23 Agosto 2011
Normal 0 21 false false false MicrosoftInternetExplorer4 Amanhã, dia 25 de agosto, celebra-se o 50º aniversário da renúncia de Jânio Quadros. O seu vice, João Goulart foi impedido de assumir a Presidência da República. O evento ensejou a insurreição civil, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola.
Quem era João Goulart, chamado Jango?
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Na opinião da professora Marieta de Moraes Ferreira, a Campanha da Legalidade pode nos ajudar a refletir sobre a importância da participação política. "Ainda hoje esse exemplo da mobilização política em torno de grandes bandeiras de interesse da sociedade brasileira é algo que pode contribuir para o nosso aprendizado político", explica. Na entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line, Marieta defende que "a Campanha da Legalidade faz parte dessa cultura política brasileira de acionar a população em torno de valores importantes para garantir a democracia no país. Ainda temos muito a conquistar, mas o Brasil cada vez mais tem aprimorado e valorizado os princípios de uma cultura democrática".
Marieta de Moraes Ferreira é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Realizou pós-doutorado na École des Hautes Etudes em Sciences Sociales – EHSS, Paris. É editora executiva da Editora FGV e professora do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IFCS/UFRJ desde 1988. Publicou o livro Em busca da Idade do Ouro (Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002), e organizou João Goulart: Entre a Memória e a História (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006). Ela estará na Unisinos participando do Seminário 50 anos da Campanha da Legalidade: memória da democracia brasileira, promovido pelo IHU, no dia 1º de setembro de 2011.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a senhora define João Goulart enquanto personagem histórico e político? Qual sua contribuição para a história política do Brasil, principalmente na época do golpe militar de 1964?
Marieta de Moraes Ferreira – Existe uma memória em torno da figura de João Goulart durante o período da ditadura militar, e mesmo posteriormente, que é ou muito negativa ou de silenciamento. Sempre eram destacados elementos negativos da sua personalidade, como fraqueza e incompetência. Essa memória não se sustenta a partir de uma pesquisa histórica mais consistente. João Goulart estava longe de ser esse político incompetente, desastrado, incapaz de fazer avaliações adequadas sobre a conjuntura. Por exemplo, se acompanharmos sua atuação como ministro do trabalho de Getúlio Vargas, no período de 1953, veremos que teve um papel importante como negociador de greves que estavam ocorrendo no país. Ele também levou as agências do Ministério do Trabalho para vários estados da federação, no intuito de fazer valer a legislação trabalhista já implementada pelo governo Vargas.
Goulart foi presidente do PTB durante vários anos e, como tal, teve um papel importante na organização do partido, bem como na incorporação de novas demandas. Depois, quando empossado presidente da República, em 1961, catalisou as chamadas reformas de base que a sociedade brasileira estava demandando naquele momento, especialmente a questão da reforma agrária. Jango estimulou o processo de sindicalização rural, que normalmente é algo pouco explorado, bem como o desenvolvimento dessa noção de trabalhador do campo. Todos esses aspectos foram muito importantes do ponto de vista da atuação de Goulart.
Com o golpe militar, ele foi deposto. E algumas vozes o acusam pelo fato de não ter embarcado na proposta de organizar uma resistência armada quando começou o movimento militar que depôs o seu governo. Mas, na verdade, hoje fica evidente que João Goulart teve uma posição acertada, porque teria sido muito difícil se ele tivesse optado por uma defesa armada contra os elementos que estavam articulando o movimento militar em 1964. Depois, já durante a vigência do golpe, um fato importante foi a chamada Frente Ampla, quando João Goulart aceitou conversar com Carlos Lacerda e com outras lideranças políticas que tinham apoiado o movimento militar, mas que posteriormente haviam se desencantado. O próprio Lacerda foi cassado. João Goulart participou dessas negociações, mas a Frente Ampla também não foi adiante. É importante destacar que as dificuldades que eram das esquerdas brasileiras da época foram atribuídas a ele. João Goulart tinha uma posição mais cautelosa, mas ele era o tempo todo pressionado e instado para radicalizar por Brizola e por outras lideranças do PTB e outras forças políticas de esquerda da época.
IHU On-Line – Quais foram os principais impasses de seu governo?
Marieta de Moraes Ferreira – Dois problemas foram mais complexos. Um era a questão da reforma agrária. Havia uma pressão muito grande dessas forças de esquerda e de próprios setores do PTB, que lutavam por uma legislação que permitisse a reforma agrária por meio de uma mudança da Constituição, que possibilitasse ser as desapropriações pagas com títulos da dívida pública. Esse ponto criou uma polêmica muito grande e uma resistência por parte de setores que não concordavam com essa mudança. Consequentemente, isso entravava o avanço da reforma agrária. Até que Jango, já nos momentos finais, vai tentar aprovar essa medida à revelia das resistências dos partidos de centro e de direita. Isso efetivamente foi um impacto muito grande em seu governo. Outro problema complexo foram as revoltas militares no final de seu governo, o que colocou para as altas patentes um temor pela quebra da hierarquia militar.
IHU On-Line – Como define o contexto social e político brasileiro da época da Campanha da Legalidade?
Marieta de Moraes Ferreira – Estávamos iniciando a década de 1960, com uma mobilização política muito grande na sociedade brasileira, depois do governo JK. A própria eleição de Jânio Quadros para presidente já mostrou uma mobilização e, por outro lado, uma polarização política. Foi eleito um candidato a presidente apoiado pela UDN e um vice-presidente – no caso, Jango – apoiado pelo PTB. A vitória desses dois nomes já indica uma polarização das forças políticas e partidárias da sociedade brasileira. Por outro lado, a renúncia prematura de Jânio Quadros e a colocação em pauta da posse do Jango expressaram essas dificuldades e contradições que já tinham se mostrado na eleição presidencial, porque Jango representava as forças mais à esquerda, vinculadas às camadas populares.
Consequentemente, a eleição para presidente não tinha sido de um candidato afinado com essas ideias. Logo, manifestaram-se reações contra a posse do Jango. Setores das forças armadas queriam impedir a sua posse. Se, por um lado, houve um processo de negociação no sentido de mudar a forma de governo para um regime parlamentarista, por outro lado, a Campanha da Legalidade teve um papel importante no sentido de forçar a posse do Jango na medida em que ela se apoiava, como o próprio nome já diz, na legalidade. As forças políticas que estavam angariando e apoiando essa campanha pelo direito à posse do Jango na presidência da República estavam amparadas num principio muito forte, que era a legalidade, o respeito à Constituição, que dizia que, na falta do presidente da República, o vice deveria tomar posse. Em nome disso, havia uma mobilização da população, das várias camadas sociais e mesmo de setores mais conservadores, que achavam que a Constituição deveria ser respeitada. Isso ajudou muito Brizola que lança, a partir do Rio Grande do Sul, a Campanha da Legalidade, desde uma cadeia de rádio que começa a produzir notícias e a colocar no ar programas e falas de personagens apoiando a posse do vice-presidente.
IHU On-Line – Como era a relação de Jango com o seu partido, o PTB?
Marieta de Moraes Ferreira – Jango teve um papel muito importante no PTB desde o final do governo Vargas. Este partido tinha muitos conflitos internos, disputas, e Getúlio traz Jango para sua liderança no intuito de que ele pudesse melhor organizá-lo e pacificá-lo. A partir do final dos anos 1950, já começaram a haver algumas dificuldades, porque dentro do próprio PTB havia setores que pretendiam radicalizar nessa luta política pela aprovação das chamadas reformas de base, e o próprio Brizola era uma voz que, durante o governo João Goulart, teve uma presença muito forte no sentido de levar a uma maior radicalização política. Na época, usava-se muito a expressão "reforma agrária na lei ou na marra". Ao longo do seu governo, Jango teve apoio de setores do seu partido, mas também sofreu pressão no sentido de que ele avançasse na implementação de certas iniciativas e medidas econômicas e políticas que criavam um conflito muito grande com outros setores da sociedade. A liderança dele sobre PTB durante seu governo foi bastante problemática. Em vários momentos ocorreram impasses.
IHU On-Line – Como era a relação de Jango com Getúlio Vargas e com Brizola?
Marieta de Moraes Ferreira – A relação de Jango com Getúlio foi sempre de profunda admiração. Getúlio Vargas foi seu grande mestre e seu iniciador na vida política. Havia admiração e confiança mútua entre os dois. Mesmo nos momentos de dificuldades, quando Vargas é obrigado a retirar Jango do Ministério do Trabalho por pressões de setores mais conservadores, João Goulart continua indiretamente atuando dentro do ministério. Depois, a própria morte de Vargas mostra o tipo de confiança que Getúlio tinha em Jango, quando dá a ele a Carta Testamento. De fato, havia uma preocupação de Jango, mesmo nos momentos posteriores, de manter determinados princípios e aprendizados do funcionamento da política que tinha absorvido do seu contato com Vargas. Já com Brizola a situação foi muito diferente. Jango teve muitos dissabores e divergências com Brizola, principalmente quando este o pressionou para que resistisse e Jango optou por não exercer essa resistência.
IHU On-Line – Em que medida o episódio da legalidade nos ajuda a compreender as questões políticas do Brasil de hoje?
Marieta de Moraes Ferreira – A legalidade pode nos ajudar a refletir sobre a importância da participação política. Outras campanhas que também tentaram mobilizar a população foram a campanha das diretas e do impeachment do Collor. Algumas dessas campanhas foram vitoriosas, outras não, mas ainda hoje esse exemplo da mobilização política em torno de grandes bandeiras de interesse da sociedade brasileira é algo que pode contribuir para o nosso aprendizado político. A Campanha da Legalidade faz parte dessa cultura política brasileira de acionar a população em torno de valores importantes para garantir a democracia no país. Ainda temos muito a conquistar, mas o Brasil cada vez mais tem aprimorado e valorizado os princípios de uma cultura democrática.
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João Goulart entre a memória e a história. Entrevista especial com Marieta de Moraes Ferreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU