Por: Patricia Fachin | 28 Março 2017
Os prognósticos das últimas pesquisas sobre a Amazônia indicam que, futuramente, o novo regime de clima da floresta poderá ser mais parecido com o do Cerrado, por conta de dois fatores: o aumento do desmatamento e os efeitos das mudanças climáticas, informa o físico Henrique Barbosa à IHU On-Line. “Com as mudanças climáticas, esperamos que a temperatura na Amazônia aumente e as chuvas diminuam. Isso também vai causar um aumento nos períodos de seca, e as secas ficarão mais secas”, diz na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Coautor de um estudo internacional que analisa as consequências da seca e do desmatamento na Amazônia, o pesquisador explica que, se o regime de clima da floresta for alterado, “haverá uma substituição da vegetação exuberante da Amazônia por uma vegetação mais rala, com gramíneas e árvores espaçadas, ou seja, a vegetação nessa região será mais parecida com a atual vegetação do Cerrado”. As mudanças na vegetação, por sua vez, impactarão diretamente o ciclo hidrológico da Amazônia, e como consequência haverá uma diminuição das chuvas nas regiões Sul e Sudeste do país.
“Chove muito na Amazônia e uma das razões disso é que a floresta emite muito vapor de água para a atmosfera. Mas quando se troca a vegetação nativa por outra - ao desmatar e trocar a vegetação nativa por soja ou pastagem, por exemplo -, diminui-se sobremaneira a quantidade de água que essa vegetação devolve para a floresta”, frisa. E adverte: “O que nosso estudo faz é alertar para o perigo de que essas mudanças que estamos impondo à Amazônia podem estar causando um processo de savanização do bioma, mesmo naquelas regiões que não foram perturbadas”.
Na avaliação de Henrique Barbosa, manter uma floresta “heterogênea” é fundamental para diminuir os efeitos da seca. “Se a vegetação for toda igual, a floresta como um todo responde de maneira igual às mudanças de chuva e de temperatura. Isso significa que, quando a temperatura for alterada de modo a causar efeitos na vegetação, toda a floresta sentirá esses efeitos, ou seja, a floresta inteira será perturbada de uma hora para a outra. (...) Isso demonstra que a própria biodiversidade da floresta, especialmente a vegetal, é importantíssima para manter a estabilidade dela”.
Henrique Barbosa | Foto: USP
Henrique Barbosa é doutor em Física pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Entre 2004 e 2008 atuou como pesquisador assistente no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe e atualmente leciona no Instituto de Física da Universidade de São Paulo - USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as evidências ou hipóteses que indicam que a Amazônia pode entrar num ciclo de desmatamento e seca nos próximos anos?
Henrique Barbosa – Existem evidências científicas de como a floresta interage com a atmosfera, ou seja, de como a atmosfera e a biosfera interagem, e quais são os mecanismos de retroalimentação que existem entre elas. Nesse panorama, uma das coisas que é clara para os cientistas é que a cobertura de vegetação que encontramos em uma localidade, por exemplo, na floresta tropical úmida da Amazônia ou na Caatinga, para citar dois exemplos, pode não ser estável. O que isso significa? Imagine um sistema com mais de um ponto de equilíbrio. Os dois sistemas de equilíbrio existentes são uma vegetação parecida com o Cerrado e outra, com a Amazônia. O estado em que esses sistemas de equilíbrio vão se encontrar dependerá das condições climáticas, ou seja, dos regimes de precipitação e da variação de temperatura.
Vou explicar isso dando o seguinte exemplo: é como se tivéssemos uma caixa de papelão numa sala. Quando empurramos essa caixa, ela é afastada, mas se mantém na mesma posição. No entanto, se a empurrarmos demais, ela vai tombar de lado e vai encontrar outra posição de equilíbrio. O equilíbrio da vegetação e dos biomas ocorre mais ou menos desse modo, porque os biomas têm mais de um ponto de equilíbrio, dependendo da distribuição da vegetação e, especialmente, da temperatura e da umidade típica de cada região. Então, se perturbarmos demais essas duas variáveis climatológicas – temperatura e umidade -, o tipo de vegetação de determinado bioma pode ser alterado.
As evidências que temos são de que a Amazônia teve dois status de equilíbrio: um com temperaturas mais altas e menos precipitação, no qual a vegetação era muito mais parecida com a do Cerrado, e outro com bastante chuva, com temperaturas mais amenas e sem grande variabilidade, que é o que se tem hoje na Amazônia.
Fiz essa explicação introdutória para dizer, então, o que é esse ciclo de desmatamento e seca, o qual foi apontado em nosso estudo. Uma das questões que abordamos no estudo foi tentar identificar e quantificar a importância dos mecanismos de retroalimentação entre a floresta e a atmosfera.
Quando o homem emite mais carbono para a atmosfera, aumenta o efeito estufa e entramos nesse processo de mudanças climáticas antrópicas, causadas pelo homem. E com as mudanças climáticas, esperamos que a temperatura na Amazônia aumente e as chuvas diminuam. Isso também vai causar um aumento nos períodos de seca, e as secas ficarão mais secas. Portanto, considerando essas possibilidades, é mais provável que o novo regime do clima seja parecido com o do Cerrado. Isso significa que nas regiões de fronteira entre a Amazônia e o Cerrado, à medida que as árvores forem morrendo e novas forem nascendo, haverá uma substituição da vegetação exuberante da Amazônia por uma vegetação mais rala, com gramíneas e árvores espaçadas; ou seja, a vegetação nessa região será mais parecida com a atual vegetação do Cerrado.
Esse não é um processo que acontece da noite para o dia, vai ocorrer no tempo de vida das plantas. Por conta das mudanças climáticas, há uma chance maior de que a vegetação típica do Cerrado domine o espaço da Amazônia, e, à medida que o desmatamento continuar aumentando na região, esse quadro será acelerado.
Chove muito na Amazônia, e uma das razões disso é que a floresta emite muito vapor de água para a atmosfera. Mas, quando se troca a vegetação nativa por outra - ao desmatar e trocar a vegetação nativa por soja ou pastagem, por exemplo -, diminui-se sobremaneira a quantidade de água que essa vegetação devolve para a floresta.
De onde vem essa água? Sempre do oceano e, no caso brasileiro, do oceano Atlântico, próximo à costa do Pará. Essa água evapora do oceano, é carregada pelos ventos, entra por cima do continente e chove. Como as árvores da Amazônia puxam muito a água que está no solo e fazem a respiração, elas acabam emitindo bastante vapor de água para a floresta. Então esse vapor de água que as árvores emitem se junta com o que sobrou de vapor de água na atmosfera depois da primeira chuva; todo esse vapor de água continua sendo carregado pelos ventos, e vai chover novamente mais para frente.
É justamente por causa da quantidade de água que a Amazônia emite para a atmosfera, que há uma grande quantidade de chuvas na região. Se a vegetação da Amazônia fosse diferente, ou seja, composta de vegetações que não emitissem tanta precipitação para a atmosfera, acabaria secando o ar que vem do oceano e só choveria nas regiões próximas da costa. Entretanto, como as árvores da Amazônia têm uma evapotranspiração muito grande, elas conseguem sustentar esse ciclo de vapor de água, e a vegetação faz essa reciclagem do vapor de água que veio do oceano. Se a atual vegetação da Amazônia for trocada por pastagem, vai chover bastante, mas a água, ao invés de ser devolvida para a atmosfera, correrá para os rios e irá embora.
Então, quando desmatamos uma certa região e trocamos uma floresta por pastagem, a região será afetada como um todo e isso vai gerar implicações em outras regiões. Nesse caso, tanto a Amazônia quanto o Pantanal e o Sudeste serão afetados, porque a nova vegetação não vai mais ser capaz de emitir tanto vapor de água para a atmosfera, e com isso vai diminuir a precipitação, mesmo numa região que nunca teve sua vegetação alterada. Então, se perturbarmos um pedaço da floresta, consequentemente perturbaremos uma parte da floresta que nunca foi tocada, por causa desse vínculo que existe no ciclo do vapor de água.
IHU On-Line – Quais são as novidades apontadas pelo estudo do qual o senhor participa, em relação ao fluxo e ao ciclo das águas na Amazônia?
Henrique Barbosa – Essa explicação que fiz sobre o fluxo e o ciclo das águas é bastante geral, e já tínhamos conhecimento do modo como esse ciclo se dava. O que fizemos de diferente nesse estudo – e fomos o único grupo que fez isso até hoje – foi considerar o transporte do vapor de água em cascata. Vou explicar como isso funciona. Normalmente, quando os cientistas avaliam a importância da Amazônia para as chuvas no Sudeste do Brasil, eles usam diversos tipos de modelos de observação e tentam, de alguma maneira, acompanhar a água que foi evapotranspirada pela floresta e verificar por onde ela passa e quando e onde chove.
O que fizemos de diferente foi escrever um modelo e desenhar um conjunto de equações que consigam representar vários ciclos de água intermediários; ou seja, até chegar ao ponto de interesse, por exemplo, no Sudeste, a água sai da Amazônia, se transforma em chuva no meio do caminho, entra no solo, é puxada de novo por outras águas naquela região, é emitida de novo para a atmosfera, vai mais para frente, chove outra vez, evapora de novo. Conseguir acompanhar esse ciclo das águas em vários ciclos de evaporação, precipitação e reevaporação, precipitação e reevaporação novamente, é uma novidade. Isso traz uma contribuição a mais. A nossa estimativa – e a estimativa da maioria dos estudos recentes – é de que a água que sai diretamente das plantas da Amazônia e vai para a atmosfera é responsável por 20% das chuvas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Quando consideramos que a água que saiu da Amazônia pode se transformar em chuva no meio do caminho, por exemplo, no Pantanal, e depois evaporar novamente e ir para o Sudeste, percebemos que a responsabilidade da Amazônia pelas chuvas no Sul e Sudeste do país é ainda maior, cerca de 25%. É a primeira vez que foi feita a verificação desse transporte de água em cascata, e usamos esse mesmo processo no estudo que foi publicado recentemente na Nature.
O que percebemos é que, quando consideramos esse transporte em cascata, o ciclo de desmatamento e seca fica mais intensificado do que se poderia prever se fosse considerado apenas o transporte do vapor de água direto, de um lugar para o outro. Então, o que observamos é que já estamos sentindo os efeitos das mudanças climáticas e as mudanças nos regimes de precipitação na Amazônia e, ao mesmo tempo, continuamos desmatando – na verdade o desmatamento voltou a aumentar nesses últimos dois anos. Ou seja, estamos forçando o sistema e contribuindo para que diminuam as chuvas e aumentem as temperaturas, o que deve levar a essa transição de uma floresta tropical úmida para uma vegetação típica do Cerrado.
IHU On-Line – É possível verificar que percentual da Amazônia já tem uma vegetação mais parecida com a do Cerrado?
Henrique Barbosa – É muito difícil avaliar, porque esse é um processo lento que acontece numa escala de tempo do ciclo de vida das árvores, então é algo a ser verificado em mais de vinte anos. De todo modo, as regiões que foram desmatadas se parecem muito mais com o Cerrado do que com a Amazônia, e toda a região conhecida como Arco do Desmatamento já sofre com isso, como Rondônia, Acre e Pará.
Nesse sentido, o que nosso estudo faz é alertar para o perigo de que essas mudanças que estamos impondo à Amazônia podem estar causando um processo de savanização do bioma, mesmo naquelas regiões que não foram perturbadas. Nosso estudo se concentra especificamente na Amazônia, mas esse cenário também pode acontecer nos demais biomas. Certamente se mudar o regime de precipitação e temperatura na região do Cerrado, por exemplo, a vegetação vai sofrer e vai haver mudanças.
IHU On-Line – Então, se o ciclo hidrológico da Amazônia for alterado, serão alterados os ciclos hidrológicos de todos os biomas do país?
Henrique Barbosa – Sim, por causa dessa influência da água que vem da Amazônia e que alimenta a precipitação em outras regiões no continente sul-americano: 20 ou 25% das chuvas da região Norte da Argentina e do Sul e Sudeste do Brasil são geradas da água que vem da Amazônia. Se essa quantidade de água for reduzida, espera-se que as chuvas diminuam nessas outras regiões.
Para fazer esse cálculo, também temos que considerar a variabilidade climática, ou seja, chove mais no verão e menos no inverno. Mas isso não significa que em todo verão chove a mesma quantidade. Em alguns verões chove muito e, em outros, chove pouco. Essa variação de chuvas de um ano para o outro significa que estamos provocando uma mudança que é difícil de separar da variabilidade natural do sistema.
IHU On-Line - O que seria preciso fazer para reverter ou evitar esse ciclo de desmatamento e secas que está sendo previsto para a Amazônia?
Henrique Barbosa – É preciso vontade política dos governantes para querer fazer essa mudança. Por razões diferentes, entre elas vontade política e preço de commodities, nos dois governos Lula e no primeiro governo Dilma, conseguiu-se controlar muito o desmatamento, o qual foi reduzido a quase zero. Contudo, essa urgência sobre o assunto foi deixada de lado, tendo em vista outros problemas que o país estava enfrentando, e os políticos passaram a se concentrar mais em outras pautas.
De todo modo, não se pode deixar de ter a preservação da floresta como um dos itens principais da lista do que se deve fazer, principalmente para quem está na posição de definir as leis, as estratégias de manejo e a legislação ambiental. Como cientista, posso fazer pesquisa e tentar educar as pessoas para transmitir esse conhecimento. Como jornalista, você pode ajudar divulgando esses estudos. Agora, como população, poderíamos ir a Brasília pressionar os políticos, mas, em última instância, são aqueles que estão com a caneta na mão que irão escrever a lei.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo ou explicitar algum outro ponto do estudo?
Henrique Barbosa – Uma coisa interessante que observamos é que, se a floresta for heterogênea, o efeito da seca pode ser diminuído. Se a vegetação for toda igual, a floresta como um todo responde de maneira igual às mudanças de chuva e de temperatura. Isso significa que, quando a temperatura for alterada de modo a causar efeitos na vegetação, toda a floresta sentirá esses efeitos, ou seja, a floresta inteira será perturbada de uma hora para a outra. Portanto, quanto mais heterogênea for a floresta - se em certas localidades existirem árvores que são mais resistentes ao estresse hídrico e, em outras localidades, árvores que são menos resistentes; em outras existirem árvores que aguentam mais a variação de temperatura e, em outras, árvores que aguentam menos, ou seja, se há essa variabilidade grande, tal como se observa hoje na Amazônia -, maior a possibilidade de estabilizar esse ciclo negativo de desmatamento, de redução das chuvas, de transição de floresta para cerrado. Quando a floresta é heterogênea, esse ciclo não consegue se propagar tão rápido. Isso demonstra que a própria biodiversidade da floresta, especialmente a vegetal, é importantíssima para manter a estabilidade dela, sem falar na sua importância para o desenvolvimento científico e para o desenvolvimento de remédios.
Outra questão que gostaria de comentar é por que devemos nos importar se um tipo de vegetação vai desaparecer na Amazônia, se outro tipo de vegetação vai surgir em seu lugar. Isto é, por que devemos nos preocupar se a vegetação da Amazônia pode ser substituída por uma vegetação de Cerrado? Uma das questões centrais é que as árvores da Amazônia são todas muito grandes, têm troncos enormes, ou seja, possuem de 30 ou 40 metros de altura, e a quantidade de carbono armazenado nessas árvores é muito grande. Então, se uma árvore dessas morre e nasce uma muito menor no local, vai haver uma diferença entre duas massas de carbono e essa diferença vai para a atmosfera. Nesse processo de substituição da vegetação da Amazônia pela vegetação do Cerrado, aumentaríamos muito a quantidade de carbono na atmosfera e, consequentemente, aumentariam as mudanças climáticas, as mudanças de temperatura e precipitação e também o processo de savanização. Por isso, temos que ter cuidado com a Amazônia.
Se fizermos uma lista dos países mais poluidores do mundo, o Brasil está em oitavo lugar, justamente por causa do desmatamento e das queimadas na Amazônia. Se não considerarmos o desmatamento e as queimadas, o Brasil nem aparece nessa lista, porque a atividade industrial brasileira é muito pequena. Então, temos de pensar não só em preservar a floresta, mas também nos efeitos que essa preservação acarreta para as mudanças climáticas, porque se não fizermos isso, os efeitos serão muito maiores não só na Amazônia, mas no mundo todo. Se o nível das águas subir por conta do aquecimento global, como está sendo previsto, a população que vive na região costeira será completamente afetada.
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Vegetação exuberante da Amazônia corre risco de ser substituída por gramíneas. Entrevista especial com Henrique Barbosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU