Por: Patricia Fachin | 07 Outubro 2016
“É muito ruim quando essa discussão de se a esquerda deve se unir ou se fragmentar se dá em termos de cúpula. Parece que vão sentar na mesma mesa o Ivan Valente (PSOL) e o Rui Falcão (PT), e a esquerda vai retomar a sua trajetória de conseguir disputar a sociedade, mas não é assim que funciona”. A ponderação é feita pelo sociólogo Henrique Costa ao comentar o resultado das eleições municipais do último domingo. Antes de propor uma “união” da esquerda, pontua, é preciso responder à questão: “A que se propõe o PT e a que se propõe o PSOL na disputa da hegemonia da sociedade hoje?”
Para ser considerado um partido de esquerda, diz, é preciso “ter um elemento central”, que consiste em “disputar” o voto do trabalhador, e aí está a dificuldade tanto do PT quanto do PSOL. Do lado petista, avalia, o discurso de classe “se perdeu por overdose de poder”, por se considerar que “as coisas estivessem garantidas enquanto tivesse o Bolsa Família e o lulismo, embora o lulismo dependa de dinheiro e de crescimento econômico para se sustentar”. Do outro lado, frisa, o PSOL “nunca teve como objetivo disputar o trabalhador. O PSOL tem tido um relativo sucesso na disputa da classe média progressista, se especializou em alguns temas e tem um debate avançado sobre racismos, transgênero, que são importantes, mas para um partido socialista que pretende ser majoritário e ser uma alternativa de esquerda, isso é pouco e o PSOL está muito distante”.
Na avaliação de Costa, a derrota do PT nas eleições municipais é explicada por várias razões, mas a questão central para entendê-la, adverte, é a crise econômica, que “foi um catalisador para esse desgaste, porque as pessoas estão sentindo na pele o que é a crise econômica, basta ver que 12 milhões de pessoas estão desempregadas no país e (...) o PT não conseguiu dar uma explicação convincente de por que o Brasil está nessa crise”.
A adesão da periferia à candidatura de João Doria, explica, pode ser compreendida pelo mesmo motivo que levou muitos a votarem no ex-presidente Lula: “a população compreende o Doria como um trabalhador (...) e ele obteve êxito em se mostrar como essa pessoa que trabalhou, que teria saído de uma situação de inferioridade social para virar um empresário bem-sucedido”. “Curiosamente”, menciona, “não foi o lulismo que conseguiu captar para si” esse “discurso do mérito”, muito embora ele tenha sido “estimulado pelo próprio lulismo. A própria Dilma, alguns anos atrás, quando ainda tinha uma alta popularidade, no dia 8 de março falou que queria se dirigir às mulheres empreendedoras. Logo, o PT aderiu a esse discurso do empreendedorismo e do mérito há muito tempo”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Henrique Costa também comenta as possibilidades para a esquerda no segundo turno, especialmente com a candidatura de Marcelo Freixo pelo PSOL no Rio de Janeiro. “O problema do Freixo é que ele conseguiu consolidar a votação que ele tem por parte da classe média carioca da Zona Sul e do Centro. Ele tem uma votação expressiva e semelhante com o eleitorado do Haddad: uma classe média à esquerda, progressista, que tem preocupações urbanísticas, defende ciclovias, mas não tem os problemas sérios de quem vive na periferia”, pontua.
Para Costa, os poucos votos recebidos pelo Partido Novo, inclusive pelo candidato Holiday, que se define como negro, pobre e gay, demonstram que dar ênfase às pautas identitárias e culturais “acaba sendo um tiro no pé” para a esquerda, “porque nada impede, empiricamente falando, que um candidato de direita assuma essas pautas”. E acrescenta: “Essa ideologia está penetrando nas periferias, e a minha hipótese é a de que o Holiday, por exemplo, teve muitos votos de jovens mais pobres. Logo, começa a ficar mais factível, começa a ser mais realista a ideia de que a esquerda construiu seu próprio buraco”.
Henrique Costa | Foto: Arquivo Pessoal
Henrique Costa é mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir das pesquisas que você desenvolveu com prounistas da periferia, o número de votos que João Doria obteve na periferia paulista foi uma surpresa ou não?
Henrique Costa - Surpreendeu-me a magnitude do resultado. Poucos esperavam que a eleição fosse decidida no primeiro turno, mas a trajetória de ascensão do Doria nas pesquisas já vinha indicando essa possibilidade. Quem mantém algum contato com a periferia, através de pesquisas, por exemplo, já notava essa adesão da periferia ao discurso do Doria, que é um discurso embalado por muito marketing e muita falácia, mas que “colou”. Aparentemente a periferia “comprou” essa ideia de que ele é um trabalhador que conseguiu progredir na vida e que se tornou empresário.
A rejeição que o Haddad vinha tendo na periferia desde 2013 pode ser explicada por conta da associação dele com políticas feitas para a classe média. Nesse sentido, o Doria conseguiu penetrar nessa população com um discurso de antipolítica, contra a política, se dizendo alguém que veio de fora desse mundo e, principalmente, se apresentando como alguém que progrediu na vida. Acredito que a eleição dele também tem a ver com essa ideia da “nova classe média”, que vínhamos observando nos últimos anos e que o próprio PT tentou ostentar, por algum tempo, como uma vitória sua. Em certa medida, essa “nova classe média” aderiu a um populista de direita.
IHU On-Line – Quem é o eleitor da periferia? Ele pode ser caracterizado apenas como alguém da “nova classe média”? Que outras razões explicam o fato de Doria ter obtido 62% dos votos e ter sido o candidato mais votado na periferia, mesmo tendo se apresentado como um membro da elite paulista?
Henrique Costa – O que muitas pessoas que pesquisam periferias esperavam em relação a essa “nova classe média” era observar se, como eu trabalhei na minha pesquisa, os membros da “nova classe média” iriam aderir aos valores da classe média. Eu não considero que essas pessoas chamadas de “nova classe média” o sejam de fato. Na minha avaliação, esse é um discurso do qual o PT se apropriou e tentou fazer com que “colasse”, e as pessoas que fazem parte dessa chamada “nova classe média” também compraram esse discurso. Com isso, elas também aderiram aos valores da classe média e, assim, essa população compreende o Doria como um trabalhador. Inclusive, o jingle da campanha dele era “João Doria, trabalhador”. Ele obteve êxito em se mostrar como uma pessoa que trabalhou, que teria saído de uma situação de inferioridade social para virar um empresário bem-sucedido. É basicamente isso que move o discurso do que se convencionou chamar de “nova classe média”, que é essa ideia do sucesso e do mérito individual daquele que trabalha e que consegue ascender na vida através do trabalho. Esse discurso tem muito apelo entre essas pessoas, em São Paulo mais ainda, mas é uma tendência nacional.
Curiosamente não foi o lulismo que conseguiu captar isso para si, mas o Doria. Eu vi uma entrevista em que um dos entrevistados diz exatamente isto: o Doria, para mim, é como o Lula; ele saiu do nada e se deu bem na vida. Então, o que é mais espantoso é que ninguém conseguiu combater esse discurso. Como o Doria conseguiu se mostrar desse jeito? Qualquer um que é um pouco mais informado sabe que esse discurso é uma grande falácia. No entanto, nem o PT, nem o PSOL e ninguém à esquerda logrou combater esse discurso, que acabou sendo muito administrado pelo Doria. Inclusive, muitos têm colocado a vitória dele como uma vitória do Alckmin, mas eu pessoalmente não acredito nisso; acredito que foi um case de sucesso do próprio Doria.
IHU On-Line – Mas o próprio Lula, quando se candidatou, utilizou o mesmo discurso de pobre e nordestino que mudou para São Paulo e ascendeu socialmente trabalhando e, inclusive, também foi eleito com esse discurso. Que comparações você faz entre o modo como ambos utilizaram esse discurso?
Henrique Costa – O Lula, de fato, sempre se orgulhou e ostentou sua origem, e a identificação que muitas pessoas da periferia ainda têm com o Lula vem, justamente, dessa trajetória dele como alguém que saiu do Nordeste, foi retirante, que ascendeu na vida. Isso serviu de inspiração para muitas pessoas durante muito tempo. Para a classe trabalhadora das grandes cidades, especialmente, ele foi essa inspiração. E até pouco tempo, muito da reeleição da Dilma e da eleição do Haddad em São Paulo e de outros candidatos se deve a isso.
O Lula se desgastou demais nesses últimos anos, não só com a Lava Jato, mas também por erros dele, erros de avaliação política e erros do PT. Com isso ele deixou um vácuo para muitas pessoas que deixaram de vê-lo como essa inspiração, e começaram a vê-lo como alguém que aderiu a práticas inaceitáveis. O Doria conseguiu se encaixar nesse contexto como alguém que é de fora desse mundo, alguém que já é rico e que, portanto, não precisa roubar. Ele é um gestor, não é político, e por isso conseguiu formar essa ideia de ser um trabalhador bem-sucedido, uma pessoa que ficou rica e que, portanto, não tem nenhum interesse na máquina pública. O Lula há muito tempo deixou de ter essa aura de intocável.
IHU On-Line - E que discurso você acha que a periferia espera, que não este do homem trabalhador que obteve sucesso pelo seu mérito individual e pelo seu trabalho?
Henrique Costa – Esse discurso do mérito foi estimulado pelo próprio lulismo. A própria Dilma, alguns anos atrás, quando ainda tinha uma alta popularidade, no dia 8 de março falou que queria se dirigir às mulheres empreendedoras. Logo, o PT aderiu a esse discurso do empreendedorismo e do mérito há muito tempo. Para mim, esse não é um discurso aceitável para alguém de esquerda, mas ele foi estimulado pelo PT e por essa onda de euforia que foi o lulismo. Mas esse discurso é muito sintomático: se conversarmos com pessoas de outros partidos como, por exemplo, do PSOL, veremos que esse discurso do mérito também está presente. Eu conversei com algumas pessoas e perguntei por que o PSOL não questionou o discurso do Doria, e ouvi de pessoas ligadas ao PSOL que a luta de classes não dá votos. Então, acho difícil a esquerda voltar a ter um discurso de luta de classes, porque ela abandonou esse discurso por iniciativa própria.
O governo Haddad em São Paulo não rompeu com várias políticas de direita que já vinham sendo implementadas antes. Ao contrário, as estimulou incentivando convênios com creches da iniciativa privada. E nós não fizemos mais a crítica desse tipo de política. A própria Erundina não entrou num embate forte com o Doria e, nesse sentido, ele foi muito preservado.
O discurso da luta de classe pode estar fora de moda, mas a luta de classes continua existindo, e à medida que a população começa a ver o PT e um prefeito do PT como alguém que defende os ricos, fica difícil convencer esse eleitorado.
IHU On-Line – O que a periferia esperava da gestão do Haddad? Muitos fazem uma crítica às ciclovias na Av. Paulista, porque essa foi uma política para a classe média. Concorda?
Henrique Costa – O Haddad tem méritos, fez uma administração que pode ser considerada acima da média, e mesmo falando que as ciclovias são políticas de classe média, são políticas positivas. Mas a gestão Haddad ficou marcada por essa imagem por culpa dele, porque ele tem uma personalidade difícil. Na primeira vez, ele foi eleito com o lulismo ainda em boa forma, mas ele foi o candidato do PT que mais teve votos da classe média paulista e isso já demonstra um perfil de classe. Porém neste ano não havia mais o lulismo, nem a figura do Lula como um personagem importante, nem Haddad conseguiu se comunicar com a periferia.
De outro lado, é difícil atribuir tudo à comunicação, porque quando se tem um posto de saúde na periferia e as pessoas demoram até um ano para conseguir um atendimento nesse posto, fica difícil defender a gestão. As políticas que ele fez, embora sejam interessantes, como fechar a Av. Paulista no domingo, não tem apelo na periferia. Para quem ainda tem preocupações materiais, essas questões pós-materialistas não são tão importantes, como diz o André Singer. Então, para quem tem saúde, educação, saneamento e transporte deficitários, fica difícil se convencer de que a ciclovia é interessante, porque a pessoa não consegue vir de Guaianases para o Centro de São Paulo de bicicleta — demora quatro horas para fazer esse trajeto. O transporte público teve uma melhora, mas se esperava mais do Haddad, porque ele se apresentou, como o Doria, como um candidato novo, de fora da política.
IHU On-Line – Que leitura você faz do fato de o PT ter perdido muitas prefeituras no ABC, onde é o seu reduto?
Henrique Costa – Isso tem relação com a questão nacional, com a questão do desgaste do PT, mas a crise econômica foi um catalisador para esse desgaste, porque as pessoas estão sentindo na pele o que é a crise econômica, basta ver que 12 milhões de pessoas estão desempregadas no país. No caso do ABC em particular, existe um processo de desindustrialização há alguns anos e os dados dessa semana mostram a queda da participação da indústria na economia e, para o ABC, isso é fundamental. Muitas das economias locais do ABC dependem da indústria. O PT não conseguiu dar uma explicação convincente de por que o Brasil está nessa crise e não dá para repassar a culpa para o Temer, porque a crise já vem de muito antes, com perda do poder do consumo, aumento da desigualdade, aumento de desemprego. Então, as pessoas atribuem ao PT a culpa por essa situação econômica. E ao mesmo tempo o PT não consegue dar perspectiva de futuro.
IHU On-Line – O discurso do golpe e do Fora Temer, ao contrário do que o PT poderia esperar, gerou um resultado contrário, considerando que o PMDB foi o partido que mais elegeu prefeitos?
Henrique Costa – Os movimentos contra o golpe e Fora Temer não tiveram vitória, porque o PT perdeu muitas prefeituras e o próprio PCdoB teve derrotas muito sérias e perdeu a prefeitura de Olinda, que governava há anos. A própria Jandira teve uma eleição muito ruim no Rio de Janeiro e a candidatura dela foi piorando à medida que ela acentuou o discurso do golpe.
Tendo a não concordar com as análises de que o PMDB sofreu um desgaste; o que aconteceu no RJ foi resultado da questão local. O PMDB governava as prefeituras do Rio de Janeiro há muitos anos, e o Paes teve um desgaste muito grande e nem o relativo sucesso das Olimpíadas conseguiu mudar a situação. O Pedro Paulo (PMDB) teve uma votação expressiva, mas o fato de ele ter ficado fora do segundo turno tem a ver com o desgaste do PMDB local, e não com o nacional. O fato de o PMDB ser governo federal neste momento não quer dizer que ele continuará assim, porque ele tem a característica de ser um partido regionalista e o seu poder e relevância na política nacional se dá a partir das políticas locais de prefeituras e governos estaduais, e não por ser a cabeça do governo. Estar na linha de frente nunca foi a proposta do PMDB.
IHU On-Line - Esses discursos devem continuar nas candidaturas da esquerda no segundo turno, especialmente no caso da candidatura do Freixo no Rio de Janeiro?
Henrique Costa – Esses discursos não só não tiveram resultado como em alguma medida até jogaram contra. Os candidatos que foram mais incisivos com esses discursos, como Raul Pont em Porto Alegre, Pepe Vargas e Jandira, foram os que tiveram os piores resultados. O Freixo, por mais que tenha ido para o segundo turno, bancou muito a questão do Fora Temer e conseguiu agregar em torno dele esse movimento, mas é arriscado dizer que esse discurso pode dar certo no segundo turno. Primeiro, porque o Freixo está sendo cobrado por isso, e segundo, porque está tendo que dar explicações. Então, ele já está dizendo que vai ter uma relação institucional com o presidente Temer e já está tendo que adequar o discurso.
IHU On-Line – O Freixo declarou que não quer nem o apoio da Rede nem do PT. É uma boa estratégia se lançar dessa maneira?
Henrique Costa – É difícil porque o problema do Freixo é que ele conseguiu consolidar a votação que ele tem por parte da classe média carioca da Zona Sul e do Centro. Ele tem uma votação expressiva e semelhante com o eleitorado do Haddad: uma classe média à esquerda, progressista, que tem preocupações urbanísticas, defende ciclovias, mas não tem os problemas sérios de quem vive na periferia. Então, ele teve votações ruins no subúrbio carioca e não dá para ser prefeito do Rio de Janeiro só com a votação da Zona Sul e do Centro. Na Zona Oeste as pessoas nem conhecem o Freixo.
IHU On-Line – Por que ele não tem essa adesão no subúrbio carioca?
Henrique Costa – Porque ele tem um perfil Zona Sul e ficou taxado como o candidato da classe média. E se tem uma coisa que a população mais pobre conserva, é a luta de classe, porque o fato de o Freixo dizer que é de esquerda, não faz a menor diferença para a população do subúrbio, porque ele continua sendo visto como um candidato da Zona Sul, da classe média mais rica, ou seja, é identificado com o pessoal que tem uma vida mais fácil.
IHU On-Line – O Crivella, por ser evangélico, tem mais penetração no subúrbio carioca?
Henrique Costa – Certamente, e dificilmente ele vai perder o que já tem. Ele tende a ganhar boa parte dos votos do Pedro Paulo e do Bolsonaro, e ele está numa situação melhor, apesar da rejeição pelo fato de estar ligado à Igreja Universal. Por exemplo, os votos que foram para o Otávio Leite (PSDB) devem ir para o Freixo, porque o pessoal mais abastado tem mais rejeição ao fato de o Crivella ter uma ligação com a Igreja Universal. Tudo indica que o Freixo vai conseguir ganhar esses votos, mas — com todo o respeito que ele merece — ele não vai conseguir manter um discurso de esquerda e não vai conseguir fazer uma gestão que criaria grandes problemas para o status quo, como Haddad também não conseguiu.
Boa parte da classe média que votou no PSDB, mais à direita, mas não tão à direita assim, pode se voltar para o Freixo. Ao mesmo tempo, o próprio Freixo deve estar avaliando o quanto esse discurso do golpe e do Fora Temer continua adequado para ele agora. Pessoalmente acho que esses discursos não são adequados, porque eles não vão gerar mais votos do que os que já geraram. Agora o Freixo já conseguiu o apoio da Jandira e do Molon (Rede), mas isso não dá nem 5% dos votos, então ele tem que dar mais alguma coisa no segundo turno, e a questão é o que ele tem para dar para disputar o voto na Zona Oeste, que não o conhece e talvez tenha restrições a ele.
IHU On-Line – Que diferenças percebe entre Freixo e Crivella? Muitos falam da possibilidade de a Globo apoiar a candidatura do Freixo por conta do Crivella. Essa possibilidade é plausível?
Henrique Costa – Tem muitas diferenças entre eles, e o próprio Crivella vai tentar captar para ele os votos do Bolsonaro. Lembra que, quando o Gabeira foi candidato, a Globo o apoiou e a disputa entre ele e o Paes foi voto a voto. À época, o Paes comprou briga com a Globo e depois teve que criar condições para conseguir o apoio da Globo, inclusive cedendo museus para a Fundação Roberto Marinho, e as próprias Olimpíadas foi um evento realizado em conjunto com Globo.
É evidente que a Globo tem seus interesses locais no Rio de Janeiro e não sei se gostariam de ter o Crivella como prefeito. Mas o Freixo tem que ver o que está disposto a dar em troca. O que se espera é que ele faça uma gestão moderada, e ele já está moderando o discurso, por isso vai ser difícil que ele toque em pontos sensíveis. É aquilo: quando você não está no poder, é conveniente questionar o poder da mídia e da Rede Globo, mas quando você chega ao poder, a situação é diferente. As eleições do PT mostram isso: quantos foram para o embate com os meios de comunicação?
IHU On-Line – Muitos têm defendido que a esquerda deveria se unir e deveria haver uma coalizão entre PT e PSOL, e outros defendem justamente o contrário, que a esquerda tem que ser fragmentada e ligada aos diversos movimentos sociais. O que seria mais acertado para a esquerda neste momento?
Henrique Costa – É muito ruim quando essa discussão de se a esquerda deve se unir ou se fragmentar se dá em termos de cúpula. Parece que vão sentar na mesma mesa o Ivan Valente e o Rui Falcão, e a esquerda vai retomar a sua trajetória de conseguir disputar a sociedade, mas não é assim que funciona. A que se propõe o PT e a que se propõe o PSOL na disputa da hegemonia da sociedade hoje? Se existe um partido como o PT, que teve seus méritos, que conseguiu timidamente distribuir um pouco de renda, mas usou desse apelo popular pouco socialista e estimulou a ideia do mérito, do individualismo, do consumo, como o PT vai voltar a ser de esquerda? Para ser de esquerda precisa ter um elemento central, que é disputar trabalhador. Claro que as pautas identitárias são importantes, mas o fato de não conseguir mais se ter um discurso para a classe trabalhadora é muito grave.
No caso do PT, esse discurso se perdeu por overdose de poder, euforia, de achar que as coisas estivessem garantidas enquanto tivesse o Bolsa Família e o lulismo, embora o lulismo dependa de dinheiro e de crescimento econômico para se sustentar. Por outro lado, o PSOL nunca teve como objetivo disputar trabalhador. O PSOL tem tido um relativo sucesso na disputa da classe média progressista, se especializou em alguns temas e tem um debate avançado sobre racismos, transgênero, que são importantes, mas para um partido socialista que pretende ser majoritário e ser uma alternativa de esquerda, isso é pouco e o PSOL está muito distante.
IHU On-Line - Então não concorda com a análise de que o PSOL tende a ser uma alternativa à esquerda do PT e receber os votos dos petistas?
Henrique Costa – Até pode receber os votos dos petistas, mas o problema é justamente saber quem são os petistas hoje.
IHU On-Line – E a Rede não conseguiu se apresentar como uma alternativa?
Henrique Costa – A Rede é decepcionante. No caso do PSOL, se analisarmos as grandes cidades, verificamos que há vereadores eleitos pelo PSOL. Portanto, para ser representante de pautas específicas, o PSOL tem como se consolidar nesses setores, mas isso é muito pouco em termos de governabilidade. Em São Paulo aconteceu muito esse fenômeno de o eleitor votar no Haddad para prefeito e, para vereador, votar nos candidatos do PSOL. Então, o eleitor confia no PSOL para estar na Câmara de Vereadores, mas não acredita nesses candidatos para governar a cidade. No caso da Rede, fiquei muito impactado com o resultado do Molon, que esteve na linha de frente contra o impeachment, foi o deputado mais votado no Rio de Janeiro, mas teve o resultado que teve. A Rede, então, tem que colocar a cabeça no travesseiro e pensar no que fez. Bons políticos, que tinham um capital a preservar, colocaram tudo a perder.
IHU On-Line – Qual é sua análise em relação ao Partido Novo, que já conseguiu eleger alguns vereadores?
Henrique Costa – É um sinal dos tempos e tem um pouco a ver com a própria ascensão do Doria. Em São Paulo foi eleita uma candidata do Partido Novo [Janaína Lima] e mais o [Fernando] Holiday, que se candidatou pelo DEM. São dois candidatos jovens eleitos, que capitalizaram esse voto jovem à direita.
IHU On-Line – Sim, mas o Holiday se define como negro, pobre, ou seja, utiliza essas pautas identitárias em seu discurso.
Henrique Costa – Sim, se define como negro, pobre e gay. Por isso digo que se voltar apenas para esses temas acaba sendo um tiro no pé, porque nada impede, empiricamente falando, que um candidato de direita assuma essas pautas. A diferença é que o candidato de direita está preocupado em não distribuir renda, em manter a sociedade desigual, economicamente falando. Então, ele pode ser negro e ter sua orientação sexual, e não é isso que vai impedi-lo de ser um nome viável para uma candidatura da direita que, sobretudo, defenderá o individualismo, o discurso do mérito, o Estado mínimo ou o privatismo.
Essa ideologia está penetrando nas periferias, e a minha hipótese é a de que o Holiday, por exemplo, teve muitos votos de jovens mais pobres. Logo, começa a ficar mais factível, começa a ser mais realista a ideia de que a esquerda construiu seu próprio buraco.
IHU On-Line - Quais são os principais desafios municipais colocados para a gestão do Doria na periferia?
Henrique Costa – O Doria não foi confrontado em nenhum momento, com isso ele fez várias propostas que não têm pé nem cabeça, mas que pareceram realistas para a maioria da população. Um exemplo é a proposta do “Corujão da Saúde”, que é uma espécie de convênio com a iniciativa privada, que disponibilizaria seus hospitais privados para o atendimento da população mais pobre. No entanto, isso tem vários empecilhos, pois se o médico e o enfermeiro trabalharem à noite, receberão hora extra, e o custo será muito maior. Como o próprio trabalhador fará para se deslocar até esses hospitais durante a madrugada, por exemplo? Então, são propostas tiradas da “cartola” e que não têm, em princípio, nenhuma viabilidade, mas ele prometeu e as pessoas acreditaram.
A periferia tem, principalmente, esse déficit de saúde, e problemas em relação à segurança. É preciso lembrar que Doria é apadrinhado do Alckmin, então, tudo leva a crer que terá um aumento da repressão, e ele já se manifestou sobre as pichações na cidade, portanto vai reprimir pichação. Essa escolha da periferia tende a se voltar contra ela, infelizmente. A periferia criou expectativa em relação ao Doria, tanto que a maioria das pessoas não votaria em outro candidato do PSDB.
A eleição do Doria me parece muito mais uma consequência da frustração da periferia com o PT, com o Haddad, e por conta de a periferia ter sido abandonada pelo campo democrático popular. Não sei se as pessoas têm muita consciência do que demandar dele, mas as demandas da periferia são saúde, transporte, emprego — coisas que o Haddad prometeu na eleição passada, com o tal “Arco do futuro” e que não se mostrou viável no curto prazo.
Temos que lembrar também que as abstenções e os votos brancos e nulos foram altíssimos. O próprio Doria venceu o primeiro turno, mas os outros mais perderam do que ele ganhou. É muito significativo o fato de que três milhões de pessoas simplesmente deixaram de dar seu voto para algum candidato. Esse dado é tão significativo quanto a própria vitória do Doria no primeiro turno, e isso demonstra que há uma desesperança e um ceticismo da periferia com a política.
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A periferia paulista substitui Lula por Doria e adere ao discurso do mérito sustentado pelo lulismo. Entrevista especial com Henrique Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU