08 Julho 2016
“Este é o cenário brasileiro hoje: um país que avançou economicamente - a despeito da crise recente -, um país que avançou socialmente, reduziu muito a pobreza e a miséria e, ao mesmo tempo, trouxe no seu bojo o crescimento da violência, porque o tráfico se consolidou no país”, constata o sociólogo e especialista em segurança pública.
Imagem: total98fm.com.br |
A lucratividade do tráfico de drogas, informa, “aumentou incomensuravelmente no Brasil nos últimos 15 anos, no bojo da melhoria econômica e social” e “isso significa o fortalecimento do tráfico de drogas” e um aumento no “recrutamento de jovens” e no uso de arma de fogo”.
De acordo com Sapori, a melhoria de vida da população não implicou numa redução da violência e justamente por isso, adverte, que “temos que parar de pensar a violência no Brasil como um produto da pobreza e da miséria, não é mais assim. Foi em certo tempo, mas não é mais. A violência cresce no Brasil, envolvendo cada vez mais os jovens, porque vivemos em uma sociedade em que a busca da ascensão econômica para aquisição de bens econômicos passa também pelo crime, e o tráfico se tornou absolutamente atrativo para os jovens da periferia. Esse aparente paradoxo é explicado pelo tráfico de drogas, que é uma atividade criminosa, mas que traz outros crimes no seu bojo, uma vez que a dinâmica do tráfico gera roubos e homicídios”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Sapori também comenta a proposta de descriminalização das drogas e frisa que “temos de tomar muito cuidado com essas propostas, pensá-las com cautela, porque não é simples dizer que vamos poder legalizar todo e qualquer tipo de drogas no Brasil. Não adianta legalizar só a maconha, porque isso não vai interferir em nada na violência, pois os maiores problemas relacionados ao consumo têm ligação com a cocaína e com o crack”. E ressalta: “A pergunta a ser feita é: vamos ter coragem de legalizar o crack, ou ter coragem de permitir o acesso das pessoas ao consumo do crack? Não é simples responder a essa pergunta."
Luis Flávio Sapori é doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ. Foi Secretário Adjunto de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais no período de janeiro de 2003 a junho de 2007. Atualmente é professor do curso de Ciências Sociais e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública - CEPESP da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Recentemente foi divulgada a informação de que a polícia militar apreende um menor a cada três horas na cidade de São Paulo. Como o senhor interpreta essa notícia e o que isso revela sobre a violência, sobre questões sociais e sobre a segurança no país, especialmente em grandes metrópoles?
Imagem: Boletim O Tempo
Luis Flávio Sapori – É um dado muito preocupante, o qual revela que os jovens brasileiros, especialmente os adolescentes, são uma parte integrante do fenômeno da violência no Brasil, não só como autores de crimes, como assaltos, homicídios, estupros, mas como vítimas. É revelador como o perfil da violência hoje no Brasil – dos homicídios especialmente – envolve jovens e muitos adolescentes entre 14 e 17 anos de idade, geralmente do sexo masculino. Com isso nós temos uma realidade complicada e de difícil enfrentamento - não impossível -, a qual mostra que não é apenas com a prisão desses adolescentes que iremos resolver o problema. Esses adolescentes estão entrando no crime por motivações diversas.
IHU On-Line - É possível estimar, entre as pessoas que ingressam no crime, qual é o percentual de jovens e adolescentes? Esse perfil tem mudado em relação a outros períodos da história brasileira?
Luis Flávio Sapori – Não temos estudos científicos no Brasil que possam dar resposta para essa pergunta, temos apenas estimativas pontuais de estudos diversos. Particularmente fiz algumas estimativas para Minas Gerais e para o estado de Alagoas recentemente, sobre homicídios e roubos. Minhas estimativas apontam – estou pensando nos adolescentes na faixa etária de 12 a 17 anos e não nos jovens de maneira geral – que eles têm sido responsáveis por cerca de 7% dos roubos, ou seja, de cada 100 roubos cometidos, em média sete são praticados por adolescentes, e em torno de 5% dos homicídios, com algumas variações. Encontrei um dado de 20% na cidade de Maceió, recentemente, para homicídios cometidos por adolescentes; em Belo Horizonte, em torno de 5%; mas estimo que no restante do Brasil deve se seguir esse patamar entre 5% e 10% de homicídios cometidos por adolescentes.
Não se trata de um fenômeno que está se agravando, mas, ao contrário, é um fenômeno que está persistindo ao longo do tempo e que já foi diagnosticado desde a década de 1990, em São Paulo e no Rio de Janeiro. O que está acontecendo é que esse fenômeno se alastrou para o restante do Brasil, e já não é mais visível apenas nas duas grandes metrópoles brasileiras, mas chegou ao Sul do país e, principalmente, ao Nordeste. Então, a única novidade é a maior ampliação do fenômeno no território nacional, mas em termos de crescimento e de maior presença dos adolescentes no crime, diria que ela permanece elevada e com uma relativa e preocupante constância.
"O principal fator atrativo dos jovens ao crime é o tráfico de drogas." |
IHU On-Line - Por que esse fenômeno se alastrou? Quais são as motivações que levam adolescentes e jovens a entrarem no mundo do crime?
Luis Flávio Sapori – O principal fator atrativo é o tráfico de drogas. Essa é a principal porta de entrada de garotos de 16, 15 e 14 anos, e até mais jovens ainda, no mundo do crime. É através do tráfico de drogas que, muitas vezes, eles pegam em armas de fogo, e é através do tráfico de drogas que muitos deles começam a cometer assaltos para conseguir dinheiro para finalidades diversas. Diria que o tráfico de drogas continua sendo – e já o é há algum tempo – a grande porta de entrada para esses adolescentes no mundo do crime, porque a forma como o tráfico se estrutura nas periferias urbanas, nos bairros de periferia, oferece um dinheiro “rápido e fácil”, e com esse dinheiro o adolescente pode, em algum momento ou outro, até ajudar na sobrevivência da família. Mas essa não é a principal finalidade, pois na maioria das vezes esse dinheiro serve para sustentar os desejos de consumo desse adolescente: serve para ele comprar a bermuda, a camisa, o tênis, o boné, a droga que ele consome, a farra com as namoradas e com amigos. Portanto, o dinheiro “fácil e rápido” resolve e atende interesses imediatos de consumo.
O mundo do tráfico é um mundo muito sedutor, hedonista, é um mundo de muito prazer, de muita satisfação e, para esses adolescentes, isso é muito interessante, pois são adolescentes que, muitas vezes, já não valorizam mais os estudos – os quais eles abandonam -, já não têm mais o controle efetivo dos pais, não têm outras referências morais na comunidade, assim como na igreja, na cultura, no esporte, na escola. Além disso, são vítimas da violência policial, e isso tudo acaba culminando para que eles ingressem no mundo do tráfico, da arma de fogo, do crime etc. Assim eles entram em um ciclo vicioso e muitos deles acabam perdurando nessa situação por muito tempo ao longo da vida.
IHU On-Line - Em 2013 o senhor nos concedeu uma entrevista e afirmou que o aumento da violência urbana brasileira está amparado em dois fatores: na consolidação e crescimento do tráfico de drogas no Brasil nos últimos dez anos e nos homicídios e assaltos. O quadro permanece o mesmo? Nesse sentido, o que tem sido feito e o que poderia ser feito para lidar com essas questões?
Luis Flávio Sapori – De lá para cá não mudou nada; a realidade, inclusive, até piorou. A conjuntura da violência urbana no Brasil é de agravamento em praticamente todos os estados. Não há indício concreto de que estamos revertendo essa situação e nenhuma política pública de âmbito federal, ou mesmo estadual, que possa sinalizar uma mudança de postura dos governantes brasileiros em relação a essa questão. O que se continua fazendo é a prisão contumaz desses jovens através da polícia - e em alguns casos até matando esses jovens. Então, continuamos fazendo o mesmo que fazemos há 20 anos, sem resultado efetivo nenhum.
O que falta concretamente? Falta levar a sério a prevenção social e falta levar a sério um grande programa nacional, capitaneado pelo governo federal, com recursos, com parcerias dos governos estaduais e municipais para implementar um grande projeto nacional para jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade onde o tráfico de drogas é muito forte. Esse projeto deveria priorizar a inserção dos jovens através do esporte, da música e do trabalho. E isso não foi feito até o momento; permanecem iniciativas muito isoladas de Organizações Não Governamentais – ONGs, e nada além disso. Por conta dessa situação é que a realidade continua da mesma maneira que há 10, 15 anos.
IHU On-Line - O que seria esse projeto de prevenção social? O senhor pensa em medidas relacionadas à educação, trabalho, ou o que especificamente?
Luis Flávio Sapori – O desafio é pensar projetos específicos. Não basta somente manter o adolescente na escola, porque boa parte desses garotos que entram no tráfico abandonam a escola com 12, 13 anos de idade. Então, não adianta escola integral porque a escola integral pode não segurar esse adolescente. Precisamos, então, de projetos focados nos territórios onde os homicídios são mais graves, onde o tráfico de drogas é mais constituído. Esse projeto tem que ter parceria com a comunidade local, com uma entidade não governamental presente na execução, com a contratação de equipe técnica, ou seja, é preciso ter dinheiro e uma metodologia de trabalho, e esse projeto de prevenção deve oferecer a esses adolescentes uma alternativa de inserção na sociedade que não seja através do tráfico.
É oferecer a esses meninos de 13 e 14 anos uma opção para que eles possam se tornar alguém, que possam ter dinheiro sem ter que, necessariamente, pegar em arma de fogo e vender droga. Isso se faz através da música e do esporte, mas também através do emprego, do trabalho, porque é preciso oferecer a eles alguma renda nessa faixa etária. A Lei do Jovem Aprendiz pode ser muito útil nesse sentido, envolvendo parcerias das empresas no âmbito municipal.
Então, é possível fazer muita coisa, mas para isso é preciso de muito dinheiro, é preciso que o governo federal capitaneie essa iniciativa com uma metodologia sistematizada, com a capacitação de técnicos e profissionais para executar essas iniciativas e mobilizar a comunidade. Tudo é possível, não tem segredo fazer essas coisas. Precisamos que as autoridades se convençam que não basta ficar prendendo e matando adolescentes todo o santo dia, porque não resolverá o problema.
|
"A conjuntura da violência urbana no Brasil é de agravamento em praticamente todos os estados" |
IHU On-Line – Considerando que o senhor aponta o tráfico de drogas como um dos principais problemas relacionados à violência urbana, como vê a proposta de descriminalização das drogas? Ela teria impacto na redução da violência urbana ou na diminuição da inserção dos adolescentes no tráfico?
Luis Flávio Sapori – Não. A descriminalização do consumo não afetará em nada, em absolutamente nada, porque a violência do tráfico está relacionada ao comércio e à venda da droga. O usuário não é o principal ator; é o agente da venda o principal agente da violência – o traficante. Então, o grande desafio não só da sociedade brasileira, mas também da sociedade ocidental, envolve tratar dessa questão da legalização do consumo e da venda das drogas. Talvez essa fosse a única maneira, a médio e longo prazo, de impactar isso decisivamente. No entanto, não é uma medida simples de ser adotada. O Brasil não pode tomar uma medida de legalizar todas as drogas sem fazer um acordo internacional, sem ter, de alguma maneira, um acordo na ONU. Não é uma solução simples, apesar de eu entender que a legalização seria um caminho.
Entretanto, lidar efetivamente com as drogas é um problema de saúde pública, mas não é uma solução de curto e médio prazo; é uma solução de longo prazo. Enquanto isso nós devemos continuar em uma ação contra o tráfico de drogas, priorizando mais a prisão dos grandes traficantes – de preferência dos atacadistas e não dos traficantes do varejo – e desenvolver um grande programa de prevenção com essa juventude, com esses adolescentes que vivem nas periferias.
IHU On-Line - Alguns pesquisadores têm afirmado que a pujança econômica dos últimos anos, que permitiu que as pessoas comprassem mais bens de consumo nas periferias, por exemplo, também fortaleceu o crime, que é entendido como um mercado que se desenvolve com a ampliação dos mercados. Concorda com esse tipo de análise? Que reconfigurações evidencia na estrutura criminal das periferias paulistas e que papel o crime ainda desempenha na organização desses locais?
Luis Flávio Sapori – Não há dúvida de que isso acontece não só em São Paulo, mas na periferia de todas as grandes cidades brasileiras, como Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba e em todo o Nordeste. Essa é uma realidade nacional. Com a nítida expansão econômica e social dos últimos 15 anos, o Brasil reduziu dramaticamente a pobreza e a miséria, distribuiu renda, inseriu no mercado de consumo um contingente bastante expressivo da população e tudo isso contribuiu para melhorar as condições de vida dessa população, aumentou a capacidade de consumo de bens duráveis e eletrônicos, melhorou a alimentação e diminuiu a fome, mas também aumentou a possibilidade de a população ter acesso às drogas. Portanto, aumentou também o mercado consumidor de drogas – maconha, cocaína, crack, êxtase e drogas sintéticas. Ou seja, o consumo de drogas ilícitas, hoje, não é mais um privilégio das classes média e alta no Brasil, ele está também nas periferias, e a própria periferia é um mercado consumidor. Então, a lucratividade do tráfico de drogas aumentou incomensuravelmente no Brasil nos últimos 15 anos, no bojo da melhoria econômica e social. Na prática, isso significa o fortalecimento do tráfico de drogas. Como a lucratividade do tráfico aumentou, com isso aumentou também o recrutamento de jovens e o uso de arma de fogo.
Assim, temos um cenário de agravamento da situação, e isso vale para São Paulo, mas principalmente para o Nordeste, Sul e outras regiões do Brasil. São Paulo tem uma singularidade porque, nesse processo, uma organização criminosa – o PCC – praticamente monopolizou o atacado e o varejo das drogas, e isso fez com que a violência diminuísse em boa medida. No restante do Brasil o tráfico permanece pulverizado, fragmentado em grupos e gangues diversos, que são muito conflituosos, logo, muito letais. Este é o cenário brasileiro hoje: um país que avançou economicamente - a despeito da crise recente -, um país que avançou socialmente, reduziu muito a pobreza e a miséria e, ao mesmo tempo, trouxe no seu bojo o crescimento da violência, porque o tráfico se consolidou no país.
"Trata-se de uma racionalidade instrumental, oportunista e isso impregna a sociedade brasileira, das classes mais altas às mais baixas, e é isso que explica por que um adolescente de 17 anos entra no crime para conseguir algumas centenas de reais para comprar um tênis" |
IHU On-Line – Não lhe parece um paradoxo pensar que embora tenha havido melhorias sociais e econômicas, a violência também aumentou?
Luis Flávio Sapori - Parece um paradoxo, mas não é. Temos que parar de pensar a violência no Brasil como um produto da pobreza e da miséria, não é mais assim. Foi em certo tempo, mas não é mais. A violência cresce no Brasil, envolvendo cada vez mais os jovens, porque vivemos em uma sociedade em que a busca da ascensão econômica para aquisição de bens econômicos passa também pelo crime, e o tráfico se tornou absolutamente atrativo para os jovens da periferia. Esse aparente paradoxo é explicado pelo tráfico de drogas, que é uma atividade criminosa, mas que traz outros crimes no seu bojo, uma vez que a dinâmica do tráfico de drogas gera roubos e homicídios. É por isso que esses crimes estão em franca ascensão em todo o território nacional.
IHU On-Line – Mas se houve melhoria social e econômica, o que explica um aumento de jovens no crime?
Luis Flávio Sapori – Aí entra a fragilidade moral e histórica da sociedade brasileira. Aí entra o fato de termos, historicamente, uma sociedade anômica, em que valores de ganho pessoal e de enriquecimento se sobrepõem aos limites da lei. Trata-se de uma sociedade que, historicamente, não valoriza o respeito à lei como parâmetro das relações sociais, uma sociedade onde o estado de direito é frágil, onde o indivíduo se sente liberado para buscar seus ganhos pessoais a despeito do trabalho, da disciplina, da educação. Esses valores morais foram deixados de lado e a ideia que se tem é conseguir o maior ganho com o menor custo possível.
Trata-se de uma racionalidade instrumental, oportunista e isso impregna a sociedade brasileira, das classes mais altas às mais baixas, e é isso que explica por que um adolescente de 17 anos entra no crime para conseguir algumas centenas de reais para comprar um tênis, mas explica também por que um empresário corrompe um servidor público para ganhar uma licitação; trata-se do mesmo fenômeno, de uma grande fragilidade moral que marca a história do Brasil. Soma-se a esse fator o crescimento do tráfico, da lucratividade, a fragilidade do estado de direito e a impunidade. A mistura desses grandes fatores sociológicos define uma combustão geradora de indivíduos voltados para o crime, seja o crime da rua ou o do colarinho branco; são fenômenos que estão muito interligados.
IHU On-Line - Alguns defendem que a saída para essa situação seria regular mercados ilegais e fazer proteção social. O que lhe parece?
Luis Flávio Sapori – Eu só entendo “regular mercado ilegal” como regularização do mercado para que ele deixe de ser ilegal. Não se regula mercado ilegal, porque ele se regula por si mesmo e é por isso que a violência é parte dele, porque as dívidas, os conflitos existentes nesse mercado ilegal são resolvidos pela violência e não pela negociação. Então, não se regula mercado ilegal através do Estado. O Estado só pode intervir no mercado ilegal do tráfico de drogas, se legalizar o mercado de compra e venda de drogas, por exemplo, ou seja, teria que regulamentar e legalizar não só a compra e venda, mas também a produção, que seriam controladas pelo poder público.
Concordo que essa seria uma medida definitiva, mas mesmo assim ela não vai acabar com o crime; talvez vá diminuir o tráfico de drogas. Entretanto, não é simples fazer isso. Não há nenhum país no mundo até o momento que fez isso nesse âmbito. Temos de tomar muito cuidado com essas propostas, pensá-las com cautela, porque não é simples dizer que vamos poder legalizar todo e qualquer tipo de drogas no Brasil. Não adianta legalizar só a maconha, porque isso não vai interferir em nada na violência, pois os maiores problemas relacionados ao consumo têm ligação com a cocaína e com o crack. Então, continuo defendendo que a legalização das drogas é algo que deva ser discutido no âmbito internacional, e o Brasil pode começar a defender essa proposta na ONU, mas antes disso, em âmbito local, temos de continuar fazendo a repressão ao tráfico.
Legalizar apenas uma droga não acaba com o tráfico. Dizer que a legalização da maconha vai ser uma solução, como o Uruguai fez, é uma ingenuidade, porque isso não fará nem cócegas no problema brasileiro. A pergunta a ser feita é: vamos ter coragem de legalizar o crack, ou vamos ter coragem de permitir o acesso das pessoas ao consumo do crack? Não é simples responder a essa pergunta. Nós nem saberíamos como fazer isso, porque o Estado teria que produzir o crack e disponibilizá-lo para os usuários. Temos que ter muito cuidado, porque não existe uma solução fácil para esse problema.
"Dizer que a legalização da maconha vai ser uma solução, como o Uruguai fez, é uma ingenuidade, porque isso não fará nem cócegas no problema brasileiro" |
IHU On-Line – Por que o tráfico tomou uma dimensão tão grande na sociedade brasileira?
Luis Flávio Sapori – Pela lucratividade e, principalmente, porque ele se consolidou na periferia urbana de uma maneira muito específica - esse é o grande detalhe: é o tráfico das gangues, dos grupos, é um tráfico muito violento. Ele se configurou dessa maneira pela histórica exclusão social dessas regiões das cidades, pela exclusão das populações negras, dos analfabetos e, historicamente, essas regiões se tornaram locais de mercados ilegais, de “gatos”, de modos ilegais de resolver problemas, ou seja, são regiões nas quais a criminalização encontrou um local adequado pela falta de urbanização, de serviços públicos adequados.
O Brasil paga o preço por 500 anos de negligência com as camadas mais pobres. E o tráfico de drogas encontrou um terreno fértil para se consolidar; agora, acabar com o tráfico será difícil. Não iremos resolver esse problema simplesmente urbanizando as favelas, porque ele continuará existindo, como acontece hoje, inclusive, com o Programa Minha Casa Minha Vida, em que alguns conjuntos habitacionais padecem nas mãos de traficantes que estão se apropriando desses espaços e expulsando moradores. A inclusão social dessas periferias não vai resolver o problema. O que temos é um desafio complicado pela frente, e volto a dizer: a resolução do problema não depende de investimento social e econômico.
É preciso lembrar também que as favelas brasileiras não são mais as mesmas de 20 anos atrás e muitas delas já são segmentos de classe média. Pesquisas do Data Popular, do Rio de Janeiro, mostram como a favela de hoje não é um espaço urbano da miserabilidade apenas – ela continua existindo -, existem setores socialmente e economicamente incluídos. Mas obviamente é preciso melhorar o acesso dessas pessoas à universidade, e há muito a fazer ainda.
O Brasil, se quer se tornar um país justo, precisa ampliar o acesso desses segmentos aos serviços públicos, especialmente o acesso à educação, aos empregos e a uma melhor remuneração para diminuir a desigualdade. Isso ainda vai demorar algumas décadas, mas o nosso desafio, hoje, envolve uma política de segurança pública que seja capaz de reduzir a capacidade do tráfico de recrutar jovens e que faça uma repressão qualificada, que reduza a impunidade, que mostre claramente que matar neste país tem um preço e que ninguém pode ficar andando com arma de fogo na rua, na viela e na comunidade como se fosse dono daquele lugar. Isso envolve estado de direito, envolve uma capacidade repressiva dentro da lei, e essa é a única maneira de, no curto prazo, diminuir o domínio do tráfico de drogas, com o Estado ocupando o território que o traficante hoje ocupa, com polícia, com defensoria pública, com juizado especial, com entidades de defesa e direito do consumidor, ou seja, o estado de direito tem que penetrar efetivamente nesses locais.
IHU On-Line – Alguns pesquisadores também comentam que tanto o sistema criminal quanto o estatal sofriam pressões para baixar os homicídios em cidades como São Paulo e afirmam que o crime tem sido mais efetivo que o Estado na diminuição dos homicídios, por exemplo. Concorda com essa análise? A que atribui a redução dos homicídios em locais como São Paulo?
Luis Flávio Sapori – Em parte, sim. O caso de São Paulo é muito singular. Trata-se de um estado que ao longo de 15 anos reduziu mais de 70% do número de homicídios e não há precedentes no Brasil de uma situação como essa. Houve aí uma combinação de dois fatores. Houve uma melhoria da atuação das polícias e do sistema prisional nesse período, e a impunidade, na questão dos homicídios, diminuiu em São Paulo, principalmente entre 2000 e 2007, porque houve planejamento estratégico, investimento na polícia, aumento na prisão de homicidas, fortalecimento na investigação de homicídios; então, matar começou a ficar custoso em São Paulo.
Do mesmo modo, a repressão ao uso de arma de fogo também foi grande no estado e isso inibiu o tráfico e a criminalidade. Por outro lado, paralelamente, o PCC começou a dominar mais a periferia e impôs uma regra de não violência, de solução negociada dos conflitos, e ficou determinado que matar só seria algo a ser feito em última instância. Essa moralidade do PCC certamente impactou, e muito, na redução dos homicídios em função do tráfico de drogas. Os dois fatores juntos, ao longo do tempo, explicam esse resultado tão impressionante de São Paulo.
IHU On-Line – São Paulo também investiu mais em encarceramentos. Quais as consequências da aposta neste tipo de direção?
Luis Flávio Sapori – Aprisionar por aprisionar não resolve a situação. Não adianta ter pura e simplesmente uma política de encarceramento, por exemplo, com uma meta de aumentar o número de prisões de traficantes porque isso reduzirá o número da violência no Brasil. Isso não tem resultado, porque a prisão de traficantes significa que outros tomarão o lugar deles, então ações como essas têm se mostrado muito ineficazes para reduzir a violência entre os jovens. Mas a prisão também não pode ser descartada e ser simplesmente abandonada; ela não é a solução, não é uma condição suficiente para resolver e reduzir a violência no Brasil, mas ela é necessária. A punição eficaz é fundamental para reduzir a violência, principalmente nos casos de homicídios e assaltos, e é fundamental também para inibir que alguns adolescentes entrem no mundo do crime. O adolescente tem que perceber que se ele adentrar no mundo do crime, o risco de ele ser preso, processado e condenado é grande; isso é fundamental em uma sociedade civilizada e esse caminho o Brasil também deve percorrer.
A impunidade no país é muito elevada. O que não significa que a polícia tem que fazer justiça com as próprias mãos, pois, ao fazer isso, a polícia está complicando mais o problema ao invés de solucioná-lo. É um desafio fazer com que a polícia trabalhe melhor, de modo mais eficiente e que o sistema socioeducativo e prisional também tenha o mínimo de dignidade para abrigar o criminoso, mas que a prisão é necessária, ela é, indiscutivelmente.
|
"Se São Paulo reduziu o número de homicídios, por outro lado, criou o PCC e deixou esse legado" |
IHU On-Line – Por que o crime ainda tem um poder tão grande a ponto de o PCC exercer uma influência fundamental, inclusive, na própria regulação do crime?
Luis Flávio Sapori – Porque essa organização surgiu há 23 anos e se fortaleceu, não foi destituída e, com o crescimento da população carcerária, se expandiu ainda mais, porque é muito poderosa dentro das prisões e se tornou poderosa também fora das prisões, como se fosse uma máfia, se pudéssemos fazer uma comparação. É uma organização criminosa que tem uma estrutura ágil e atua como um poder paralelo. Se São Paulo reduziu o número de homicídios, por outro lado, criou o PCC e deixou esse legado. Ainda não temos clareza de como o PCC quer se expandir no território nacional; há indícios de que ele não quer se limitar apenas à fronteira de São Paulo e hoje a presença do PCC no Paraná é muito grande. Então, esse é um grande problema para o Brasil e para o estado de direito. Uma sociedade que quer ser justa não pode ficar convivendo com uma estrutura criminosa que é tão forte. Esse é um desafio permanente daqui para frente.
IHU On-Line – Existem propostas de como desestruturar uma organização como essa?
Luis Flávio Sapori – Não é tão simples. Nem os europeus e os americanos conseguiram acabar com as máfias e elas continuam existindo mesmo nos países mais civilizados. Não podemos ter a ilusão de que vamos acabar com o crime organizado no Brasil. Mas também não se pode achar que é possível deixá-lo crescer. Para que ele não cresça e se fortaleça ainda mais, o governo federal tem que coordenar um grande esforço nacional; temos que ter uma força-tarefa coordenada no âmbito federal, envolvendo polícia federal, governos estaduais, Ministério Público, no sentido de ter uma ação de inteligência constante contra o PCC. Esse grupo de trabalho já deveria ter sido montado há muito tempo. Não dá para esperar que cada governador faça o seu trabalho; isso tem de ser feito no âmbito do Ministério da Justiça.
Por Patricia Fachin
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A violência brasileira não é mais produto da miséria e da pobreza; tem origem na fragilidade moral da sociedade. Entrevista especial com Luis Flávio Sapori - Instituto Humanitas Unisinos - IHU