26 Mai 2008
“Não há consolo para a morte de um filho.” Essa afirmação é de Luiz Marques e, certamente, contempla todos aqueles pais que perderam um filho. Marques perdeu Vinicius Gageiro Marques, hoje conhecido na mídia como Yoñlu. Um gênio, segundo não apenas o pai, mas vários artistas e produtores musicais que tiveram acesso a sua obra. Lançado postumamente, o cd Yoñlu traz algumas das canções deixadas pelo menino de 16 anos que cometeu suicídio assistido em 2006. “As instituições policiais carecem de recursos materiais e humanos, bem como de uma legislação específica com amparo em convênios internacionais que permitisse investigar outros crimes, que não apenas pedofilia e prostituição infantil, pela internet. Mais: essas insuficiências induzem as autoridades da Polícia Federal, da Polícia Civil e do Ministério Público Criminal a arquivar os inquéritos que extrapolam sua limitada competência, quando a sociedade desejaria que abrissem uma discussão pública sobre a necessidade de uma adequação institucional às novas tecnologias para garantir a segurança, em especial, das crianças e adolescentes”, contou-nos ao falar da forma como a morte do filho foi tratada pelas autoridades.
Luiz Marques é professor universitário e ex-Secretário de Cultura do Rio Grande do Sul. Ele nos concedeu esta entrevista por e-mail.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O senhor sempre trabalhou com Cultura e encontrou dentro de casa uma obra muito importante e rica. Como foi lidar com a perda do seu filho e, ao mesmo tempo, propagar essa obra que ele deixou?
Luiz Marques - A pergunta parte de uma premissa confortadora (ex-secretário de Cultura do Estado encontra tesouro artístico em sua própria moradia), mas sem correspondência com a indizível dor causada pela perda de um filho, seja ele um artista ou não. Nenhum reconhecimento póstumo [1] contrabalança a ausência, sempre presente, que representa a morte de um filho. Nessas circunstâncias, não há sequer de longe a possibilidade de um final hollywoodiano para o sofrimento desencadeado, seja o pai um homem dedicado à Cultura ou não. A paternidade fala mais alto.
Diante do nonsense que rompe com as leis da natureza e o curso normal da vida, até mesmo a noção analítica de “elaboração do luto” perde o sentido. Quando, no “vale de lágrimas”, a ordem de saída das gerações se altera não há liquidificador psíquico e emocional que leve à aceitação desse absurdo existencial. A idéia compensatória de que é possível prosseguir a caminhada, embora a precipitação no abismo, é o sintoma de uma sociedade delirante que busca universalizar a auréola de “heroísmo” e “superação” entre os indivíduos por não tolerar mudanças no script da felicidade que promete aos cidadãos de bem (e de bens). Como se a dor fosse um opróbrio.
O senso comum trata os tombos do destino como acidentes de percurso que, com algumas doses de auto-ajuda, podem ser superados pelos indivíduos. Eu, que a cada dia sinto mais a falta de meu filho, prefiro o bom senso dos místicos que vêem na perda do ente amado um reencontro com o martírio do Filho de Deus. Em lugar do simulacro do super-homem nietzschiano [2], heróico, superador de obstáculos, a introspecção em face do mistério.
A propagação da obra do Vinícius, portanto, não é um meio de minimizar o vazio que sua morte prematura acarretou. É um compromisso com a mensagem de vida de que toda grande arte é portadora, como ocorre com a magnífica produção artística do Vinícius (desenhos, fotografias, poemas e, sobretudo, a música). Produção que, mesmo em uma canção soturna como Suicide Song, continua a dialogar com a vida.
O tema de uma obra que mereça o título de arte é, por definição, a vida, ainda quando ataca a vida. Artistas de exceção não se detêm nas aparências, obrigam-nos a ir além. Não é a dantesca e desesperadora “Porta do Inferno”, esculpida por Rodin [3], a mais perfeita defesa dos princípios defendidos pelo cristianismo primitivo?
IHU On-Line - O Cd Yoñlu está tendo uma repercussão bastante grande. Isso ajuda, de certa forma, a ampliar o debate e a atenção acerca da forma como o Vinícius se foi?
Luiz Marques - O reconhecimento pode também ser medido pelo interesse da gravadora de David Byrne [4], a Luaka Bop (EUA), considerada um autêntico atestado de qualidade, que prepara o lançamento internacional do disco de Yoñlu, com a inclusão de novas músicas, ainda para o final de 2008. O critério para as raras edições, duas ao ano, do prestigioso selo norte-americano, diga-se de passagem, não é o mercado: é a comprovada excelência musical. Quer dizer, Yoñlu enriqueceu o patrimônio estético-musical da humanidade e reforçou a resistência à pasteurização e à mediocrização da sensibilidade imposta pela lógica comercial. Que um jovem de 16 anos tenha adquirido o direito de se inscrever nesse Panteão de qualificação e dignificação é motivo de orgulho e de fé na juventude. Temos aí elementos suficientes para um debate, por exemplo, sobre o embrutecimento do ser humano e o papel da arte na luta pelo desbloqueamento de nossa percepção estético-crítica no capitalismo tardio.
Imaginar, para fazer uma analogia, que uma tela de Vincent van Gogh [5] ou um romance de Virginia Wolff possam ajudar no entendimento sobre os tormentos que afligiam a subjetividade de seus autores, de modo a evitar que se disseminem pelo corpo social, seria deslocar para o campo da arte o que é uma questão de saúde pública. Pelo mesmo raciocínio, abordar a trajetória terrena de Vinícius Gageiro Marques a partir de uma ótica profilática, abstraindo a arte que produziu com maestria, seria um insulto ao artista que soube sintetizar, musicalmente, com criatividade e radicalidade, as tendências inconscientes do alvorecer do século XXI.
É um erro tomar a comovedora e exígua existência do Vinícius para uma discussão sobre as causas e a forma com que essa mente genial colocou em prática a decisão de tirar a própria vida. Assim como Jim Morrison [6], Nick Drake [7], Kurt Cobain [8], Renato Russo [9], Jeff Buckley [10] e Cássia Eller [11], membros de uma confraria artístico-musical a um tempo excepcional e trágica, Yoñlu (2006) deixou sua assinatura em uma obra notável, brilhante e sem fronteiras, apesar de não ter lançado nenhum álbum profissionalmente.
IHU On-Line - A polícia entendeu que não existem provas de incitamento ao suicídio, portanto, não houve crime. Qual sua opinião sobre essa decisão?
Luiz Marques - As instituições policiais carecem de recursos materiais e humanos, bem como de uma legislação específica com amparo em convênios internacionais que permitisse investigar outros crimes, que não apenas pedofilia e prostituição infantil, pela internet. Mais: essas insuficiências induzem as autoridades da Polícia Federal, da Polícia Civil e do Ministério Público Criminal a arquivar os inquéritos que extrapolam sua limitada competência, quando a sociedade desejaria que abrissem uma discussão pública sobre a necessidade de uma adequação institucional às novas tecnologias para garantir a segurança, em especial, das crianças e adolescentes. Para agravar esse quadro de precariedades, os provedores da internet, por razões de mercado, dificultam a identificação dos usuários de seus serviços nos terminais de computadores.
Hobbes [12] justificava o “contrato social”, no qual os indivíduos aceitariam abdicar da liberdade que usufruíam no “estado de natureza”, com base na idéia de proteção à vida. Evidentemente, sob esse aspecto, a nossa é uma sociedade ainda pré-contratual, pois, afora não se organizar tendo como prioridade a vida (e o meio ambiente) de seus sócios, submete-se à gramática da acumulação e do livre-comércio.
Enfim, não fomos as primeiras nem as últimas vítimas, de um lado, do despreparo do aparelho estatal para lidar com os novos sintomas do mal-estar da modernidade e, de outro, do descaso com a vida que possui ramificações econômicas e se beneficia de lacunas jurídicas em nossa sociedade.
IHU On-Line - A música de Yoñlu e suas influências têm ajudado a suportar sua ausência?
Luiz Marques - Não há consolo para a morte de um filho.
IHU On-Line - O Vinícius gostaria de ter lançado sua obra (música, desenhos) no mundo, fora da internet?
Luiz Marques - O Vinícius cresceu rodeado pelos recursos que são característicos da relação de sua geração com o mundo. Que tenha se servido da internet para divulgar seus trabalhos em fóruns dedicados à arte é algo que não causa surpresa. Milhares, milhões de outros jovens utilizam a mesma ferramenta em seu tempo de lazer e entretenimento, nos dois hemisférios. A diferença é que ele utilizou-a com uma preocupação artística, fazendo dela seu estúdio e seu palco. O lançamento de seu Cd póstumo no Brasil não fugiu à regra, aconteceu também na versão digital, no âmbito da internet. O mesmo ocorrerá com o Cd que está em fase de preparação nos Estados Unidos. A intenção é que toda a sua obra esteja disponibilizada em rede para seus incontáveis admiradores, num futuro próximo.
IHU On-Line - Qual a sua relação com a internet, hoje?
Luiz Marques - Não devemos esquecer que do ventre do que chamamos modernidade pode nascer tanto a civilização, quanto a barbárie. Os campos de concentração nazi-fascistas, durante a Segunda Guerra Mundial, são uma demonstração de como a modernidade pode conviver com o horror. Como manda o figurino moderno, estavam regulados juridicamente, faziam uso das técnicas fordistas de produção e fabricavam a morte em escala industrial. As visões lineares da história, aprendidas com os iluministas, que identificavam o progresso tecnológico com um acúmulo civilizacional permanente, não dão conta desta “dialética do concreto”.
Com a internet dá-se o mesmo. De seu ventre pode nascer o bem e o mal. Pessoalmente, uso-a à medida de minhas necessidades de trabalho.
IHU On-Line - Hoje, que é o Vinícius e quem é o Yoñlu para o senhor?
Luiz Marques - Não compartilho da tendência de simplificação que acompanha as formulações desse gênero. Por mais esforço de compreensão intelectual que exija-nos, o que é complexo precisa ser encarado como complexo. E a personalidade do Vinícius/Yoñlu era complexa, como costuma ser a personalidade de todos os indivíduos que se encaixam na categoria de “super-dotados”. Para mim, um e outro são o mesmo indivíduo encantador, como Agenor de Miranda Araújo Neto e Cazuza [13] são um só.
IHU On-Line - O senhor gostaria de falar algo mais sobre seu filho?
Luiz Marques - Sim. Foi uma enorme dádiva ter podido conviver com ele, enquanto Deus assim permitiu.
Notas:
[1] Existem diversas comunidades no Orkut criadas em homenagem ao talento musical de Vinícius/Yoñlu, além de inúmeras páginas e blogs na internet enaltecendo sua precoce genialidade. Isso sem mencionar os elogios da crítica especializada: no site “BorisvsLaika” (abr/08); nas revistas Aplauso (dez/07 e mar/08), Noize (mar/08) e Rolling Stone (mar/08); entre os jornais que fizeram resenhas sobre o disco de Yoñlu, basta citar o Caderno de Cultura/Zero Hora (24/01/08) e a Contra Capa/Zero Hora (29/03/08), publicadas em sua aldeia natal, Porto Alegre. (Nota do entrevistado)
[2] Friedrich Wilhelm Nietzsche foi um influente filósofo alemão do século XIX. nasceu numa família luterana, mas perdeu a fé durante sua adolescência. É conhecido por seus conceitos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004. Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-Line edição 175, de 10 de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada "Nietzsche e Paulo". A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche.
[3] Auguste Rodin foi um escultor francês. Toda a criação do escultor se baseou no conceito de "non finito". Tentou plasmar, ao longo de toda a sua obra, o momento da criação. Rodin conquistou fama em vida, e suas obras chegaram a ser as mais apreciadas no mercado de arte europeu e americano. Hoje em dia, encontram-se nos museus mais importantes do mundo.
[4] David Byrne músico e compositor. Fundou a banda Talking Heads. Além do trabalho com o grupo, compôs trilhas para artistas como Twyla Tharp e Robert Wilson, além do filme O último imperador (de 1987, realizado por Bernardo Bertolucci) pelo qual ganhou um Oscar. Também dirigiu o filme True stories (de 1986) e produziu diversos álbuns de música caribenha e brasileira (incluindo trabalho com Tom Zé e Margareth Menezes). Byrne também é fotógrafo.
[5] Vincent van Gogh foi um pintor pós-impressionista neerlandês. Sua vida foi marcada por malogros. Foi incapaz de constituir família, custear a própria subsistência ou até mesmo manter contactos sociais. Aos 37 anos, sucumbiu a uma doença mental, suicidando-se. A influência de Van Gogh no expressionismo, fauvismo e abstraccionismo foi notória e pode ser reconhecida em variadas frentes da arte do século XX. Van Gogh é considerado pioneiro na ligação das tendências impressionistas com as aspirações modernistas.
[6] Jim Morrison foi o vocalista e autor da maior parte das letras da banda rock norte-americana The Doors.
[7] Nicholas Rodney Drake foi um cantor e compositor britânico, nascido na antiga Birmânia. É conhecido por suas canções com temas outonais e melancólicos e por sua técnica virtuosa ao violão, chegando a ser considerado um dos compositores mais influentes dos últimos cinquenta anos.
[8] Kurt Donald Cobain foi um músico norte-americano, mais conhecido por ser o vocalista e compositor da banda Nirvana. É tido como um dos maiores artistas da década de 1990. Kurt viveu uma vida marcada pela depressão, desgastes emocionais e vícios em drogas. Os últimos anos de sua vida foram castigados pela dependência exagerada de heroína, pela forte pressão exercida pela mídia e por sua conturbada relação com a esposa Courtney Love. No dia 8 de abril de 1994, Kurt Cobain foi encontrado morto em sua casa em Seattle.
[9] Renato Russo foi um cantor, compositor e músico brasileiro, membro da banda Legião Urbana. É considerado um dos grandes compositores do rock brasileiro Russo permaneceu na Legião Urbana até sua morte, em 11 de outubro de 1996.
[10] Jeffrey Scott Buckley é um cantor, compositor e guitarrista norte-americano. Conhecido por seus dotes vocais, Buckley foi considerado pelos críticos umas das mais promissoras revelações musicais de sua época. Entretanto, Buckley morreu afogado enquanto nadava no rio Wolf, afluente do Rio Mississipi, em 1997.
[11] Cássia Eller foi uma cantora e violonista do rock brasileiro dos anos 1990. Caracterizada por sua voz grave e pelo seu ecletismo musical, interpretou canções de grandes compositores do rock brasileiro, como Cazuza e Renato Russo, além de artistas da MPB como Caetano Veloso e Chico Buarque, passando pelo pop de Nando Reis e o incomum de Arrigo Barnabé e Wally Salomão. Era homossexual e morava com sua parceira Maria Eugênia Vieira Martins, com a qual criava o filho Francisco. Teve grandes problemas com álcool e outras drogas. Faleceu em 29 de dezembro de 2001 por parada cardiorrespiratória, possivelmente decorrente de estresse.
[12] Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo político inglês, autor de Leviathan (1651). (Nota do entrevistado)
[13] Cazuza foi um famoso cantor, compositor e poeta brasileiro que ganhou fama como o vocalista e principal letrista da banda Barão Vermelho. Cazuza é considerado um dos mais importantes compositores da música brasileira. Cazuza também ficou conhecido por ser rebelde, boêmio e polêmico, tendo declarado em entrevistas que era bissexual. Ele foi o primeiro artista brasileiro a declarar publicamente ser soropositivo e sucumbiu a doença em 1990, no Rio de Janeiro.
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Yoñlu. "Não há consolo para a morte de um filho". Entrevista especial com Luiz Marques - Instituto Humanitas Unisinos - IHU