O governo de Jair Bolsonaro não tem nem 15 dias e já ouvimos que as demarcações de terras estão suspensas, que índio não precisa de tratamento diferenciado, que questões de gênero são ideologias, médicos cubanos foram quase banidos, sem contar expressões como “despetização” e “desideologização” que parecem ser entoadas como mantras para fortalecer projetos como o Escola Sem Partido. Por trás da poeira levantada nesses debates, ficam evidentes as intenções do novo governo de restringir a ação das chamadas políticas afirmativas. É bem verdade que esse movimento começa no governo de Michel Temer, mas, agora, parecem ser mais urgentes porque se entende que são pautas de apenas uma fatia da população, ainda associada à esquerda. Mas desde quando defender direitos de povos originários, por exemplo, é uma pauta de esquerda? Políticas afirmativas não deveriam ser pautas humanísticas, sublimando as polarizações? Para a jornalista e semióloga Maria Luiza Franco Busse, o problema é que a direita não compreende essas demandas.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Maria Luzia explica que as políticas afirmativas dizem respeito ao espaço público e que a direita vê o mundo sob a lógica dos espaços privados. “As políticas afirmativas trazem para o espaço público, tomado pela direita como seu privado, o que a ideologia de direita construiu como o dessemelhante”, destaca. “A direita como instituição moderna, seja centro-direita ou extrema direita, tem sua origem vocacionada para a exploração, variando somente a intensidade. De acordo com a ideologia da irmandade, a chegada dessas massas com seus valores, estéticas e demandas particulares e com a expansão dos seus desejos gerais é compreendida como perigo iminente que bota em risco a hegemonia burguesa”, completa.
A jornalista e semióloga pontua que nos governos ditos progressistas houve avanços significativos dessas pautas. De outro lado, o capital vê nessa promoção de igualdade um risco e reage, operando com a direita política como instrumento. A inclusão do outro, do diferente, se torna ameaça. “A partir dessa convicção, é construído o ódio contra aqueles corpos outros. Ódio é a marca da ideologia patriarcal”, dispara. E acrescenta: “o capitalismo tem horror de povo como construção política e o atual estágio do capitalismo financeiro não precisa de democracia, muito menos de democracia popular”.
O problema é que as direitas vão reagir justamente na contraposição daquilo que movia as esquerdas que, por outro lado, acabaram imobilizadas com a chegada aos governos. Assim, o jogo vira e a esquerda ainda é paralisada. Para Maria Luiza, a direita “sacou, então, que o caminho para ganhar o jogo estava na disputa e conquista das subjetividades. Malandramente acionou o arsenal teórico da esquerda, sempre muito ocupada em disputar entre si, e instrumentalizou a seu favor os aparelhos privados de hegemonia”.
Entretanto, adverte que o que vivemos é mais do que uma virada de jogo da direita sobre a esquerda. “A direita opera com mercadoria. A esquerda trabalha com o sentido de ser humano. A sensibilidade da direita para as transformações é mercantil. É vivandeira. Só tira proveito. A esquerda, por sua vez, se atrapalha no processo quando se distancia da prática, se refugia na teoria, se perde na burocracia e acredita que as flores vencem canhões”, explica. Estamos, segundo ela, provando reações de extrema direita, que não se enquadra nem à direita ou à esquerda porque essa via “é exterminadora, sem alternativas para o contraditório e os paradoxos. A extrema direita é o lado tenebroso, horrendo e obscuro da doxa. É a ponta da praia. A última fronteira da barbárie”. E adverte: “fascismo e nazismo são o estágio mais reacionário, violento e atrasado do liberalismo. É sentimento que nasce e dorme no berço do Estado liberal e desperta nas crises do capitalismo”.
Maria Luiza Franco Busse (Foto: Tribuna da Imprensa Sindical)
Maria Luiza Franco Busse é jornalista e semióloga, graduada em História pela Universidade Gama Filho, mestra e doutora em Semiologia pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Também realizou estágio pós-doutoral em Comunicação e Cultura pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Comunicação da UFRJ. Atualmente, escreve para o jornal Brasil Popular, de Brasília. Ainda atua na direção do Instituto Casa Grande, ligado ao Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, e também ministra aulas de formação no Coletivo de Comunicação Popular.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que políticas de inclusão que tocam temas como racismo, homofobia, misoginia, entre outros, são tomadas como pautas de esquerda?
Maria Luiza Franco Busse – Não há capitalismo sem racismo indiscriminado. Assim como sem homofobia, misoginia e tudo o que inferiorize e desqualifique o outro. O capitalismo é o regime da exploração, se alimenta da exploração, e por isso sempre precisará de alguém para explorar. Entendida a dinâmica do capital e sua relação com as classes que compõem a sociedade, passamos para compreender que na lógica de classe não se explora o igual, apenas se rivaliza e que vença o melhor na disputa com o que é seu espelho, sua imagem e semelhança.
Ao contrário do lugar comum disseminado de que a esquerda clássica é ou foi indiferente às questões identitárias, cabe lembrar a posição sobre racismo tirada no IV Congresso da Internacional Comunista. Realizado em Moscou, em 1922, o encontro considerou essencial apoiar todas as formas de movimento negro e dos povos asiáticos que combatiam o capitalismo e enfrentavam sua expansão imperialista. Comprometeu-se, também, em lutar pela igualdade de salários, sindicalização e direitos sociais e políticos.
Então, em que pese toda a cultura judaico-cristã que atravessa a esquerda no poder ou fora dele, e mesmo todos os vacilos cometidos por conta dessa tradição naturalizada nos costumes e não percebidas como preconceito, essas serão sempre pautas da esquerda, porque não é da direita que virá a iniciativa de promover o fim da exploração do homem pelo homem.
IHU On-Line – Como compreender a repulsa da chamada direita, que no nosso tempo se manifesta como uma extrema direita, a pautas que dizem respeito a políticas afirmativas de negros, gays, mulheres, indígenas, imigrantes etc.?
Maria Luiza Franco Busse – Se as manifestações simbólicas e físicas de repulsa não fossem tão aberrantes, diria que a explicação é muito simples: as políticas afirmativas trazem para o espaço público, tomado pela direita como seu privado, o que a ideologia de direita construiu como o dessemelhante. A direita como instituição moderna, seja centro-direita ou extrema direita, tem sua origem vocacionada para a exploração, variando somente a intensidade. De acordo com a ideologia da irmandade, a chegada dessas massas com seus valores, estéticas e demandas particulares e com a expansão dos seus desejos gerais é compreendida como perigo iminente que bota em risco a hegemonia burguesa por meio da destruição de suas tradições, família e propriedade.
A partir dessa convicção, é construído o ódio contra aqueles corpos outros. Ódio é a marca da ideologia patriarcal. Penso em Marielle. Não é difícil saber o que matou Marielle. Procura-se, para fins de satisfação formal e devidas providências, ‘Quem matou Marielle?’. Tão linda, tão potente, tão inteirada das faltas e das responsabilidades. Também me espia o horror que acaba de se abater sobre o país com os ultraliberais na economia e reacionários nos costumes que só se elegeram porque a democracia é uma presa política do Legislativo, do Judiciário, e dos meios de comunicação manipulados pela direita para propagar o irracionalismo e confinar o esclarecimento. O resultado, para ficarmos só no nosso assunto, é o triunfo do moralismo assexuado e da idolatria da alma como o verdadeiro e único lugar dos valores culturais, princípios que são o ingrediente e o eterno fermento do nazifascismo.
IHU On-Line – Quais foram os erros e os acertos dos governos progressistas, ou daqueles chamados “de esquerda”, na condução dessas pautas que dizem respeito às minorias?
Maria Luiza Franco Busse – Erros e acertos são efeitos de retrovisor. Importantes porque advertem contra a farsa da repetição. A exposição ao erro e ao acerto faz lembrar o sucesso na voz de Maysa Matarazzo,“se eu soubesse, naquele dia o que sei agora, eu não seria esse ser que chora, eu não teria perdido você”. Acho que as esquerdas erram quando não leem bem Guimarães Rosa: “o correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem". Erram quando não radicalizam, ou seja, quando negligenciam suas raízes. O presidente Hugo Chávez tinha muito orgulho de ser chamado de radical, sobretudo pelas mesmas forças antidemocráticas externas que seguem tentando derrubar o governo bolivariano hoje dirigido pelo presidente eleito Nicolás Maduro.
Você perguntou sobre os erros da esquerda na condução das pautas referentes às minorias. Foram os acertos. As ruas, as praças, as universidades, os aviões, as excursões, os hotéis, os restaurantes, se abriram para o que uma classe média alta paulistana chamou de “gente diferenciada”. O único e grande problema da esquerda foi se ausentar do trabalho de politização das pautas para que as diferenças individuais se consolidassem no projeto coletivo em que todas as cores, gêneros e subjetividades acessem e se assenhorem dos meios de produção material e imaterial.
IHU On-Line – Como a ascensão de campos políticos mais à esquerda anos atrás, chegando à eleição e reeleição de governos, como o Brasil, entre outros na América Latina, reconfigurou o cenário político sul-americano e, especialmente, do Brasil? E em que medida essa ascensão vai implicar no atual avanço da extrema direita de nossos tempos?
Maria Luiza Franco Busse – Sem dúvida a América Latina ficou mais rica, mais bonita, mais latina com seu norte passando a ser o sul. Nas fotos das reuniões de chefes de Estado não havia mais só terno-e-gravata e tailleur. Lá estavam Cristina Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa, Hugo Chávez, Fernando Lugo, José Mujica e Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente do Brasil. Todos se empenharam em reconfigurar o Estado para descolonizar seus países e decolonizar seu povo. Palavras como inclusão, distribuição, fartura, direitos, garantias, igualdade, oportunidade, solidariedade, cidadania e respeito passaram a fazer parte do léxico social, civil e político. Uma brisa leve de democracia popular refrescou o continente. Estado e povo deixaram de ser estranhos um para o outro, embora não tenham conseguido, de todo, substituir por pertencimento a desconfiança justificada pela histórica indiferença, violência e exploração que machuca os pobres desde sempre.
Vem de longe a luta do liberalismo para tornar o mundo um imenso capital. Na década de 1980, Inglaterra e Estados Unidos chegaram a achar que tinham conseguido com a proclamação ‘There is no alternative’, feita pela primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, e com o livro sobre o fim da História do nipo-estadunidense Francis Fukuyama, ideólogo e conselheiro do presidente Ronald Reagan. Não foi assim. Houve alternativa e a História segue seu curso. Eles só tinham a retórica e, apesar da firme colaboração dos meios de comunicação corporativos a espalhar falsas perspectivas, a realidade se impôs depois de duas décadas de massacre socioeconômico promovido na América Latina pelo chamado Consenso de Washington.
O manual desenvolvido pelo imperialismo norte-americano tinha por objetivo instaurar países dependentes e subalternos por exigência do cumprimento de políticas de Estado mínimo, superávit primário, desemprego, arrocho salarial, inflação, perda de direitos sociais, privatização e desnacionalização do patrimônio público. O resultado foi a fome do povo e a miséria dos serviços públicos que matou muita gente. Mas, como diz uma deliciosa canção de Carlos Puebla, acabou a diversão com a eleição de progressistas e da esquerda. O modelo neoliberal foi derrotado nas urnas e substituído pelo bem-estar social. Nessa, o Brasil protagonizou uma das mais felizes páginas de sua história. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva trouxe os desassistidos para a sala de jantar, permitiu que sentassem à mesa e compartilhou o banquete com todos. É bom frisar: COM TODOS.
O Brasil respirou democracia sem expurgo da oposição e pôde experimentar um pouco do conforto de ser menos desigual. Além disso, se mostrou para o mundo como um país soberano, ativo e altivo, e recebeu de volta o devido respeito que se dispensa aos que se dão ao respeito.
A beleza não tem inimigos, mas tempo. No plano interno, a PEC da empregada doméstica foi uma paulada numa das últimas representações vivas que povoa o imaginário da herança escravista cultivada pelo lúmpen burguesia. Um velho timoneiro de mares da esquerda ensinou que nem a mais sólida revolução deve descurar em relação à luta de classes. Ela sempre estará à espreita. No cenário externo, o Brasil passou dos limites para o imperialismo e o capital. Onde já se viu ser o artífice dos BRICS, garantir independência com a descoberta do pré-sal, e se empenhar em acabar com a desigualdade.
Na primeira crise do capital no século XXI, deu-se o golpe de 2016. O projeto agora ultraliberal não aceitou a derrota nas urnas. A mídia corporativa, a burguesia agroindustrial e seu lúmpen, a classe média, tocaram o terror no país e despertaram os instintos mais primitivos em uma sociedade de grande vulnerabilidade ideológica, sobretudo pela falta do trabalho de conscientização política que a esquerda não fez. Lula e o Partido dos Trabalhadores foram transformados no Judas da Quarta-feira de Cinzas e a irresponsabilidade abriu o país para a extrema direita que já vinha tomando corpo na Europa e Estados Unidos. Tudo muito adequado.
O capitalismo tem horror de povo como construção política e o atual estágio do capitalismo financeiro não precisa de democracia, muito menos de democracia popular. Estava fertilizado o terreno da extrema direita. Vale lembrar que fascismo e nazismo são o estágio mais reacionário, violento e atrasado do liberalismo. É sentimento que nasce e dorme no berço do Estado liberal e desperta nas crises do capitalismo. Quando as tentativas de êxito do mercado autorregulável esbarram nas suas irremediáveis contradições internas, acirrando-se ao paroxismo, o fascismo e o nazismo são convocados a se tomarem de organizadores da ordem em defesa da propriedade privada e do extermínio das esquerdas, dos trabalhadores como classe e de seus representantes formais e informais.
IHU On-Line – Em artigo recentemente publicado, a senhora analisa “quando a direita começou a exibir suas garras” e considera que isso se dá na divulgação do jornal O Indivíduo. Como isso se dá e como compreender o surgimento dessas perspectivas ainda no final da década de 1990?
Maria Luiza Franco Busse – Na década de 1990, estamos em plena aplicação das políticas neoliberais. No Brasil, o desavisado Fernando Collor seguido do entreguista FHC; na Argentina, Carlos Menem, que dizia ter “relações carnais” com os Estados Unidos; na Bolívia, Lozada e o extrema direita general Hugo Banzer; no Uruguai, Lacalle; sem falar na dramática situação do Chile que sob a ditadura de Pinochet foi o primeiro laboratório da economia neoliberal na América Latina e até hoje está sob a governança do capital apesar dos esforços socialistas de Lagos e Bachelet. Era o ambiente perfeito para ensaiar a disseminação da selvageria cultural que embala os princípios econômicos neoclássicos, ou neoliberais ou ultraliberais, como queiram chamar. A expressão cultural subjetiva e simbólica desse modelo econômico é o individualismo radical sem vínculo solidário coletivo. É a crença na meritocracia, que nada mais é do que a desigualdade consentida. É Hobbes sem Estado. É pernada, pontapé, rabo de arraia e dedo no olho. Cada um por si e Deus acima de todos.
Vou reproduzir um trecho de O Indivíduo, jornal escrito por jovens com idades entre 17 e 25 anos: “Justiça social? Um termo exótico. A justiça social implica que tenha havido uma premeditação de ter existido uma injustiça social, uma hipótese aparentemente conspiratória da História. As coisas são como são e infelizmente Deus é um grande criador de desigualdades, independente do que a Teologia da Libertação queira nos dizer”.
Em outro trecho, está o modo de cognição fascista do que chamam hoje de escola sem partido: “O mundo é dividido entre os que pensam e os que agem. A função dos professores universitários não é mudar a realidade e sim percebê-la. Se não, estará se formando uma massa de militantes”.
As distorções cognitivas seguem atacando as instituições fundantes do mundo moderno. No exemplo que vem a seguir, o alvo são os partidos políticos que, mal ou bem, ainda são o espaço de mediação de voz da sociedade na democracia representativa de massa: “Não podemos sobrepor a ideologia coletivista ao poder da consciência individual. Quem vai perceber as verdades não é a coletividade, nem o PT, nem o PFL, e sim cada indivíduo. É possível estar certo quando todos em volta estão dizendo que você está errado”.
Gênero também foi questão de pauta. Escreveram: “pois eu acho que, se não é uma doença (o homossexualismo), é no mínimo algo muito peculiar evolutivamente”. E o racismo foi o assunto principal da edição, assim tratado: “uma Semana de Consciência Negra depõe contra a própria raça negra como se esta fosse composta de pessoas que precisassem desesperadamente de autoafirmação. (…) A escravidão era comum entre as tribos africanas e todos sabemos que os negros das tribos mais fortes foram cúmplices dos europeus no comércio de escravos. Assim sendo, sugiro que os negros que desejam reparação façam árvores genealógicas para cobrá-la dos descendentes dos negros escravizados”.
O psicanalista ouvido na matéria que deu origem ao artigo definiu a publicação como “assustadora”, percebendo, na época, que “esta pode ser a ponta de um iceberg de uma coisa muito maior que deve ter ramificações na sociedade brasileira que sequer suspeitamos”. E segue nas considerações: “O que impressiona no editorial é a recusa da ideia de comunidade e a noção de democracia como uma rebelião das massas. O boletim é potencializador de violência. Este discurso reacionário pode oferecer uma camisa para os desavisados e desamparados. Ele visa à arregimentação marcada pelo discurso da violência, apesar de estar no plano verbal”. Ouvido novamente diante da realidade atual, o psicanalista voltou a afirmar que estávamos diante de um fato muito mais significativo do que se imaginava. O cientista político, outro entrevistado na época pelo Jornal do Brasil, e agora ouvido por mim, analisa o episódio como “uma reação paradigmática do conservadorismo, só uma década depois da Constituinte, ao ensaio geral para a democracia mais profunda que se expandia na luta contra a desigualdade e o racismo”.
No diagnóstico sobre o mal-estar que contagiou o Brasil desde o golpe de 2016 e que desaguou na eleição da extrema direita, o psicanalista considera que esse processo “impar no Cone Sul se deu pela maneira da nossa redemocratização que anistiou torturadores impedindo o acesso à memória crítica sobre o que foi a ditadura”. A novidade histórica, diz ele, é que os “derrotados” com o fim da ditadura saíram do armário. “Não têm mais pudor em dizer e se apresentar como de direita e de extrema direita. Perderam a vergonha. O hoje é o ponto de chegada desse processo que vinha se organizando desde a Constituinte. A sociedade organizada não se deu conta, fomos pegos de surpresa”, conclui o psicanalista.
IHU On-Line – Que direita é essa que começa a mostrar suas garras no final de 1990? Afinal, no que ela se dissocia das forças políticas que comandavam o país na época?
Maria Luiza Franco Busse – É a direita de sempre com seus muitos tons. Não é dissociada, é parte e complemento. Fernando Henrique governou de 1995 a 2003. Era o reinado da moeda, o povo estava nos guetos e as hierarquias sociais, civis e políticas seguiam em ordem, impávidas como dantes no quartel d’ Abrantes.
IHU On-Line – Como se dá a gestação dessa direita (ou extrema direita) desde o final da década de 1990 até a vitória de Jair Bolsonaro como presidente da República?
Maria Luiza Franco Busse – Engana-se quem pensa que o Capital não trabalha. Ele paga muito bem pela sua hegemonia e, se possível, tranquilidade. Assim financia com grandes recursos os centros e institutos de produção de opinião e conhecimento voltados para o seu interesse e preservação. São laboratórios de ideias que se apresentam como formadores isentos e imparciais. Nos anos 1980, de impulsão da globalização imperialista, passaram a ser identificados pelo nome de think tank, algo como reservatório de pensamento. Como o Capital é nervoso e não perde tempo com embates no varejo, percebeu que seu projeto de recolonizar e reescravizar o povo não ia emplacar pela via do debate e do voto, como costuma se proceder no modo democrático de ser.
Sacou, então, que o caminho para ganhar o jogo estava na disputa e conquista das subjetividades. Malandramente acionou o arsenal teórico da esquerda, sempre muito ocupada em disputar entre si, e instrumentalizou a seu favor os aparelhos privados de hegemonia. A imprensa corporativa passou a ser peça-chave nesse trabalho de dominação que teria a cultura como alvo, entendendo-se Cultura como a forma de organização de um povo a partir de sua produção simbólica e material. Bingo. Estava feita a tabelinha. Os ‘especialistas’, como nomeia a mídia, produziriam as falsas questões e a imprensa corporativa propagaria suas soluções igualmente falsas. O pulo do gato definitivo se concentraria em bater sistemática e massivamente, com ou sem sutileza, em toda e qualquer argumentação contrária.
Desse modo, a mídia dona dos meios de produção de notícia passou a fazer o serviço de negar o que é e explicar o que não é. O povo privado de repertório pelas condições precárias do cotidiano, sem aparelhos privados de conhecimento a seu favor, e despolitizado, sucumbiu. Diferente do lúmpen burguesia que se abasteceu dos conteúdos alienantes, firmou convicções e segue lépida se intoxicando da produção do depósito de veneno, como Balzac chamou a imprensa num gesto de adeus às ilusões. A exaltação ao eleito é resultado dessa emissão tóxica.
IHU On-Line – Hoje, uma das críticas que se faz às políticas de inclusão é a de que se intelectualizaram, passaram a habitar os departamentos nas universidades e perderam o contato com as ruas. Mas, em seu artigo, a senhora aponta que a oposição a essas perspectivas tem origem também dentro do campo acadêmico. Como compreender esse cenário?
Maria Luiza Franco Busse – A academia é uma instituição com direita e esquerda nos seus quadros docentes e discentes. Eu não sei se houve todo esse afastamento das ruas. As políticas de inclusão produziram multiplicadores. Marielle era um exemplo de multiplicadora da importância da formação e do acesso ao aparelho privado de hegemonia na área de educação formal. Graduou-se em Ciências Sociais, era socióloga, e fez mestrado em Administração Pública. Devolveu às suas bases populares o conhecimento que adquiriu, problematizou e contribui para ampliar, iniciando carreira como representante do povo do gueto no aparelho privado da política institucional. Conscientizou muita gente, sobretudo no que diz respeito a não se deixar desqualificar para assim cair na armadilha do discurso do adversário e acabar legislando contra si mesmo. Foi assassinada por causa disso. A propósito, Quem matou Marielle?
IHU On-Line – O ódio parece ser um sentimento central nessas disputas que extrapolam os campos políticos. Qual o significado desse ódio e como ele vai se incrustando nas pessoas, nas relações, na sociedade?
Maria Luiza Franco Busse – As disputas estão sempre no campo da economia política das relações sociais, civis e políticas. Em si, o ódio é sentimento tão humano e profundo quanto o amor. O problema é quando se torna uma pulsão destruidora do que é diferente. Em 1932, Einstein escreveu a Freud perguntando ao psicanalista se era possível controlar a evolução da mente do homem de modo a torná-la à prova de psicoses do ódio e da destruição. Resposta de Freud: “tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”.
Para Freud, civilização e democracia são sinônimos porque é no ambiente democrático que a lei que organiza e rege a vida social “não é a expressão da vontade de um pequeno grupo mas, sim, o reconhecimento do outro e de seus direitos, com aceitação ao mesmo tempo da igualdade e da diferença”. No plano coletivo a luta de classe estimulada pela ideia de escassez e de propriedade e no plano individual o estímulo ao narcisismo, acendem a fogueira do ódio.
IHU On-Line – A esquerda conseguiu compreender os novos paradoxos impressos pela Modernidade? E, por outro lado, podemos afirmar que a direita apreendeu melhor as transformações desses tempos? Por quê?
Maria Luiza Franco Busse – A direita opera com mercadoria. A esquerda trabalha com o sentido de ser humano. A sensibilidade da direita para as transformações é mercantil. É vivandeira. Só tira proveito. A esquerda, por sua vez, se atrapalha no processo quando se distancia da prática, se refugia na teoria, se perde na burocracia e acredita que as flores vencem canhões. Nenhum dos casos é o da extrema direita. Essa é exterminadora, sem alternativas para o contraditório e os paradoxos. A extrema direita é o lado tenebroso, horrendo e obscuro da doxa. É a ponta da praia. A última fronteira da barbárie.
Para uma compreensão realista do que estamos falando, recomendo a leitura do artigo “Espere calmamente” do historiador alemão Von Volker Ullrich , publicado em fevereiro de 2017 no jornal Die Zeit. Jornalistas, políticos, escritores e diplomatas que tiveram responsabilidade na nomeação de Adolf Hitler para chanceler argumentaram que ele seria mais razoável uma vez no cargo e que seu gabinete iria domá-lo. Um ditador? Fora de questão. O título do artigo, “Espere calmamente”, foi retirado da declaração feita em 30 de janeiro de 1933 pelo presidente da Associação Central dos Cidadãos Alemães da Fé Judaica que dizia: "Em geral, hoje, mais do que nunca, devemos seguir a diretiva: espere calmamente. Embora se observe o novo governo com profundas suspeitas, o presidente Hindenburg representa a influência calmante e por isso não há razão para duvidar de seu senso de justiça e lealdade à constituição. Deve-se estar convencido de que ninguém ousaria tocar nos nossos direitos constitucionais". Depois da posse Hitler só precisou de cinco meses para mostrar a que veio.
IHU On-Line – Como a senhora tem observado os primeiros movimentos do que deve ser o governo de Jair Bolsonaro?
Maria Luiza Franco Busse – Em linhas gerais, estou entre os que diagnosticam três núcleos de atuação. O núcleo dos costumes, encarregado de manter acesa e fortalecer a original mas não menos violenta ideologia fascista de viés neopentecostal que caracteriza o governo, abastecendo o imaginário dos eleitores com notícias sobre os perigos e a impossibilidade de convívio com as diferenças políticas, sociais, civis, culturais e ideológicas.
O segundo é o núcleo das F-o-r-ç-a-s A-r-m-a-d-a-s. Faço questão de separar os fonemas para que não paire dúvida de que são, efetivamente, forças com armas pesadas, letais, e tropas treinadas para matar. E por último o núcleo econômico que identifico com o laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui même do tempo dos regimes das monarquias absolutistas que antecederam a Revolução Francesa, marco inaugural da era que instituiu as repúblicas e as democracias modernas.
IHU On-Line – O que espera do Brasil de 2019?
Maria Luiza Franco Busse – Talvez por falta de experiência histórica ou muito pela naturalização sobre as barbaridades que a classe hegemônica comete há 518 anos, grande parte dos brasileiros tenha dificuldade cognitiva de perceber a aproximação do horror e cortar o mal pela raiz. De Portugal chegam notícias que me enchem de esperança. O ministro da Defesa, João Cravinho, reagiu imediatamente à entrevista de um líder da extrema direita, apologista do extermínio e do racismo, concedida a convite de uma estação de TV sobre o tema ‘Precisamos de um novo Salazar?’. Pelo Twitter, o responsável pela segurança dos cidadãos alertou: “Vivemos tempos complexos e é preciso ter a noção que uma atitude destas por parte da estação em causa não é muito diferente de quem ateia incêndios pelo prazer de ver as labaredas”.
IHU On-Line – De que forma podemos fazer a resistência e trazer à pauta a importância de políticas afirmativas e de inclusão, que visam o bem comum?
Maria Luiza Franco Busse – Sobrevivendo. Essa atitude será a nossa maior resistência.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Maria Luiza Franco Busse – Sim. Como já disse um atento observador, “Não é brincadeira, a coisa”.