12 Junho 2016
"O Papa Francisco deixa claro que a misericórdia vai além da vida interna da Igreja e pode e deve se tornar uma virtude política que molde, por exemplo, também as relações internacionais", aponta o historiador.
Foto: www.novosite.ssps.org.br |
Para Faggioli, o mote do Jubileu da Misericórdia é a abertura para o acolhimento, o que o Papa enfatiza como a “Igreja em saída”, que se fundamenta na misericórdia e busca desconstruir a imagem de julgadora, a qual, conforme o historiador, foi intensificada principalmente durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI. “O Papa Francisco estabelece uma conexão clara entre o Vaticano II e o Jubileu da Misericórdia, e é fiel à ideia de João XXIII de que o tesouro da Igreja reside no Evangelho, e não em uma determinada cultura católica ou em uma determinada ideia católica do passado”, aponta.
Massimo Faggioli é doutor em História da Religião e professor de História do Cristianismo no Departamento de Teologia da University of St. Thomas, de Minnesota, Estados Unidos. Entre sua vasta lista de publicações destacamos Vaticano II: A luta pelo sentido (São Paulo: Paulinas, 2013); True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Collegeville: Liturgical Press, 2012); e, em espanhol, Historia y evolución de los movimientos católicos. De León XIII a Benedicto XVI (Madrid: PPC Editorial, 2011).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - A partir do livro-entrevista do Papa Francisco [1], em que medida a misericórdia se configura numa operação estritamente eclesiástica, ou ela pode ser entendida mais amplamente?
Faggioli durante sua participação no Colóquio
Concílio Vaticano II, em 2015, na Unisinos.
Foto: João Vitor Santos / IHU
Massimo Faggioli - Ela certamente deve ser entendida mais amplamente. O Papa Francisco deixa claro que a misericórdia vai além da vida interna da Igreja e pode e deve se tornar uma virtude política que molde, por exemplo, também as relações internacionais. Neste sentido, a relação entre misericórdia e justiça fica evidente: a tentativa de restaurar a paz em situações de conflito exige justiça, mas também um senso de misericórdia. O interessante é que Francisco está mostrando que também nossas sociedades seculares se baseiam em uma porção mínima de misericórdia que torna as relações humanas toleráveis (ao menos). Neste sentido, o jubileu tem uma importância não só ecumênica e inter-religiosa, mas também política.
IHU On-Line - O teólogo Vito Mancuso escreveu, em artigo publicado no La Repubblica, que “se o nome de Deus, de fato, é misericórdia, só quem precisa de misericórdia, isto é, o pecador, pode encontrá-la” [2]. A partir desse horizonte, qual é o sentido do pecado em nossos dias?
Massimo Faggioli - Muitas vezes se diz, corretamente, que em nossa época perdemos o sentido do pecado. O que muitas vezes se deixa de perceber é que trocamos o pecado (que deve ser contrabalançado com a misericórdia de Deus) pela internalização de um profundo senso de culpa e angústia, para o qual não há cura eficaz em nossa cultura secular – a menos que aceitemos a ideia de viver em um mundo carente não só de senso moral, mas também carente de um senso da identidade própria. Francisco se engaja para nos fazer redescobrir o sentido do pecado, e neste sentido ele não é um católico liberal, mas um católico muito tradicional. O que é novo é a maneira como ele o está fazendo e a posição da Igreja nessa questão, que não é a de uma Igreja julgadora do pecado da cultura secular, mas de confessar abertamente seu próprio pecado.
IHU On-Line - E qual é o sentido da confissão em nosso tempo, marcado por inúmeros mecanismos de controle da subjetividade?
Massimo Faggioli - Acho que essa definição da confissão marcada pelo “controle” está um pouco ultrapassada, ao menos para a grande maioria do catolicismo atualmente. A confissão é um sacramento em profunda crise, mas eu não atribuiria essa crise a seu mecanismo ou sua vontade de controlar, e sim à nova subjetividade da pessoa humana moderna, que internalizou seus próprios mecanismos de controle – e esses sistemas autônomos, psicológicos de controle não são menos implacáveis e podem, com efeito, causar mais dano do que a confissão sacramental tradicional na Igreja. A redescoberta da confissão é uma tarefa enorme e tem a ver com muitos elementos: a identidade psicológica, o senso de pecado e misericórdia, a confiança que as pessoas têm (ou não têm) no clero e na Igreja.
"Francisco se engaja para nos fazer redescobrir o sentido do pecado" |
IHU On-Line - Tendo em vista os 50 anos do encerramento do Concílio Vaticano II, qual é a relevância e o motivo que inspiram o Jubileu da Misericórdia?
Massimo Faggioli - O mais importante motivo é a repetida ênfase que o Papa Francisco dá a uma Igreja de portas abertas, uma Igreja misericordiosa porque Deus é misericordioso. Trata-se claramente de uma tentativa de corrigir a percepção de uma Igreja julgadora que se tornou dominante durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Para muitas pessoas católicas, bem como não católicas, essa imagem da Igreja representou um passo para trás em relação à tentativa feita pelo Vaticano II de reconfigurar o estilo da Igreja de um modo mais dialógico. Neste sentido, o pontificado de Francisco é um momento de virada na história da recepção do Vaticano II.
IHU On-Line - João XXIII, na abertura do Concílio Vaticano II, disse que a Igreja preferia usar o remédio da misericórdia mais que a severidade e a condenação. Paulo VI, no encerramento do Concílio, afirmou que a espiritualidade do Vaticano II era a do bom samaritano. João Paulo II, em 1980, escreveu uma encíclica sobre a misericórdia (Dives in misericordia, Rico em misericórdia), inspirada em parte pela mística polonesa Faustina Kowalska. Bento XVI, em Deus é amor (2005), também aprofundou este tema. Poderia recuperar como cada um desses Papas contribuiu para aprofundar a cultura da misericórdia no mundo?
Massimo Faggioli - O Papa Francisco estabelece uma conexão clara entre o Vaticano II e o Jubileu da Misericórdia, e é fiel à ideia de João XXIII de que o tesouro da Igreja reside no Evangelho, e não em uma determinada cultura católica ou em uma determinada ideia católica do passado.
Paulo VI tinha uma ideia mais política da Igreja que encarna a misericórdia no mundo, e seu pontificado foi o real início da globalização da Igreja em uma direção progressista – progressista no sentido de acreditar que pode haver um progresso bom, um avanço na criação de condições mais humanas para todas as pessoas no mundo.
João Paulo II e Bento XVI tinham uma ênfase mais clara na ideia de cultura, tentando recriar uma cultura católica em um mundo multicultural: a ideia de misericórdia deles coincidia, em grande parte, com a misericórdia de dizer verdades duras à nossa cultura contemporânea. Mas, ao mesmo tempo, eles também tinham uma atitude de negação de muitas guinadas significativas e inevitáveis em nosso mundo e em nossa Igreja. Francisco está se conformando com essas mudanças, e ele encarna uma cultura católica particular, mas não há tentativa visível de impô-la à Igreja global. Neste sentido, a ideia de misericórdia do Papa Francisco faz parte da importância da ideia de “processo” em sua eclesiologia.
Por Márcia Junges | Edição Leslie Chaves | Tradução Luiz Sander
Notas:
[1] TORNIELLI, Andrea. O Nome de Deus é Misericórdia (São Paulo: Planeta, 2016). (Nota da IHU On-Line)
[2] Do infiel devoto à prostituta forçada: anedotas papais de misericórdia. Artigo de Vito Mancuso reproduzido nas Notícias do Dia, de 12-01-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em (Nota da IHU On-Line)
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"O tesouro da Igreja reside no Evangelho, e não em uma determinada cultura católica ou em uma determinada ideia católica do passado". Entrevista especial com Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU