30 Agosto 2012
“As mudanças aprovadas no novo Código Florestal atacam dois dos biomas brasileiros mais degradados pelo homem: a Caatinga e o Cerrado”, aponta o biólogo.
Confira a entrevista.
A aprovação da ementa do Código Florestal que põe fim às Áreas de Preservação Permanente – APPs em rios intermitentes “significa um retrocesso na legislação ambiental brasileira e representa uma ameaça para a integridade ecológica dos rios de forma geral, principalmente para o bioma da Caatinga, que concentra grande parte dos rios intermitentes brasileiros”, assinala o biólogo Elvio Sérgio Medeiros na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, a redução das APPs, além de contribuir para a degradação ambiental, agravará “o quadro socioeconômico da região, por contribuir com o aumento da escassez de água”.
Para ele, as mudanças propostas no texto do Código Florestal representam a “conjuntura econômica brasileira atual, onde a pressão por áreas cultiváveis, necessidade de lucro imediato e respostas a curto prazo para os mercados são prioridade em detrimento a opções menos imediatistas e mais sustentáveis, que permitiriam a manutenção a longo prazo dos recursos naturais e a disponibilização dos seus benefícios para gerações futuras”. E dispara: “O novo Código Florestal é um ataque e uma afronta aos biomas brasileiros, principalmente os que mais precisam de preservação, como o Cerrado e Caatinga”.
Elvio Medeiros é graduado e mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal da Paraíba. Cursou o doutorado em Ciência Ambiental pela Griffith University, Austrália. Atualmente leciona Ecologia na Universidade Estadual da Paraíba.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual a especificidade dos rios intermitentes?
Elvio Sérgio Medeiros - Os rios intermitentes representam cursos de água corrente que cessam seu fluxo durante um ou mais períodos do ciclo hidrológico. De forma geral podem ser classificados como temporários ou efêmeros. No primeiro caso, os rios apresentam fluxo de água superficial durante vários meses, enquanto que no segundo o fluxo de água é normalmente limitado a alguns dias ou semanas. Em anos muito úmidos, rios efêmeros podem se tornar temporários e, em períodos de seca, rios temporários podem se tornar efêmeros. Essa variação hidrológica extrema é uma característica natural desses sistemas e tem sido reconhecida como o principal elemento influenciando a estrutura das comunidades aquáticas e o funcionamento geral dos rios intermitentes. Essas características tornam esses rios muito sensíveis à variação climática, funcionando como preditores das respostas do meio ambiente ao aquecimento climático global.
Os rios intermitentes podem representar cursos de água de pequena ordem, ou seja, os riachos de cabeceira. Tradicionalmente, porém, têm sido associados a regiões secas, tanto temperadas, como é o caso nos desertos dos Estados Unidos e da Espanha, quanto em zonas tropicas, como no norte da Austrália, África e no semiárido brasileiro. No semiárido do Brasil, estes rios também estão associados a outros ambientes como lagoas temporárias naturais e os reservatórios construídos pelo homem.
Os rios intermitentes do Brasil fazem parte da paisagem da Caatinga e do dia a dia do homem do Nordeste, servindo como fonte de água, áreas de recreação, cultivo de vegetais e criação de animais. O sertanejo apresenta estratégias de sobrevivência durante os períodos de estiagem, que são resultado direto de suas percepções sobre as variações no fluxo de água desses rios. Estes ambientes fazem parte da cultura do sertanejo sendo citados em sua produção artística e por grandes escritores como Euclides da Cunha, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego e Guimarães Rosa.
IHU On-Line - Como a legislação ambiental vigente aborda a preservação de Áreas de Preservação Permanente - APPs e matas ciliares nas margens dos rios intermitentes e perenes?
Elvio Sérgio Medeiros - A legislação atual não trata especificamente de diferenças entre cursos temporários ou perenes, mas rios intermitentes são mencionados e associados a nascentes. Para a legislação vigente, as florestas e demais formas de vegetação reconhecidas de utilidade às terras que revestem são consideradas APPs. É interessante notar que a concessão feita para desmatamento em rios intermitentes vai de encontro a vários artigos e parágrafos do Código Florestal que descrevem a proteção de florestas e demais formas de vegetação natural situadas ao longo dos rios ou outros cursos d'água. O próprio entendimento de APP fica comprometido porque ele inclui áreas cobertas (ou não) por vegetação, que tenham a função de preservar os recursos hídricos, a paisagem ambiental, sua biodiversidade e fluxo gênico, além de manter aspectos geomorfológicos associados à estabilidade geológica e solo. Matas ciliares de rios intermitentes contribuem com todas essas funções.
IHU On-Line - Como avalia a aprovação da ementa do Código Florestal, que põe fim às APPs em rios intermitentes? A que atribuiu a aprovação desta ementa?
Elvio Sérgio Medeiros - Essa mudança significa um retrocesso na legislação ambiental brasileira e representa uma ameaça para a integridade ecológica dos rios de forma geral (intermitentes ou não), e principalmente para o bioma da Caatinga, que concentra grande parte dos rios intermitentes brasileiros. Representa a indiferença e desrespeito do governo brasileiro com o meio ambiente e sua preservação.
IHU On-Line - Quais as implicações da redução de APPs e matas ciliares para estes rios e o entorno? Esta medida atinge que percentual dos rios brasileiros?
Elvio Sérgio Medeiros - Cerca de 40% da superfície terrestre do planeta é representada por áreas secas e essa proporção vem aumentando em função da expansão dos processos de desertificação causados por mudanças climáticas globais e destruição de florestas. No Brasil, a zona de clima semiárido, que representa o domínio dos rios intermitentes, abriga cerca de 20 milhões de brasileiros. Essa zona participa com cerca de 18% do total da área correspondente às bacias hidrográficas do Brasil, sendo sua maioria composta por cursos de água intermitentes. A redução das APPs e matas ciliares para estes rios vem contribuir para a degradação ambiental e, a médio e longo prazos, vem agravar o quadro socioeconômico da região, por contribuir com o aumento da escassez de água.
As implicações da redução ou remoção das matas ciliares para os rios intermitentes são múltiplas. Do ponto de vista geomorfológico, estas matas, através de suas raízes e cobertura do solo, contribuem para a sustentação do solo marginal diminuindo o assoreamento. Com relação à biodiversidade, estudos indicam que a mata ciliar contribui com estruturas subaquáticas, como galhos, troncos e folhas para o leito do rio, que servem de abrigo e alimento para a fauna e flora aquáticas. Por sua vez, esses sustentam outros organismos aquáticos, como peixes, anfíbios e animais terrestres como aves e pequenos mamíferos, que vêm se alimentar desses animais maiores. Estudos sobre os nutrientes que têm origem na vegetação ciliar mostram que uma parcela importante do carbono de origem ripária entra na rede alimentar aquática e sustenta parte de produção primária e secundária nos rios intermitentes. Além disso, itens alimentares originados na vegetação ciliar, como sementes e insetos terrestres, são consumidos diretamente por peixes e anfíbios. Portanto, é evidente que a destruição ou alteração da mata ciliar terá um efeito importante no funcionamento desses sistemas com consequências para a diversidade aquática.
IHU On-Line - A maioria dos rios intermitentes está no Nordeste. Em sua avaliação, a aprovação desta ementa tem alguma relação com os projetos desenvolvimentistas do governo na região?
Elvio Sérgio Medeiros - Além das implicações para as políticas de desenvolvimento para o Nordeste, este novo texto do Código Florestal representa a conjuntura econômica brasileira atual, onde a pressão por áreas cultiváveis, necessidade de lucro imediato e respostas a curto prazo para os mercados são prioridade em detrimento a opções menos imediatistas e mais sustentáveis, que permitiriam a manutenção a longo prazo dos recursos naturais e a disponibilização dos seus benefícios para gerações futuras.
IHU On-Line - A falta de proteção nos rios intermitentes pode causar impacto nos rios perenes? Alguns pesquisadores mencionam possíveis prejuízos e comprometimento da rede hidroviária. É possível?
Elvio Sérgio Medeiros - Sim. Os rios intermitentes são parte de bacias hidrográficas do Nordeste e também da maioria dos sistemas aquáticos continentais. Seu comprometimento pode alterar, a médio e longo prazos, a dinâmica hidrológica e geomorfológica da bacia como um todo, agravando assoreamento, qualidade da água, dinâmica de nutrientes, limites de variação hidrográfica, entre outros fatores.
IHU On-Line - Qual é a situação dos rios intermitentes do semiárido e da Caatinga? Qual a importância deles na preservação dos ecossistemas?
Elvio Sérgio Medeiros - Os rios intermitentes do semiárido brasileiro são importantes do ponto de vista econômico (como fonte de água e alimento), científico e cultural. Eles fazem parte do ciclo global da água e são ainda sítios de biodiversidade e endemismos.
Dentre os elementos mais importantes para a conservação dos rios intermitentes destaca-se a necessidade de seu reconhecimento como sítios importantes de biodiversidade e que essa biodiversidade está associada aos padrões naturais de variação no fluxo de água. Sem o entendimento de como esses processos atuam na fauna aquática, e com o agravamento do risco ambiental desses rios legitimado pelo governo brasileiro, as estratégias de conservação para o bioma Caatinga serão pouco efetivas.
Muito embora importantes medidas para a conservação do bioma da Caatinga têm sido tomadas, como a criação de áreas de preservação e delineamento de áreas prioritárias para conservação e para pesquisas científicas, o comprometimento das matas ciliares acontece em detrimento ao argumento de que a conservação dos rios intermitentes deve ser ampliada devido à natureza seca do ambiente ao seu entorno.
Estudos enfatizam a necessidade de cinco passos fundamentais a serem considerados para os planos de conservação no semiárido: (1) que estes planos sejam estabelecidos com base no conhecimento científico sobre a estrutura e funcionamento dos rios intermitentes e no papel das variações hidrológicas na biodiversidade aquática e do seu entorno; (2) que áreas de conservação incluam bacias de rios intermitentes importantes, baseado não apenas na diversidade de espécies, mas também nos processos ecológicos que sustentam essas espécies; (3) que os processos sustentando a biodiversidade sejam mantidos em múltiplas escalas da paisagem, e não apenas em escala local; (4) que a integridade natural da zona ripária (e das matas ciliares) sejam mantidas e restauradas; e (5) que, tendo em vista a história de ocupação humana no semiárido, as configurações dos ecossistemas e suas interações com os sistemas sociais humanos devem também ser levados em consideração nos planos de manejo para a região.
IHU On-Line - Quais são hoje os fatores que mais contribuem para a degradação dos rios intermitentes?
Elvio Sérgio Medeiros - Principalmente a partir do século passado, a expansão dos projetos de manejo de águas no Nordeste tem representado uma ameaça à integridade do fluxo de água natural desses sistemas e, consequentemente, sua rica fauna e flora. A tentativa de se mitigar possíveis danos causados por esses projetos é difícil tendo em vista o limitado conhecimento científico sobre os processos ecológicos atuando nas comunidades desses riachos.
A remoção da mata ciliar ou sua substituição por espécies exóticas (como a algaroba, por exemplo) já são ameaças antigas à integridade biológica de rios intermitentes no semiárido do Brasil. A nossa legislação agora apenas institucionaliza e fornece a legitimidade para essas práticas. A remoção e alteração da vegetação natural no semiárido não estão limitadas apenas às matas ciliares. Mudanças nas condições climáticas locais e intensificação dos processos de desertificação têm sido causados e/ou agravados pela ocupação humana, resultando na intensificação das condições de aridez e no aumento do déficit hídrico.
Estudos realizados em outros países, como a Austrália, reconhecem a importâncias das matas ciliares em rios de áreas secas e observam que mudanças na vegetação ripária estão associadas a mudanças deletérias para o funcionamento dos ecossistemas aquáticos, bem com estão associadas à diminuição da saúde dos rios e a algumas mudanças na dinâmica do carbono, elemento fundamental para a produção e manutenção dos sistemas vivos.
No Brasil, hoje inúmeras atividades humanas e práticas de uso da terra vêm alterando a integridade das matas ciliares em rios intermitentes, como a introdução de espécies exóticas de plantas, mudanças no regime de fogo e queimadas artificiais e remoção da mata ripária. Além disso, atividades como a extração de areia e minério, poluição por pesticidas e esgotos, e práticas inadequadas de irrigação também podem ser importantes para a alteração da vegetação ciliar dos rios intermitentes bem como seu regime natural de fluxo de água. Em conjunto, essas atividades aumentam a ameaça de desertificação e salinização do solo.
IHU On-Line - Além desta ementa do Código Florestal, que outros equívocos percebe no texto?
Elvio Sérgio Medeiros - As mudanças aprovadas no novo Código Florestal atacam dois dos biomas brasileiros mais degradados pelo homem: a Caatinga e o Cerrado. O Cerrado é um “hotspot” da biodiversidade mundial, mas apresenta amplas áreas desmatadas e vem sofrendo processo de degradação. Esse bioma é chamado de “caixa d'água do Brasil”, porque por ele passam ou nascem grandes sistemas hidrográficos brasileiros, como o Rio São Francisco, e bacias do Paraná e Tocantins. Apesar disso, o novo texto do Código diminui restrições para o desmatamento de APPs em algumas áreas de Cerrado.
O novo Código Florestal é um ataque e uma afronta aos biomas brasileiros, principalmente os que mais precisam de preservação, como o Cerrado e Caatinga. A Caatinga é o único bioma que ocorre apenas em solo nacional, e as políticas atuais contribuem para sua destruição.
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Redução de APPs compromete rios e biomas brasileiros. Entrevista especial com Elvio Sérgio Medeiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU