelagens realizadas por Jorgen Randers e pesquisadores do Stockholm Resilience Center - SRC. Particularmente didático é o relatório que elaboraram para a comemoração do cinquentenário do ‘Clube de Roma’, em 17 de outubro de 2018, com o título Transformation is feasible. Mas também várias outras publicações do gênero disponibilizadas nos websites José Eli da Veiga e Sustentáculos.

 

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