Por: Patricia Fachin | 21 Setembro 2017
A discussão sobre a descarbonização da economia e a transição energética na América Latina exige responder à questão “qual está sendo e qual será o papel de nossos países nessa descarbonização mundial, especialmente quando: (a) contamos com recursos naturais e energéticos importantes para o mundo e para os países da região; (b) a região pode ser uma das mais afetadas pela mudança climática, e a responsabilidade histórica e atual de nossos países neste problema é mínima. Em outras palavras, não pode ficar fora a questão da justiça ambiental, energética, social e econômica no momento de pensar e propor soluções”, adverte o economista e especialista em Energia Carlos Germán.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador comenta as tensões existentes entre governos progressistas da América Latina, as comunidades indígenas e as questões ambientais relacionadas à produção de energia. Em meio a esse debate, ele afirma que “as comunidades indígenas estão em seu direito de escolher o modo de vida e a relação com a natureza que considerem corretas e apropriadas”, mas diante disso, questiona, “como é que faz um governo para resolver os agudos problemas sociais e econômicos que afetam os países da América Latina, abrindo mão da exploração dos seus recursos naturais?”
Segundo Germán, investir nos recursos naturais para resolver problemas de ordem econômica e social não é uma apologia ao desenvolvimento puro e simples. “Eu não estou fazendo uma apologia a ignorar o problema socioambiental local e mundial que grandes empreendimentos energéticos geralmente têm. Trata-se de compreender que não há soluções mágicas para redistribuir riqueza, impulsar o crescimento econômico e promover desenvolvimento humano na América Latina sem transformação dos recursos naturais que a região tem”, explica.
Uma alternativa, assinala, é “promover um crescimento econômico acelerado minimizando os impactos socioambientais e, simultaneamente, acompanhar esse crescimento com planos de desenvolvimento humano e transformações na estrutura econômica, visando sair da dependência de produtos primários, aumentar a produtividade do trabalho e redistribuir a riqueza social”.
Carlos Germán | Foto: Arquivo Pessoal
Carlos Germán Meza González é nicaraguense, graduado em Economia Aplicada pela Universidad Centroamericana - UCA da Nicarágua, mestre em Energia pelo Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo - IEE-USP. Atualmente é doutorando em Energia pelo IEE-USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Hoje uma das pautas recorrentes é a futura transição energética. Como essa discussão tem sido feita no mundo e que aspectos fundamentais não podem ficar de fora desse debate?
Carlos Germán - A transição energética pós-combustíveis fósseis está inserida na discussão, mais ampla, da ‘sustentabilidade’ e do desenvolvimento ‘sustentável’. A descarbonização da economia mundial contemporânea é um dos desafios mais importantes dentro da agenda da sustentabilidade, ganhando relevância com o reconhecimento e consenso majoritário da comunidade científica (e também da maioria dos líderes políticos mundiais) da existência do fenômeno do aquecimento global e das mudanças climáticas de origem antropogênica. Adicionalmente a esta preocupação ambiental se soma o fato de que os combustíveis fósseis são finitos e sua potencial exaustão ainda neste século levanta preocupações econômicas e políticas. Em essência, a transição energética teria como objetivo fundamental reduzir as emissões de gases de efeito estufa produzidas pela queima de combustíveis fósseis e eliminar a dependência da economia mundial dos hidrocarbonetos. A meta explícita seria controlar o incremento da temperatura do planeta nos próximos anos e, subjacente a essa meta, fazê-lo com os menores impactos possíveis na dinâmica da economia capitalista global.
Nesse sentido, há múltiplas abordagens discutindo a descarbonização. A primeira abordagem — e a mais comum — é substituir as tecnologias convencionais que queimam combustíveis fósseis e/ou dependem de combustíveis fósseis para produzir energia, por tecnologias que produzem eletricidade com fontes renováveis ou que usam energia renovável. Simultaneamente, esta substituição deverá ser acompanhada de um uso eficiente da energia. Nesta abordagem o fator tecnológico-financeiro, isto é, estudar a viabilidade, factibilidade e difusão massiva dessas tecnologias nas condições atuais e avaliando cenários futuros, é o central na análise. Porém, há acadêmicos que com argumentos robustos discutem as limitações das energias renováveis e da eficiência energética per se como caminho para atingir a transição energética. A discussão do Energy Return on Investment – EROI [1] das renováveis é importante porque nos mostra que os rendimentos energéticos dos fósseis, apesar de apresentarem uma tendência decrescente, são superiores aos das renováveis. Também, em uma economia mundial baseada em fósseis, produzir, transportar e armazenar energia renovável precisa de fósseis, às vezes em quantidades superiores às opções renováveis produzidas, sendo o caso dos biocombustíveis emblemático.
No caso da eficiência energética, especial atenção deve ser dada ao efeito Jevons ou ‘boomerang’. Isto é, medidas de eficiência energética têm um efeito rebote no consumo futuro de energia. Exemplo clássico é aumentar as distâncias percorridas em veículo devido ao uso de motores mais eficientes, que permitem gastar menos combustíveis.
Outras linhas de pesquisa importantes estudando arranjos tecnológicos são o armazenamento de energia para facilitar a inserção de fontes renováveis intermitentes na matriz elétrica, usinas com captura e armazenamento de carbono, biotecnologia, nanotecnologia, e até a fusão nuclear (o urânio não é um elemento químico renovável, mas as usinas nucleares não emitem gases de efeito estufa durante a produção de energia elétrica).
Uma segunda abordagem, de cunho econômico, é apresentada nos debates de correntes e escolas que coexistem dentro da teoria econômica contemporânea, sendo imprescindível mencionar o debate entre a economia ecológica e a economia neoclássica. Este debate discute o caráter substituível ou complementário dos recursos naturais em relação ao fator de produção capital no processo produtivo. O ponto para a economia neoclássica seria que a tecnologia vem sendo o caminho e será o caminho para substituir os fósseis e os recursos naturais por máquinas, softwares etc. Em contrapartida, a economia ecológica, fundamentada no princípio universal da segunda lei da termodinâmica [2], assinala o caráter termodinâmico da atividade econômica, e, portanto, o papel da tecnologia seria transformar recursos naturais: seriam fatores de produção complementários. Este é um debate que envolve também os pressupostos e ferramentas da economia ambiental (impostos ao carbono, créditos de carbono, pagamento por serviços ambientais, entre outras ferramentas de análise e de políticas públicas). Na verdade, o debate da transição energética e principalmente da sustentabilidade é uma discussão atual dentro da teoria econômica e da economia aplicada.
Uma terceira abordagem é dada pela compreensão do fenômeno da transição usando uma combinação entre o arcabouço da economia política e o da ecologia, assinalando os limites e possibilidades da transição energética dentro das coordenadas do capitalismo contemporâneo. As perguntas aqui são: qual é a relação entre transição energética, crescimento populacional, sustentabilidade e lógica da acumulação crescente de capital? É possível conciliar estes tópicos e como? Quais são as contradições, limites e possibilidades? A partir dessas perguntas, especialmente, para aqueles que são céticos de um binômio exitoso entre capitalismo e sustentabilidade, se discutem propostas de decrescimento, consumo verde racional, capitalismo verde ou ecossocialismo. Parece-me que as dificuldades desta abordagem são transformar a crítica em ações econômicas, políticas e tecnológicas concretas que permitam a emergência de sociedades pós-capitalistas, já que não há clareza de como funcionariam essas sociedades.
Uma quarta abordagem é a das tecnologias de geoengenharia climática. Algumas propostas propõem gerir a radiação solar que entra no planeta para estabilizar a temperatura global, remover dióxido de carbono da atmosfera terrestre, ou esfriar a atmosfera terrestre injetando grandes quantidades de aerossol contendo uma mistura de partículas, principalmente sulfato e carvão negro. A justificativa seria que as medidas atuais para atacar o problema não estão funcionando na magnitude e velocidade esperadas (o que é verdade) e a ‘vantagem’ desta abordagem seria deixar em segundo plano mudanças no processo social. O desafio fundamental destas propostas é garantir que a aplicação destas tecnologias de intervenção massiva na dinâmica natural do planeta não tenha impactos socioambientais com balanço negativo e desigual por regiões. Há um desconhecimento parcial, senão quase completo, dos riscos sob o planeta, e o princípio de precaução tem sido levado muito em conta.
Não é possível resumir todas as abordagens aqui. Porém, considero que estas são as mais conhecidas, sendo que o importante é mostrar o panorama geral, as divergências e fatores comuns. O que não pode ficar fora do debate, especialmente desde a perspectiva de América Latina, é qual está sendo e qual será o papel de nossos países nessa descarbonização mundial. Especialmente quando: (a) contamos com recursos naturais e energéticos importantes para o mundo e para os países da região; (b) a região pode ser uma das mais afetadas pela mudança climática, e a responsabilidade histórica e atual de nossos países neste problema é mínima. Em outras palavras, não pode ficar fora a questão da justiça ambiental, energética, social e econômica no momento de pensar e propor soluções.
IHU On-Line - Como o tema da transição energética tem sido abordado, especificamente, na América Latina? Considerando as particularidades da região, quais são seus desafios em relação à transição energética?
Carlos Germán - Agruparei em duas abordagens genéricas a questão da transição energética na América Latina considerando um elemento muito simples, mas decisivo na análise: a dos países com indústrias de hidrocarbonetos e a dos países importadores de hidrocarbonetos.
No primeiro caso o foco é a crítica ao chamado extrativismo. Ou seja, a expressiva dependência biofísica (matrizes energéticas baseadas em fósseis) e econômica (peso na renda nacional) dessas economias dos hidrocarbonetos e os minérios. A crítica inclui o fato de que, apesar da importância dos hidrocarbonetos para a economia mundial, essas economias apresentam baixas taxas de crescimento econômico per capita real, inflação, dívida externa elevada acompanhadas de instabilidade sociopolítica. Tipicamente, também se denunciam os impactos socioambientais negativos.
O segundo caso caracteriza os países da América Latina sem reservas e produção de hidrocarbonetos, que dependem da importação de hidrocarbonetos para o funcionamento de suas economias. Períodos de preços elevados dos hidrocarbonetos importados têm um impacto macro e microeconômico negativo, gerando inconformidade social e instabilidade política. A estratégia nestes países passaria por acelerar a transformação da matriz energética através de investimentos em energias renováveis, eficiência energética, mobilidade elétrica, entre outras medidas. Entre os desafios estão o financiamento, insuficiente capacidade técnica e tecnológica, insuficiente força de trabalho qualificada para planejamento e execução de transformações energéticas, falta de visão e vontade política e insuficiente grau de integração regional latino-americana.
Porém, antes de detalhar algumas estratégias para o segundo caso, vou voltar à primeira abordagem, à dos países com indústrias de hidrocarbonetos na América do Sul e no México, onde não há consenso de como transformar essas economias extrativistas e como realizar a transição pós-combustíveis fósseis. Embora haja um reconhecimento generalizado da necessidade de transitar para economias pós-combustíveis fósseis e diversificadas, o campo de tensões se dá no conteúdo, na velocidade e no alcance dessas propostas de transição.
Os abundantes recursos de hidrocarbonetos e minérios nesses países são fundamentais para a economia mundial e para as economias que possuem esses recursos. Ademais, as empresas nacionais desenvolvidas através de décadas nessa cadeia produtiva são exemplos de uso de tecnologia avançada e força de trabalho altamente qualificada. Assim, desde minha perspectiva, o desafio não é, como alguns pesquisadores assinalam, paralisar as atividades extrativistas e induzir o fechamento das empresas nacionais de petróleo e gás como a PDVSA [Petróleos de Venezuela], Petrobras etc., senão usar a exploração, a produção, o consumo e a exportação dos recursos naturais como um meio para superar o extrativismo. Em outras palavras, o verdadeiro desafio é usar o extrativismo contra o extrativismo.
IHU On-Line - Nos últimos anos houve uma série de tensões entre os governos progressistas de países da América Latina, como Equador, Bolívia e Brasil, e as comunidades indígenas. Esses governos investiram na extração de minérios e na construção de hidrelétricas, opondo-se à cosmovisão indígena de desenvolvimento. Como avalia essas tensões e quais diria que são os prós e contras de cada um dos lados? Como resolver esse impasse que parece estar presente na América Latina?
Carlos Germán - É preciso lembrar que estas tensões não são um fenômeno recente. Ao contrário, tem sua origem na inserção da América Latina na economia mundial como colônias fornecedoras de matérias-primas, alimentos etc., no final do século XV. Posteriormente, já no início do XX, o controle passa às mãos de empresas privadas internacionais (uma espécie de neocolonização), mas começa uma luta pela nacionalização dos recursos naturais e a apropriação da renda; luta que se recrudesce ciclicamente até hoje. Os povos indígenas, muitas vezes localizados em regiões estratégicas, têm sido os que levam a pior parte.
Pois bem, com os governos progressistas, a tensão continua existindo, mas adota um caráter diferente porque são os próprios governos progressistas que pretendem explorar esses recursos e/ou ter uma participação maior da renda que geram, visando garantir recursos financeiros para seus projetos socioeconômicos e políticos. Parece-me que a desilusão de parte de algumas comunidades indígenas e/ou dos partidários dos que levantam a bandeira da não exploração dos recursos naturais, de harmonia com a natureza, vem do fato de que a exploração comercial dos recursos naturais não parou durante o período dos governos progressistas e inclusive, dados os preços internacionais favoráveis, não me surpreenderia que o balanço líquido fosse uma intensificação dessas atividades.
As comunidades indígenas estão em seu direito de escolher o modo de vida e a relação com a natureza que considerem corretas e apropriadas, e é de esperar que um governo progressista com apelo popular respeite esse direito. Agora bem, como é que faz um governo para resolver os agudos problemas sociais e econômicos que afetam os países da América Latina, abrindo mão da exploração dos seus recursos naturais? Eu desconfio das possibilidades reais de uma proposta dessa natureza. Todo processo econômico enquanto sujeito à segunda lei da termodinâmica demanda transformação de recursos naturais, apropriação de energia e gera rejeitos e poluição que devem ser atendidos. Ademais, queira-se ou não, o papel da renda dos recursos naturais é fundamental para as economias latino-americanas, e renunciar a explorar os recursos naturais significaria não menos que catástrofe social e econômica no curto e médio prazo. Cabe perguntar: que país desenvolvido abriu mão de explorar e/ou importar recursos naturais e tentar garantir um suprimento de energia confiável e barata na sua história? Eu não conheço.
Não vamos nos desentender aqui. Eu não estou fazendo uma apologia a ignorar o problema socioambiental local e mundial que grandes empreendimentos energéticos geralmente têm. Trata-se de compreender que não há soluções mágicas para redistribuir riqueza, impulsar o crescimento econômico e promover desenvolvimento humano na América Latina sem transformação dos recursos naturais que a região tem. Não é fácil resolver esse impasse com as comunidades indígenas. Eu não tenho uma resposta pronta. De forma preliminar, apelar ao óbvio, estabelecer e fortalecer canais de diálogo entre comunidades indígenas, governo e empresas energéticas.
Adicionalmente, as escolhas de projetos energéticos devem incluir critérios de impacto socioambiental e correta valoração das opções energéticas alternativas. Isto envolve um planejamento energético integrado de recursos, incluindo a eficiência energética. Uma pesquisa desenvolvida no Instituto de Energia e Ambiente mostra que o aproveitamento da complementariedade hidroeólica no Brasil seria uma estratégia para reduzir significativamente a operação de usinas a gás natural e óleo combustível e limitar a expansão de usinas hidrelétricas como Belo Monte. Neste sentido, é necessário neutralizar os lobbies do setor, não só das grandes empreiteiras ou da indústria extrativista, mas inclusive das tecnologias renováveis, visando um planejamento energético apegado a princípios científicos, participativo e sensível aos impactos socioambientais. Em determinado caso, em que os critérios técnico-econômico e socioambiental apontam na construção de um empreendimento energético em uma área com comunidades indígenas, o mínimo é garantir uma melhoria nas condições econômicas e nas condições de vida dessa população. De novo, isto não resolve as tensões, mas pode diminuí-las.
IHU On-Line - Por que, na sua avaliação, a cosmovisão indígena, especialmente as ideias de Sumak Kawsay equatoriana e Suma Gamaña boliviana, tem limites quando se trata de discutir a transição energética? Por que elas, por si só, não são uma alternativa ao atual modelo energético?
Carlos Germán - As ideais e forma de vida Sumak Kawsay equatoriana e Suma Qamaña boliviana têm como fator comum a proclamação de uma relação harmoniosa com a natureza, aproveitando só o suficiente da natureza, resgatando os saberes e resistências coloniais indígenas. Envolve também a visão de uma sociedade e economia comunitária, solidária. Assim, não tenho dúvidas que são um contraponto valioso que questiona o consumismo, o individualismo e o desprezo vigente no mundo por projetos políticos que priorizam a coletividade. Portanto, mais do que como alternativas aos modelos energéticos, são importantes como insumos para pensar e caminhar em projetos políticos próprios da América Latina.
Porém, há limitações que devem ser problematizadas. A primeira, de caráter ideológico, é o perigo de idealizar as comunidades indígenas a um patamar de comunidades primitivas, orgânicas, sábias, que não precisam e não desejam os avanços da ciência e a tecnologia. Para levar a sério um projeto político que inclua o Sumak Kawsay e o Suma Qamaña, o caminho não é essa idealização, porque, longe de criar uma noção de união ajudando a reconhecer fatores comuns com o resto da sociedade latino-americana que já não vive nessa forma de organização social, cria uma separação. A pobreza, a desnutrição, infraestrutura insuficiente para as atividades produtivas (incluindo eletricidade, irrigação) também afetam, e às vezes de forma mais aguda, muitas dessas comunidades.
O segundo é entender que não é possível reverter países inteiros com economias capitalistas industrializadas como as do G-7, e inclusive como as da América Latina (com milhões de pessoas vivendo em urbes), para economias de subsistência, pegando só o que é preciso da natureza, sujeitos a ciclos naturais sazonais. Há razões energéticas para isso que estão explicadas no artigo, mas há também razões políticas e econômicas que limitam. Eu desconfio que qualquer proposta política progressista possa ganhar eleições e, mais difícil ainda, governar somente seguindo os princípios do Sumak Kawsay e do Suma Gamaña. Minha impressão é que é preciso partidos e governos que consigam, na medida do possível, construir pontes de união entre as diversas forças, classes e grupos sociais. Isto se pretendessem construir uma hegemonia para governar e levar adiante transformações de longo prazo dentro de um programa democrático.
IHU On-Line - Em artigo recente o senhor pontua que o maior desafio dos países da América Latina e da África do Sul, por exemplo, é, de um lado, superar a pobreza e a fome e, de outro, aumentar a produtividade do trabalho, fazer crescer a economia e redistribuir renda. Nesse sentido, como conciliar o desenvolvimento com o crescimento?
Carlos Germán - O crescimento econômico, a insaciável roda da valorização do valor, é uma conditio sine qua non das economias capitalistas. O desenvolvimento humano, por sua parte, entendido como o conjunto de estruturas socioeconômicas e institucionais que interagem para garantir a satisfação das necessidades humanas fundamentais como condição de possibilidade para a realização plena dos seres humanos, é um privilégio de minorias em países pobres. Sabemos que não basta que a economia cresça para atingir graus elevados de desenvolvimento humano, mas independentemente da definição de desenvolvimento (ou inclusive se prescindimos do termo desenvolvimento), o imperativo de crescimento econômico seguirá presente, e esse crescimento é necessário para gerar emprego.
Sendo assim, a conciliação passa por promover ambos. Promover um crescimento econômico acelerado minimizando os impactos socioambientais e, simultaneamente, acompanhar esse crescimento com planos de desenvolvimento humano e transformações na estrutura econômica, visando sair da dependência de produtos primários, aumentar a produtividade do trabalho e redistribuir a riqueza social. Mesmo se assumimos uma hipótese socialista para o cenário político latino-americano futuro, será necessário um desenvolvimento das forças produtivas para atacar os problemas sociais. Portanto, uma intervenção tecnicamente competente e com consciência social do Estado, na economia e na sociedade é chave.
IHU On-Line - O senhor aposta que uma das vias para superar os problemas de países subdesenvolvidos como os da América Latina é o investimento em hidrocarbonetos. Por que essa lhe parece uma boa saída?
Carlos Germán - As principais previsões da demanda mundial de energia indicam um crescimento da demanda de 40% para 2040. Apesar dos avanços das fontes renováveis nos últimos anos, não há indícios que para essa data os combustíveis fósseis terão perdido sua dominância na matriz energética mundial. Sendo assim, o acesso, a exploração, a industrialização, o controle e a garantia de fornecimento dos hidrocarbonetos continuará sendo um ramo decisivo para as economias da América Latina e para a economia mundial. Porém, é claro que só o investimento em hidrocarbonetos não garante saída nenhuma. O petróleo, combustível que comanda a dinâmica energética mundial, está sujeito a ciclos e volatilidade de preços devido a fatores econômicos, tecnológicos e geopolíticos que não é possível discutir aqui.
Portanto, para que o investimento em hidrocarbonetos possa ser uma saída, o desafio é conseguir impulsar planos de crescimento econômico, transformação das estruturas econômicas e desenvolvimento humano que consigam se alavancar em períodos de preços elevados e serem robustos e resilientes aos períodos de preços baixos. Isto é, garantir organização e controle interno do sistema econômico com flexibilidade ante choques externos. Propostas de excluir os hidrocarbonetos da matriz produtiva nacional no curto e médio prazo como alguns acadêmicos e políticos propõem seria contraproducente, apesar de que possa ser desejável ambientalmente. É claro que isto não significa que a região não deva continuar investindo em renováveis. Na prática, a capacidade instalada renovável na América Latina, excluindo grandes hidrelétricas, passou de 5 GW [gigawatts] no ano 2000 para 35 GW em 2015, segundo dados da Irena [Agência Internacional de Energia Renovável]. É um crescimento significativo, porém embrionário.
IHU On-Line - Uma das metas da transição energética é superar o uso de combustíveis fósseis até 2100. Essa meta lhe parece factível ou não? Por quê?
Carlos Germán - A descarbonização da economia mundial para finais deste século é uma declaração feita pela chanceler alemã Angela Merkel em representação dos países do G-7, em meados de 2015. Há um consenso, entre alguns dos pesquisadores mais importantes na área de energia, de que mudanças de combustíveis na matriz energética mundial ao longo da história têm sido processos de longo prazo.
O uso da biomassa vegetal (lenha principalmente) para uso e controle do fogo, data de entre 0,9 e 1,8 milhões de anos e contribuiu decisivamente no surgimento, sobrevivência e expansão da nossa espécie Homo Sapiens. Os primeiros objetos de metal fundido apenas datam de aproximadamente 6.000 a.C. em culturas neolíticas do Oriente Médio, e exigiam não somente lenha, mas carvão vegetal, com um poder calorífico superior ao da lenha, possibilitando atingir temperaturas que permitam fundir metais como o cobre. A biomassa vegetal continuou sendo o principal combustível para a humanidade até 1860, quando o carvão mineral se posiciona em 50% da matriz energética mundial e se consolida a era dos combustíveis fósseis, que ainda é a nossa era.
O petróleo atingiu 5% da matriz energética mundial em 1915 e foi só em 1960 que conseguiu 40%. O gás natural também atingiu apenas 25% da matriz energética mundial até 1960. Atualmente, apesar dos significativos avanços nas energias renováveis, as energias renováveis ‘modernas’ (eólica, solar, geotérmica etc.; sem incluir hidroeletricidade) brigam por superar o limiar dos 5% da matriz energética mundial. Mais importante que isso, a participação de combustíveis que não emitem dióxido de carbono na matriz energética mundial (aqui é incluída a energia nuclear) se manteve segundo dados do Banco Mundial, em torno de 10%-12% da matriz energética mundial desde 1990 até 2013.
Assim, respondendo à pergunta, para superar os combustíveis fósseis com renováveis, há muito caminho a percorrer. A ‘revolução do shale’ em 2008, embora subestimada inicialmente pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo - Opep, hoje é considerada como uma profunda transformação na indústria do petróleo e do gás, expandindo a oferta mundial de hidrocarbonetos e recolocando os Estados Unidos como grande produtor. Isto deve ser um alerta de como avanços tecnológicos vêm desmontando catastrofismos de exaustão de petróleo e do gás no mundo no curto e médio prazo. É óbvio que os hidrocarbonetos são finitos, mas não estamos falando de décadas senão séculos para serem exauridos. Devemos lembrar que as reservas de carvão mineral hoje são suficientes para atender a demanda mundial de energia para os próximos 200 anos. Assim, tudo indica que, apesar de que possivelmente seja cada vez mais difícil e dispendioso produzir combustíveis fósseis, existirão reservas para 2100.
No entanto, da mesma forma que a era de pedra não terminou por falta de pedras e a era do carvão mineral não terminou por falta de carvão, a era da dominância dos fósseis provavelmente não terminará por falta de fósseis. Veja bem, se a tecnologia de captura e armazenamento de carbono se consolida técnica e economicamente, a poluição produzida na queima de combustíveis fósseis para gerar eletricidade deixaria de ser um problema. Nesse caso, se poderia pensar em eletrificar a frota veicular mundial e o problema das emissões de gases de efeito estufa estaria muito próximo de ser resolvido.
Por outro lado, a produção mundial de alimentos depende de combustíveis fósseis tanto para a produção de fertilizantes como para a energia para mecanizar e irrigar a agricultura, transportar e preservar alimentos a grandes distâncias por períodos de tempo consideráveis, entre outras atividades. Há um debate científico recente sobre a possibilidade de alimentar 7 bilhões de pessoas atualmente e 11 bilhões para 2100, descansando somente na agricultura orgânica e/ou ecológica. Em 2012 a agricultura orgânica apenas representava 0,2% da produção mundial, e a maioria está localizada em países desenvolvidos com nichos de mercado com disponibilidade para pagar por esses alimentos, os quais costumam ter um preço superior aos produzidos com a agricultura convencional. Atualmente, há interesse na América Latina também, sendo um caso estudado a produção de cana-de-açúcar orgânica no Paraguai. Porém, há controvérsias, porque alguns pesquisadores afirmam que a escolha estaria em parte influenciada pela fragilidade dos controles da cadeia de alimentos orgânicos na América Latina. Isto é, vender como orgânico algo que não é produzido organicamente, se aproveitando força de trabalho barata.
Deixando de lado essas controvérsias, é fato conhecido que as cadeias mundiais de alimentos são fortemente oligopolizadas, e não é claro para mim o grau de interesse desses oligopólios na substituição massiva da agricultura convencional, e tampouco vejo hoje sinais de desintegração desses oligopólios e formação de futuros mercados competitivos. E mesmo assumindo uma hipótese de mercados competitivos dos alimentos no futuro, isto não garante que essa competitividade seja um incentivo para substituir a agricultura convencional.
Por fim, devemos também estar cientes que esta pretendida descarbonização até 2100 conta desde seu início com avanços tecnológicos inéditos na história da humanidade, como a internet, smartphones e a inteligência artificial. Não é claro, mas me parece provável que mudanças societárias, incluindo transições energéticas, possam ser mais rápidas que as experimentadas anteriormente na história. Será preciso resolver as contradições e limites dentro do campo econômico, político e tecnológico, desconstruir a base biofísica de um capitalismo global que se consolidou baseado nos fósseis e garantir uma transição justa e que incorpore todos os seres humanos do planeta. Para mim o mais provável é que tenhamos uma matriz energética mundial mista para 2100, dominada por renováveis, mas não 100% renovável. É sempre importante lembrar que, ainda hoje, milhões de pessoas no mundo, especialmente na América Latina, Ásia e África, ainda usam lenha, combustível que nos acompanha desde a aparição da nossa espécie.
IHU On-Line - O que seria, na sua avaliação, uma proposta à esquerda adequada para discutir a transição energética na América Latina?
Carlos Germán - Em primeiro lugar, reafirmar a soberania sobre todos os recursos naturais e energéticos (renováveis e não renováveis) da região, e a soberania sobre as decisões energéticas. Em segundo lugar, cumprir o dever histórico de usar a renda dos recursos naturais para
(a) atacar as fraquezas dos setores produtivos nacionais e executar ações visando desenvolvimento humano;
(b) destinar parte dessa renda para a satisfação das necessidades imediatas das populações empobrecidas (água potável, moradia, energia elétrica etc.);
(c) investimento em ciência e tecnologia de retorno em médio e longo prazo, especialmente em bolsas para estudos de pós-graduação que permitam construir uma massa crítica de profissionais formados nas melhores instituições educativas do mundo. Essa massa crítica deverá transferir conhecimentos para toda a cadeia educativa dos seus respectivos países, e também aplicar esses conhecimentos, principalmente, em instituições públicas nacionais e regionais. Em uma segunda etapa o investimento em ciência e tecnologia priorizaria o investimento no desenvolvimento de indústrias nacionais de produção de equipamentos tecnológicos;
(d) investimento em fontes renováveis de energia, inicialmente no mapeamento e avaliação técnica, econômica e socioambiental dos potenciais energéticos disponíveis e sua potencial inserção na matriz energética da região. Posteriormente, investimentos na execução dos projetos e finalmente na produção das tecnologias renováveis.
Naturalmente, estas ideias são preliminares, devem ser discutidas amplamente e todos os países têm sua conjuntura e especificidade própria. Eu me aventuraria a opinar que uma proposta à esquerda tampouco pode abandonar as ideias de reformas tributária e agrária, nem descuidar da organização político-partidária e da formação ideológica da militância. Uma proposta à esquerda tem o dever ideológico e programático de ser inimiga de qualquer tipo de corrupção e ineficiência na administração dos recursos naturais (Ver os escandalosos casos de corrupção na Petrobras e outras empresas energéticas no Brasil, p.ex.) e dos bens públicos em geral. Caso contrário, compromete seriamente os fins e fornece insumos para propostas de privatização.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Carlos Germán - A equipe de trabalho conduzida pelo Professor Sauer, do Instituto de Energia e Ambiente - IEE da USP, tem trabalhado em pesquisas exploratórias concretas para efetivar a transição desde a especificidade da América Latina. Em 2015 foi publicada a pesquisa “Bolivia and Paraguay: a beacon for sustainable electric mobility”, explorando as possibilidades de usar os recursos naturais e o potencial energético disponível nesses dois países visando mobilidade elétrica na América Latina. O estudo avalia as oportunidades para usar o minério de carbonato de lítio do Salar de Uyuni da Bolívia (maior reserva do mundo) para instalar uma fábrica de produção de baterias elétricas para veículos. Enquanto a produção de baterias poderia ser localizada na Bolívia, uma linha de montagem de veículos poderia ser baseada no Paraguai, em virtude das condições logísticas favoráveis, da enorme disponibilidade de energia hidrelétrica de Itaipu/Yacuretá/Salto Grande e da condição de importador de derivados de petróleo. Esta proposta exploratória e ambiciosa poderia converter a região no “farol” da mobilidade elétrica do mundo.
Cabe dizer que mobilidade elétrica é uma ideia que pode ser interessante para outros países como Venezuela, e para os da América Central e o Caribe. No casso da Venezuela, a penetração da mobilidade elétrica poderia reduzir o consumo interno de combustíveis altamente subsidiados pela PDVSA, reduzindo também emissões poluentes. Por sua parte, América Central e a maioria dos países caribenhos não têm reservas provadas de combustíveis fósseis e são importadores de petróleo e derivados. O potencial energético renovável ainda é pouco explorado na região. Criar uma matriz elétrica regional baseada em fontes renováveis poderia permitir viabilizar a substituição de combustíveis fósseis destinados ao transporte por mobilidade elétrica, reduzindo quase em sua totalidade a conta de combustíveis da região. O mesmo raciocínio é válido para a substituição de lenha e/ou GLP [Gás Liquefeito de Petróleo] por eletricidade para cocção.
Outras estratégias semelhantes devem ser estudadas com rigor científico para todos os países da América Latina e o Caribe. Parece-me que este é o caminho para descarbonizar a América Latina e o Caribe, e contribuir com a meta global, e é mais factível do que as propostas de renunciar a explorar os recursos naturais e a energia disponíveis.
Notas:
[1] Energy Return On Investment – EROI: O retorno energético do investimento (EROI) é um determinante do preço da energia, pois fontes de energia que podem ser aproveitadas de forma relativamente baratas, permitirão que o preço permaneça baixo. A proporção diminui quando a energia se torna mais escassa, ou seja, quando é mais difícil extrai-la ou produzi-la. (Nota da IHU On-Line)
[2] Segunda lei da termodinâmica: a segunda lei da termodinâmica afirma que as diferenças entre sistemas em contato tendem a igualar-se. As diferenças de pressão, densidade e, particularmente, as diferenças de temperatura tendem a equalizar-se. Isto significa que um sistema isolado chegará a alcançar uma temperatura uniforme. (Nota da IU On-Line)
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América Latina - qual está sendo e será o papel dos seus países na descarbonização mundial. Entrevista especial com Carlos Germán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU