08 Junho 2016
“Em tempos de eleições municipais, o design pode ser uma importante ferramenta para democratizar a democracia”, afirma a pesquisadora.
Foto: Coletivo Projetação / UniNômade |
Formada em Design, atualmente Barbara Szaniecki pesquisa a relação entre autonomia política e ativismo estético, a fim de analisar como essas duas áreas se relacionam na conjuntura atual. Segundo ela, “experimentações estético-políticas” têm surgido das manifestações dos últimos anos, a exemplo de coletivos, como o “coletivo Projetação”, que “foi um de seus expoentes e teve sucesso imediato pela maneira como permitia, por meio de projeções, uma recepção visual coletiva dos dizeres individuais”.
Para ela, “‘Amar é a Maré Amarildo’ foi uma imagem emblemática da formação de uma imensa comunidade sensível a partir da tortura e morte do pedreiro Amarildo por policiais da UPP da Rocinha e do assassinato de uma dezena de pessoas na Maré”. A partir dessa imagem, menciona, “uma subjetividade monstruosa conectou a cidade de ponta a ponta. Muitos outros coletivos surgiram no contexto da arte e da cultura, mas as experimentações estético-políticas certamente os extrapolaram”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Barbara também comenta as contribuições que o design pode oferecer para sair da crise de representação política a partir do “design de participação cidadã, onde o designer, numa postura menos autoral (e às vezes autoritária) deixa de tomar todas as decisões para participar dos processos decisórios, com seus skills específicos, junto com parceiros. Talvez a representação política possa se inspirar nessa transformação para a sua própria reformulação. Em tempos de eleições municipais, o design pode ser uma importante ferramenta para democratizar a democracia”, conclui.
Barbara Szaniecki estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na noite de hoje, 08-06-2016, ministrando a palestra Autonomismo político e ativismo estético: o design nas metrópoles contemporâneas, às 19h30min. A palestra integra o 3º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum.
Igualmente na tarde de hoje, quarta-feira, ela proferirá a conferência Tempos Múltiplos e multiformances: resistências a partir de Gilles Deleuze a Antonio Negri. A atividade, na Sala Ignacio Ellacuría e companheiros, será às 14hh30min com o término previsto às 17h.
Barbara Szaniecki é professora na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. É graduada em Comunicação Visual pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs (França), mestra e doutora em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Atualmente é coeditora das revistas Lugar Comum, Multitudes e Redobra. É autora dos livros Estética da Multidão (editora Civilização Brasileira, 2007) e Disforme Contemporâneo e Design Encarnado: Outros Monstros Possíveis (editora Annablume, 2014).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Desde a nossa última entrevista, em 2013, algo mudou em relação à estética das manifestações que vêm ocorrendo no país, considerando que surgiram diversas novas manifestações nos últimos três anos?
Foto: Jenifer Magri / Unibrasil.com.br
Barbara Szaniecki - Em 2013, teve início uma série de manifestações multitudinárias. A faísca foi o protesto contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, mas muito rapidamente ela se alastrou por outras capitais e arrastou outras demandas.
Eram muitas as demandas, pois eram muitos os atores envolvidos: não massa, e sim multidão entendida como articulação de singularidades articuladas em um comum.
Eram muitas as demandas, mas elas não apenas compartilhavam o desejo comum de uma política menos representativa e mais participativa, como também compartilhavam uma forte concretude por estarem atreladas ao difícil cotidiano da população nos centros urbanos: transportes urbanos ineficientes, saúde e educação indignas dos cidadãos.
Nesse momento, 2013, o caráter multitudinário das manifestações era de fato visível a olho nu. Sua estética – no sentido do meramente visível – era a da pluralidade de corpos, cores, vozes, slogans, cartazes, faixas, desejos que ganhavam consistência mais do que organização. Foi a multiplicidade de atores e expressões, muito diferente da unidade das manifestações tradicionais, que me levou a chamá-las de multiformances. E foi essa falta de organização que as levou a serem consideradas perigosas por todo o espectro político.
De 2013 a 2016
2013 foi um monstro que a agenda política de 2014 – da realização de Copa do Mundo em 12 capitais até as eleições no país – procurou domar. A partir da agenda, entrou em cena a binarização. Ao #NãoVaiTerCopa da multidão, o governo lançou como resposta o #NãoVaiTerProtesto. O “nós” contra “eles” veio na sequência com base numa ideologização sem relação com demandas concretas. Com efeito, alianças entre partidos com vistas à própria reprodução enquanto casta no poder e sem comprometimento com as reivindicações populares eram justificadas com o mote “a esquerda” contra “a direita”.
Este conflito estava posto e presente, não há como negar, mas a polarização ideológica contrastava fortemente com o pragmatismo político que vinha sendo adotado pelos governos em todos os níveis e, de modo particular, aqui no Rio de Janeiro, onde a aliança PMDB com PT gerou uma gentrificação da cidade – gentrificação das comunidades e áreas populares com remoções, gentrificação da cultura com a museificação e gentrificação do lazer com um Maracanã inacessível à população –, que dificilmente poderia ser tida como “de esquerda”.
A polarização foi sendo acirrada ao longo de meses, nas ruas e nas redes, por meio da repressão, da criminalização e da manipulação. A monstruosa subjetividade gestada pelas manifestações, prenhe de nuances e ambiguidades, foi levada paulatinamente ao mais subserviente dos alinhamentos psicopolíticos. Foi ele quem ganhou as ruas em 2015. No lugar da multidão multicolorida e sem bandeiras partidárias, surgiu, por um lado, o bloco verde e amarelo organizado por movimentos como MBL e Vem Pra Rua, assim como partidos de oposição, e, por outro lado, o bloco vermelho organizado por movimentos como MST e MTST, centrais sindicais e partidos da base aliada do governo. A polarização ganhou expressão máxima ao longo da votação do processo do impeachment da presidente Dilma.
Contudo, para além dessa estética mais evidente, mais imediatamente visível, outras possibilidades estéticas surgiam. De certa forma, foi a própria crise da representação originada pelo afastamento da classe política de bases sociais e de suas demandas concretas que suscitou outras estéticas. Da crise da representação política, mas não apenas dela, surgiu algo como um desejo por uma outra partilha do sensível por meio da construção, ou melhor, da mobilização de comunidades sensíveis.
"2013 foi um monstro que a agenda política de 2014 – da realização de Copa do Mundo em 12 capitais até as eleições no país – procurou domar" |
IHU On-Line - Em que se diferencia a estética das manifestações contra e pró-governo e as manifestações em relação à gestão das cidades, por exemplo? Quais são os expoentes das diferentes manifestações que estão ocorrendo no espaço urbano hoje e a que atribui esse fenômeno de novas manifestações?
Barbara Szaniecki - Como eu dizia antes, a polarização partidária-política se refletiu no verde-amarelo de um lado e vermelho de outro e, sobretudo, na cobrança de um alinhamento ao invés do incentivo a traçar outras linhas, linhas de luta, linhas de fuga. A própria recusa a participar da binarização – apoio versus acusação ao governo – foi patrulhada e desqualificada como “isenção” quando é, na realidade, crítica à representação política. Se crise é oportunidade, a oportunidade só pode vir da prospecção dos possíveis para além da dicotomia presente. Jacques Rancière [1] diria que se trata do momento oportuno para a emergência de comunidades sensíveis.
Manifestações são essenciais para as lutas, mas em um momento em que toda expressão política é direta ou indiretamente manipulada não apenas pela grande mídia, como também pela blogosfera e pelas redes sociais – manipulações de manipulações de manipulações –, experimentações políticas a partir de novas partilhas do sensível se mostram necessárias. No lugar da adesão acrítica, surgem inquietações rancerianas: quem é e quem não é visível na cidade? Quem pode e quem não pode tomar parte da política? Qual é a parte dos sem parte na política representativa?
Evidentemente, algumas experimentações estético-políticas nasceram imediatamente no contexto artístico e cultural. Alguns coletivos emergiram diretamente das manifestações. O coletivo Projetação foi um de seus expoentes e teve sucesso imediato pela maneira como permitia, por meio de projeções, uma recepção visual coletiva dos dizeres individuais. “Amar é a Maré Amarildo” foi uma imagem emblemática da formação de uma imensa comunidade sensível a partir da tortura e morte do pedreiro Amarildo por policiais da UPP da Rocinha e do assassinato de uma dezena de pessoas na Maré. Uma subjetividade monstruosa conectou a cidade de ponta a ponta. Muitos outros coletivos surgiram no contexto da arte e da cultura, mas as experimentações estético-políticas certamente os extrapolaram.
Apesar de sua potência, o ciclo de manifestações não resistiu à manipulação e à mentira que o ciclo eleitoral impunha. O desejo de fazer política por outros meios parecia definhar, mas ressurgiu em outras formas, algumas delas inspiradas pelos movimentos que emergiram do 15M na Espanha, se articularam em torno ao partido Podemos e, sobretudo, em torno de candidaturas cidadãs. Elas obtiveram importantes vitórias eleitorais em 2015, com Ada Colau na prefeitura de Barcelona e com Manuela Carmena na Prefeitura de Madri. Não deixemos de notar que as suas campanhas eleitorais se desdobraram em expressões criativas fora dos cânones do marketing eleitoral. E não deixemos de afirmar a importância desse sucesso aqui no Brasil onde certos movimentos sociais se deixaram cooptar pelos governos da última década e parte do ativismo de 2013-2014 passou a recusar qualquer experimentação partidária e mesmo qualquer tentativa de constituição de cidadania que não fosse por meio de manifestações. Algumas assembleias resistiram.
Novas plataformas
Apesar dessas dificuldades e divergências, ao longo de 2015 formaram-se plataformas visando eleições, tais como Cidade que Queremos, e também comunidades com diferentes finalidades ou com finalidades construídas nos encontros, tais como os Círculos de Cidadania. Em alguns casos, trata-se de iniciativa de vizinhança para compartilhar vivências num bairro (como, por exemplo, o Círculo de Cidadania do Bairro de Fátima e Vizinhança), em outros, de associação de trabalhadores para defender direitos em tempos de conflito com seus próprios sindicatos (como, por exemplo, o Círculo Laranja constituído por garis da Comlurb que foram exonerados depois da greve de 2014). Existem certamente diferentes possibilidades de articulação entre política participativa e política representativa, apesar da tensão entre suas temporalidades.
As acampadas espanholas e o occupy americano também seguiram sendo fonte de inspiração e, recentemente, irromperam inúmeras ocupações de escola em várias cidades brasileiras. São elas as “novas manifestações” no espaço urbano. Talvez nem sejam tão novas assim se considerarmos que nossas “ocupações” – em suas diferentes configurações: dos assentamentos informais das periferias às favelas, passando pelas ocupações de prédios públicos em centros urbanos ou de terras em zonas rurais – são históricas. Em todo caso, são as ocupações mais do que as manifestações que, hoje, melhor expressam as demandas da população. Por quê? Talvez porque as ocupações exigem uma participação cotidiana, típica do tempo ordinário e atrelada às demandas da comunidade em contínua formação, no caso, a dos estudantes “ocupantes”, mas não apenas; enquanto as manifestações, pela efemeridade e extraordinariedade de seus laços, nem sempre alcançam a consistência e a articulação necessária à transformação.
IHU On-Line - O que entende pelos conceitos tempos múltiplos, multiformances e resistências em Gilles Deleuze e Antonio Negri? Como eles se relacionam e por que eles são importantes e atuais para os dias de hoje?
Barbara Szaniecki - Com ocupações ordinárias e manifestações extraordinárias chegamos aos tempos múltiplos. As multiformances não podem ser entendidas apenas pela multiplicidade de seus atores – não mais uma classe trabalhadora unificada e sim “classes” que se constituem em suas próprias manifestações e lutas. Faz-se necessário também entender a multiplicidade do seu tempo. O tempo das multiformances não é uno, ele se desdobra em diferentes dimensões e direções. Muito sinteticamente, cronos é o tempo cronológico, dos cronogramas, do cotidiano; aion é o tempo dos acontecimentos, das possibilidades em aberto; e Kayròs é o tempo do momento, da oportunidade a ser colhida para ser atualizada.
As leituras de Negri [2], Deleuze [3] e Guattari [4], Pelbart [5] me ajudaram a ver os tempos múltiplos com que as multiformances literalmente jogavam. Com as jornadas de junho de 2013, elas constituíram linhas de subjetivação que se subtraíam ao tempo cronológico dominante (as pessoas deixavam suas atividades cotidianas e corriam à manifestação), se subtraíam às relações de força estabelecidas e abriam planos de acontecimentos! Contudo, aos poucos, de 2013 a 2016, esses potentes processos vêm se fechando. Linhas de visibilidade, de enunciação, de subjetivação... todas elas passaram a correr retas, sem curvas ou nuances, em direções ideologicamente opostas ao mesmo tempo que identitariamente unitárias e unívocas, sem movimento. Quando forças tentavam um movimento alternativo ou um traçado experimental, quando procuravam se descolar do alinhamento uniforme, eram isoladas. Ou quando ensaiavam apontar a incongruência sempre maior entre os discursos e as práticas, eram afastadas. Fragmentadas, não conseguiram desde então se rearticular para romper com as linhas de força hegemônicas. Cronos retomou as rédeas do tempo, e os potentes acontecimentos que vivenciamos nos parecem a cada dia mais distantes.
Em seu livro Revoluções do Capitalismo, Maurizio Lazzarato [6] analisa “acontecimentos” como o de Paris em 1968 e o de Seatlle em 1999, entre outros. O acontecimento que trago aqui é o de Junho 2013. Afastando-se das filosofias do sujeito, da sociologia e da economia política e inspirado em Leibniz [7], Bergson [8] e Deleuze, Lazzarato afirma que a filosofia do acontecimento define um processo de constituição do mundo e da subjetividade que não parte do sujeito e do trabalho, e sim do acontecimento. O acontecimento é um dos pilares da filosofia de Deleuze. Para ele, o mundo é constituído de uma multiplicidade de relações e acontecimentos, que criam possíveis. Os possíveis não existem a priori (como na filosofia de Leibniz), eles não estão dados, eles não existem fora daquilo que os exprimem. São signos, linguagens, gestos que constituem agenciamentos coletivos de enunciação tais como as Multiformances e devem atualizar-se nos agenciamentos maquínicos dos corpos.
Deleuze faz uma importante distinção de inspiração Bergsoniana entre o par “possível-realização” e o par “possíveis-atualização”. Qual é a diferença? Lazzarato explica que, no par “possível-realização”, a divisão de possíveis é dada na forma de oposições binárias tais como homem-mulher, capital-trabalho, natureza-sociedade, trabalho-lazer, adulto-criança e intelectual-manual. A elas pode-se acrescentar esquerda-direita. Todas as nossas percepções e papéis já estariam contidas nos limites dessas oposições dicotômicas. Isto significa que temos a priori uma imagem do real que, a posteriori, apenas precisa ser realizada. A passagem do possível ao real se reduz à realização de algo já existente no plano das ideias e, portanto, sua realização nada traz de novo.
Já no par “possíveis-atualização”, o possível não mais orienta o pensamento e a ação de acordo com as oposições binárias preconcebidas, muito pelo contrário, o possível precisa ser criado. Lazzarato prossegue afirmando que “esse novo ‘campo de possíveis’ traz consigo uma nova distribuição de potencialidades, desloca as oposições binárias e expressa novas possibilidades de vida.” Os dois “regimes de possível” se encontram absolutamente imbricados em todo conflito político e isto é absolutamente visível naquele que estamos vivendo.
Há um conflito permanente entre política subjacente às oposições já dadas e política como recusa de qualquer prévia atribuição de percepções, funções e, por que não, afetos. O autor complementa suas considerações afirmando que o movimento operário e a tradição marxista organizaram o conflito neutralizando esse segundo regime do possível enquanto “os movimentos políticos pós-socialistas destroem esse esquema (marxista) e, sem perder de vista as alternativas atualizadas (homem-mulher, capital-trabalho, natureza-sociedade, trabalho-lazer, adulto-criança e intelectual-manual... e eu volto a acrescentar esquerda-direita) que geralmente estão na origem das lutas, subordinam a ação à criação de uma bifurcação, de um desvio, de um estado de instabilidade que, ao suspender ou neutralizar as oposições binárias, abre um novo campo de possíveis.” Conclui então que “a efetuação de possíveis é, ao mesmo, um processo imprevisível, aberto e arriscado” e retorna a seu exemplo de Seattle. Nós retornamos ao nosso junho de 2013: que acontecimento! Uma enorme abertura de possíveis e, no entanto, nada ou pouco foi atualizado. Sigo me perguntando o porquê.
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"Junho de 2013: que acontecimento! Uma enorme abertura de possíveis e, no entanto, nada ou pouco foi atualizado" |
IHU On-Line - Como vê o ativismo estético hoje no Brasil? Quem promove ou participa do ativismo estético hoje no país? Que relações estabelece entre ativismo estético e autonomia política?
Barbara Szaniecki - Uma enorme abertura de possíveis, mas ínfimas atualizações. A crise da representação política se torna sempre maior, ao passo que a participação cidadã, sempre menor. Os possíveis abertos por junho de 2013 não se atualizaram, mas também o modelo de desenvolvimento baseado numa aceleração jamais vista na história do país – representada pelas megaobras realizadas pelo PAC, entre outros programas – não deu os frutos esperados, muito pelo contrário, vivemos hoje uma crise que não é somente política, como também econômica, social e ética.
O projeto de aceleração do crescimento que teve em Belo Monte seu paradigma e que tem se revelado projeto de permanência no poder foi sustentado, nos últimos anos, sobre a aliança entre um partido erguido sobre bases populares e promotor de importantes e necessárias transformações sociais e um partido que representa o “atraso” do país por conta de seu clientelismo, fisiologismo, patrimonialismo e conservadorismo. Que ativismo estético é possível neste quadro?
Não tenho uma resposta global. Para além das análises das manifestações e ocupações, tenho me concentrado num “ativismo estético” num sentido muito preciso. Lembremos das considerações de Jacques Rancière sobre a partilha do sensível e das possibilidades de mobilização de comunidades sensíveis. Do campo do design que é onde atuo, podemos mencionar as comunidades criativas tal como conceituadas por Ezio Manzini [9]. Enquanto nas comunidades sensíveis de Rancière é posta a questão da autonomia estética, nas comunidades criativas de Manzini é formulada uma função estratégica para o design. É fato que o design tem sido chamado a cumprir uma função estratégica no Rio de Janeiro, mas creio que não devemos absolutamente nos restringir a ela, muito pelo contrário, o momento demanda toda uma gama de atuações. No seio do Laboratório de Design e Antropologia (Esdi/UERJ), junto com minha colega professora e pesquisadora Zoy Anastassakis, tenho procurado atender a demandas e parcerias – entre elas a de ONGs como a Agência Rede para a Juventude e a de organizações como o Sebrae, além das colaborações com outras unidades universitárias – fazendo delas oportunidades de pesquisas e práticas na cidade.
A cidade é tradicionalmente o espaço privilegiado de estudo e de intervenção dos arquitetos e dos urbanistas. Contudo, nos últimos anos, designers têm sido chamados a intervir na cidade como também têm, eles próprios, se interessado por novos modos de atuação urbana ainda que esses termos assustem. Por um lado, a “criatividade” tem sido cada vez mais convocada para a revitalização de áreas tidas como deterioradas, como a área portuária e o centro da cidade, por meio do incentivo à criação de “distritos criativos” e “ocupações criativas”, e também para o desenvolvimento das novas fronteiras da metrópole, como as favelas e, em particular, as ditas “comunidades pacificadas”.
Todas essas ações se inserem na dita “economia criativa”. Todas elas, relacionadas não apenas à ideia de “projeto”, como também da ideia mais contemporânea de “criatividade”, dizem muito sobre nossos tempos – tempos que não sei se são pós-modernos, mas talvez menos modernos – e interpela diretamente o designer na medida em que o design seria um dos “motores” da tal da criatividade.
Por outro lado, esse interesse pela cidade vem dos próprios designers que desejam expandir sua atuação da comunicação visual e do produto industrial ao contexto urbano. Contudo, a expansão do design à cidade não significa necessariamente uma ampliação de escala, do menor ao maior. Muito pelo contrário, essa atuação pode privilegiar uma outra percepção de projeto que valorize os processos participativos e os possíveis (no sentido apontado por Lazzarato) desses territórios-tempos urbanos.
Se as multiformances nos permitiram apreender os múltiplos tempos, o design nos permite analisar as complexas relações entre tempos e territórios. É a partir delas que Michel de Certeau [11] diferencia estratégias e táticas, e com ele seguimos o sentido de nossa atuação com design. Para o autor, a estratégia nasce da delimitação de um lugar definido como próprio por parte de um sujeito de querer ou poder. A partir desse lugar, o sujeito (De Certeau menciona como sujeitos empresa, exército, cidade, instituição científica) pode fazer a gestão das relações com uma exterioridade sempre definida como alvo ou ameaça (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o rural no entorno da cidade, os objetivos e os objetos de pesquisa). Paradoxalmente, é por ver o mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro que a “racionalização estratégica” – típica da modernidade científica, política e militar – precisa circunscrever o seu “próprio”.
Já a tática é a ação que a ausência de um “lugar próprio” determina. A tática só tem como lugar aquele do Outro. Assim, ela deve aprender a agir e se movimentar no espaço organizado e controlado por outrem e, portanto, tirar proveito das “ocasiões” (kayros) ou falhas que as conjunturas particulares abrem na vigilância do poder proprietário, sem jamais ter a possibilidade de um projeto global. “Ela é astúcia. Em suma, é a arte do fraco”, conclui De Certeau.
Uma vez cientes dos diferentes tempos e territórios que constituem a cidade do Rio de Janeiro – cujos conflitos recentes que aqui descrevemos vêm somar aos conflitos tradicionais – como atuar com design? Quando atender a demandas estratégicas de desenvolvimento de um território do qual a população sequer foi consultada e quando subverter as estratégias por meio de táticas? Quem decide o jogo?
Autonomia política e ativismo estético
Aqui chegamos (ou voltamos) à relação da autonomia política e o ativismo estético – e eu fiz a passagem da análise das multiformances à atuação com design. Na autonomia italiana, referência política de alguns dos autores aqui mencionados, autonomia política não é entendida como constituição de uma esfera separada da política – e cujos efeitos hoje vivemos dramaticamente – e sim como capacidade de constituir acordos e tomar decisões a partir de seus próprios processos e participações, de uma cidadania imanente. Em Malaise de L’Esthétique, Jacques Rancière debate o dilema da arte entre autonomia entendida como o estabelecimento de uma esfera específica da arte (da arquitetura e também do design) que encantou os modernistas e autonomia como expressão de uma comunidade que não separa a arte da política e da vida cotidiana. Autonomia política e ativismo estético se encontram em projetos que levem em conta os processos dos quais participam parceiros, partes interessadas e designers, entre outros projetistas. Juntos eles constroem ou, como tenho preferido numa pegada menos vanguardista, mobilizam comunidades sensíveis ou, mais especificamente, criativas. E aqui chegamos também à íntima relação entre design e democracia.
"Autonomia política e ativismo estético se encontram em projetos que levem em conta os processos dos quais participam parceiros, partes interessadas e designers, entre outros projetistas" |
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Barbara Szaniecki - Sim, gostaria de acrescentar sobre essa relação entre design e democracia. Ao longo da entrevista comentamos o momento político que estamos vivendo. Em que o design pode contribuir para sair da crise de representação? De certa forma, com a pós-industrialização – ou no caso do Brasil uma industrialização que sequer se generalizou –, o campo do design também viveu uma crise do projeto, mas encontrou outras formas de atuação: o design de serviços e o de gestão são os mais lembrados, mas eu mencionaria o design de participação cidadã (na ausência de melhores termos, é o que temos realizado no LaDA, em parte inspirado por uma cooperação com o laboratório CODE/KADK da Dinamarca) onde o designer, numa postura menos autoral (e às vezes autoritária) deixa de tomar todas as decisões para participar dos processos decisórios, com seus skills específicos, junto com parceiros. Talvez a representação política possa se inspirar nessa transformação para a sua própria reformulação. Em tempos de eleições municipais, o design pode ser uma importante ferramenta para democratizar a democracia.
Por Patricia Fachin
Notas:
[1] Jacques Rancière (1940): filósofo argelino, professor na universidade de Paris 8. Pensa a história, a sociedade, os movimentos políticos ou o cinema. É colaborador frequente da lendária revista Cahiers du Cinéma - de forma a apresentar ao seu leitor e ouvinte um novo contexto e, como consequência, uma nova possibilidade para se entender a cultura, o poder ou a força das ideologias. Um dos colaboradores do pensador Louis Althusser no volume Lire le Capital (Ler o Capital). É o autor de Os nomes da história - Um ensaio de poética do saber (Educ), Políticas da escrita, O desentendimento: política e filosofia (ambos pela ed. 34) e O mestre ignorante (ed. Autêntica), entre outras obras. Esteve no Brasil em 2005, quando participou do Congresso Internacional do Medo, que aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro. (Nota da IHU On-Line)
[2] Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000 publicou o livro-manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com Michael Hardt. Em seguida, publicou Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005), também com Michael Hardt – sobre esta obra, publicamos um artigo de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. O último livro da “trilogia” entre os dois autores, Commonwealth (USA: First Harvard University Press paperback, 2011), ainda não foi publicado em português. (Nota da IHU On-Line)
[3] Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos, singularidades, conceitos que nos impelem a transformar a nós mesmos, incitando-nos a produzir espaços de criação e de produção de acontecimentos-outros. (Nota da IHU On-Line)
[4] Pierre-Félix Guattari (1930-1992): filósofo e militante revolucionário francês. Colaborou durante muitos anos com Gilles Deleuze, escrevendo com este, entre outros, os livros Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia e O que é Filosofia?. Félix Guattari, dotado de um estilo literário incomparável, é, de longe, um dos maiores inventores conceituais do final do século XX. Esquizoanálise, transversalidade, ecosofia, caosmose, entre outros, são alguns dos conceitos criados e desenvolvidos pelo autor. (Nota da IHU On-Line)
[5] Peter Pál Pelbart (1956): filósofo úngaro, ensaísta, professor e tradutor húngaro, residente no Brasil. Graduado em Filosofia pela Universidade Paris IV, é mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, doutor em Filosofia, pela USP. Vive na cidade de São Paulo, onde é professor da PUC-SP e coordena a Companhia Teatral Ueinzz, formada por pacientes psiquiátricos do hospital-dia A Casa. É professor no Departamento de Filosofia e no Núcleo de Estudos da Subjetividade de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. (Nota da IHU On-Line)
[6] Maurizio Lazzarato: sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris, onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. É um dos fundadores da revista Multitudes. O IHU já publicou uma série de textos e entrevistas com Maurizio Lazzarato, entre elas: O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte. Entrevista com Maurizio Lazzarato publicada na IHU On-Line, edição 468, de 29-06-2015; Subverter a máquina da dívida infinita. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 02-06-2012, no sítio do IHU; "Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo". Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 05-01-2011, no sítio do IHU; "Os críticos do Bolsa Família deveriam ler Foucault..." Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 15-12-2006, no sítio do IHU; Capitalismo cognitivo e trabalho imaterial. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU; As Revoluções do Capitalismo. Um novo livro de Maurizio Lazzarato. Reportagem publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU. (Nota da IHU On-Line)
[7] Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716): filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão. O uso de "função" como um termo matemático foi iniciado por Leibniz, numa carta de 1694, para designar uma quantidade relacionada a uma curva, tal como a sua inclinação em um ponto específico. É creditado a Leibniz e a Newton o desenvolvimento do cálculo moderno, em particular o desenvolvimento da integral e da regra do produto. Descreveu o primeiro sistema de numeração binário moderno (1705), tal como o sistema numérico binário utilizado nos dias de hoje. Demonstrou genialidade também nos campos da lei, religião, política, história, literatura, lógica, metafísica e filosofia. (Nota da IHU On-Line)
[8] Henri Bergson (1859-1941): filósofo e escritor francês. Conhecido principalmente por Matière et mémoire e L'Évolution créatrice, sua obra é de grande atualidade e tem sido estudada em diferentes disciplinas, como cinema, literatura, neuropsicologia. Sobre esse autor, confira a edição 237 da IHU On-Line, de 24-09-2007, A evolução criadora, de Henri Bergson. Sua atualidade cem anos depois. (Nota da IHU On-Line)
[9] Ezio Manzini: é designer, engenheiro, arquiteto e professor italiano. Atualmente, Manzini é responsável pelo Sustainable Everyday Project (SEP), uma plataforma web que reúne informações sobre pesquisas, workshops, projetos e atividades relacionados à promoção do design sustentável na vida cotidiana. (Nota da IHU On-Line)
[10] Zoy Anastassakis: graduada em Desenho Industrial pela Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1999). Mestra em Antropologia Social pelo PPGAS-Museu Nacional-UFRJ, com a dissertação "Dentro e fora da política oficial de preservação do patrimônio cultural no Brasil: Aloisio Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural". Doutora pelo PPGAS-Museu Nacional-UFRJ, com a tese "Triunfos e impasses: Lina Bo Bardi, Aloisio Magalhães e a institucionalização do design no Brasil". Professora Adjunta da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ESDI/UERJ), onde coordena o Laboratório de Design e Antropologia (LaDA). Pesquisadora FAPERJ. Diretora da Escola Superior de Desenho Industrial, no período de 2016 a 2019. (Nota da IHU On-Line)
[11] Michel de Certeau (Chambéry, França, 1925 - Paris, 9 de janeiro de 1986): foi um historiador e erudito francês que se dedicou ao estudo da psicanálise, filosofia e ciências sociais. Intelectual jesuíta é autor de inúmeras obras fundamentais sobre a religião, a história e o misticismo dos séculos XVI e XVII. Michel de Certeau nasceu em 1925, em Chambéry, na Savoia (França). Depois de obter o diploma em filosofia, com um caminho de estudos itinerante entre a Universidade de Grenoble, a de Lyon e a de Paris, seguiu uma primeira formação religiosa no seminário de Lyon. Entrou ali em 1950, na Ordem dos Jesuítas em que fez os votos em 1956; queria ser enviado como missionário para a China. Leia também Michel De Certeau, o pensador jesuíta citado pelo papa no seu discurso sobre a liberdade religiosa, nota publicada nas Notícias do Dia, de 28-09-2015; Vivemos num mundo sujeito «à globalização do paradigma tecnocrático», critica Francisco no Independence Mall, reportagem publicada nas Notícias do Dia, de 28-09-2015. (Nota da IHU On-Line)
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Autonomia política e ativismo estético: outras formas de pensar a representação política. Entrevista especial com Barbara Szaniecki - Instituto Humanitas Unisinos - IHU