12 Setembro 2007
O mais recente livro de Maria Vitória Mamede Maia, intitulado Rios sem Discurso: reflexões sobre a agressividade da infância na contemporaneidade (São Paulo: Vetor Editora, 2007), traz questionamentos, de cunho ético e político, que tratam das crianças e adolescentes ditos anti-sociais. Baseando-se nas teorias de Winnicott, Maria Vitória como uma sociedade, baseada na desigualdade e marcada pela violência, pode chamar as crianças dissonantes de delinqüentes. Sobre este assunto, a doutora em psicologia cedeu esta entrevista à IHU On-Line.
Maria Vitória faz um panorama do perfil sociológico desses jovens que, por suas atitudes agressivas, são chamados de anti-sociais e dos impactos sociais que esse preconceito traz à sociedade. “Não é somente o pobre absoluto que não tem por que motivo manter o pacto social, mas também os que estão totalmente dentro do contexto socioeconômico, que tudo têm, que não precisam se preocupar em ter nada, se encontram à margem. A pobreza que constrói a criança e o adolescente anti-social é a simbólica”, relata na entrevista, realizada por e-mail.
Maria Vitória Mamede Maia é doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Realizou seu mestrado na mesma universidade, porém na área de Literatura Brasileira. É psicopedagoga clínica na Ceperj – Centro de estudos Psicopedagógicos do Rio de Janeiro. Atua como psicóloga clínica e pesquisadora do LIPIS - Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social - da PUC-Rio, onde também é professora da Pós-graduação na Educação a distância.
Leia a entrevista.
IHU On-Line - Quem são as crianças e adolescentes ditas agressivas e qual é o seu perfil sociológico?
Maria Vitória Mamede Maia - As crianças que chamamos de agressivas são aquelas que usam o ato, o comportamento anti-social como forma de se relacionar com o mundo que as cercam. Winnicott (1) postula que os comportamentos anti-sociais acontecem até nos bons lares e que tudo aquilo que leva um adolescente ou um adulto a um julgamento ou a uma prisão teve início numa perda de algo que essas pessoas registram como sendo algo que antes possuíam e que lhes foi retirado. Ele entende o ato anti-social como um apelo ao ambiente para que ele reconheça um débito seu para com a criança, e, nessa busca de reconhecimento, existe implícito, nos atos de busca da criança ou do adolescente, um sinal de SOS (esperança) de que este meio a sustente de novo. Winnicott denomina esse processo de desapossamento de de-privação (palavra que não existe em português) e marca a diferença entre essa situação e a de privação.
IHU On-Line - O que essas crianças reivindicam com essa postura, segundo suas pesquisas?
Maria Vitória Mamede Maia - Na privação, a criança recebeu quase nada no aspecto de cuidados iniciais e de sustentação no tempo e espaço; na de-privação, a criança teve um início de vida bom, foi sustentada pela mãe emocionalmente, fisicamente, mas, de repente, antes que ela tivesse condições de entender o que estava se passando, essa mãe (entendamos aqui mãe e pai no sentido de figuras materna e paterna, um papel social, um lugar, uma posição subjetiva) mudou o padrão de cuidados, e, nesse momento, algo se perdeu para essa criança. Essa perda fica marcada dentro dela, como que congelada: a criança perde a confiança no meio que a cerca.
Assim, em um primeiro momento, fica quieta, atordoada; depois, quando passa a confiar em alguém ou em um lugar, ela começa a testar esse alguém ou esse lugar até seus limites máximos, para que ela se certifique que tanto o lugar quanto a pessoa sobreviverão aos seus ataques. Winnicott nos fala que a maioria de nós pode dizer de seus pais: “Eles cometeram erros, frustaram-nos constantemente e coube a eles apresentarem-nos ao Princípio de Realidade, MAS eles realmente nunca nos abandonaram”. O abandono, não sofrido pela maioria das pessoas, constitui a base da tendência anti-social.
Portanto, na tendência anti-social há uma necessidade que se exprime em uma externalidade: a culpa é do ambiente. Caracteriza-se por um elemento que compele o ambiente a tornar-se importante e a atuar. Diante de comportamentos anti-sociais, a sociedade, na maioria das vezes, reivindica uma punição a esses atos, mas o que é necessário não é a punição ao ato anti-social e sim “um reconhecimento pleno e pagamento integral” pelo insulto provocado na pessoa desapossada. Porém, é justo que a comunidade reaja, de algum modo, quando um delinqüente comete um crime, mas que essa reação ao crime seja uma reação “à soma total de delitos cometidos contra ela durante certo período de tempo”. É-nos impossível fugir da questão de que a lei expressa uma vingança inconsciente da sociedade, já que não se tem como esquecer que não há somente um indivíduo doente e sim, também, uma sociedade ferida, pedindo reparação. Aqui há a necessidade de a sociedade “ser vingada, não por qualquer crime em particular, mas pela criminalidade em geral”.
IHU On-Line - Que tipo de apelo a agressividade dessas crianças quer nos comunicar?
Maria Vitória Mamede Maia - Se pararmos para analisar o que nos “fala” o ato anti-social, ele nos aponta exatamente para aquilo que não pode ser falado, simbolizado, sendo, portanto, atuado e gestualizado em movimentos cada vez mais amplos, saindo do círculo familiar até atingir os limites da sociedade. Mas esse apelo é um apelo fadado ao fracasso porque a busca é simbólica. É muito importante deixarmos claro que a incidência dos comportamentos anti-sociais e, no seu extremo, da delinqüência, não se dão, exclusivamente, em relação às classes desfavorecidas social ou economicamente. A tendência anti-social, assim como a delinqüência, não está ligada a nenhuma questão de classe. Ela aparece como uma estratégia de sobrevivência da criança e do adolescente diante de uma perda que, para eles, é não-simbolizável, posto que totalmente inesperada, deixando em seu lugar um vazio e uma pequena esperança, a de que eles possam um dia confiar no ambiente, mais uma vez, reviver a perda, e dar significado ao vivido e não entendido por eles no momento em que sofreram o desapossamento. Portanto, os atos anti-sociais são uma tentativa de comunicação da criança num cenário de incomunicabilidade.
Interessante ser aqui reforçado que não é somente o pobre absoluto que não tem por que motivo manter o pacto social, mas os que estão totalmente dentro do contexto socioeconômico, que tudo têm, que não precisam se preocupar em ter nada, igualmente se encontram à margem. A pobreza que constrói a criança e o adolescente anti-social é simbólica, é o vazio de sentidos e aquele que tudo possui, nada tem de pedir, reclamar ou buscar: o extremo dos laços sociais se juntam, e tanto o tudo quanto o nada impossibilitam o sujeito de encontrar uma significação que dê sentido à sua vida.
IHU On-Line - Como se encontra a sociedade brasileira e qual é o lugar que ocupa o jovem dito anti-social dentro dela?
Maria Vitória Mamede Maia - Há uma constatação real, se paramos para olhar, sentir e perceber essas crianças ditas agressivas: elas não são crianças para nós; elas são menores, meninos de rua, pivetes, ou simplesmente menor. O que era adjetivo em sua função morfológica na língua portuguesa foi sendo substantivado e passou a significar um lugar, um lugar onde o infantil não tem espaço, posto que a população não os vê como portadores da infância ou do mito da infância criada pela nossa sociedade, e sim como portadores da marca do descaminho. Frente a esses menores, não vistos como crianças, a sociedade reage com atitudes assistencialistas, mas devemos reparar que não há cuidado nesse assistencialismo praticado para com essas crianças e jovens. Há um descuido, que se traduz exatamente pelo não reconhecimento de um lugar social para eles, reduzidos a serem “menor infrator” ou “delinqüente-mirim”.
Outro ponto que é necessário distinguir, quando passamos de crianças e jovens com comportamentos anti-sociais para delinqüentes, é que ser delinqüente não necessariamente é ser infrator; e a recíproca é igualmente verdadeira. A atuação anti-social busca uma significação para seu ato; busca um lugar que lhes foi retirado. Na pura infração, esse pedido de socorro não está presente necessariamente. O delinqüente e a criança anti-social se caracterizam pela falha de sustentação (holding) das figuras materna e paterna em sua vida. O que eles denunciam, através de sua presença no espaço público, é a falência da autoridade, aqui entendida em termos de limites ao indivíduo social, quase sempre ausentes. O desafeto sobre esse tipo de criança, que incomoda para além das paredes de seu lar, é decorrente do fato de eles desvelarem o fracasso da modernidade. Não há “igualdade, liberdade e fraternidade”, e, muito menos, “ordem e progresso”. Não há uma perfeita integração social. Essas crianças incomodam porque revelam o que não queremos ver, o abismo que existe entre a sociedade que imaginamos viver e ter e aquela que realmente existe para além das nossas redomas de vidro.
O que marca um delinqüente, diferente do jovem com comportamentos anti-sociais, é a falta de esperança, que é algo pior do que a infelicidade. O anti-social endurecido precisa se defender da esperança, “porque sabe, por experiência, que a dor de perder repetidamente a esperança é insuportável”. Isso ele não quer mais viver na vida, esperar, confiar e, mais uma vez, perder... Talvez isso explique o “perdeu, perdeu” que os delinqüentes gritam quando assaltam pessoas... Atuam a perda, roubam esperando encontrar, no objeto roubado, o que eles há muito tempo perderam, mas não encontram e repetem o ato tantas vezes que, um dia, esse ato vale pelo ganho secundário que traz e não mais significa uma busca, uma esperança. Nesse momento, perde-se a esperança e a possibilidade de minimamente haver o sentimento de infelicidade. O que resta é o vazio impreenchível; talvez o que reste a ele seja um caminho que o leve à morte física, já que a morte psíquica já aconteceu há muito tempo atrás.
Portanto, o delinqüente difere da criança com tendência anti-social porque, na delinqüência, já haveria defesas anti-sociais constituídas e organizadas, com ganhos secundários, que dificultariam a criança entrar em contato com seu desilusionamento inicial. Somente nos estágios iniciais é que a criança anti-social sabe que é alguém que necessita de ajuda e sente, realmente, necessidade de chegar às raízes da perturbação que causa no lugar onde se encontra alojada.
IHU On-Line - O menor infrator e o delinqüente buscam uma coesão social?
Maria Vitória Mamede Maia - Winnicott diz que mede o grau de saúde submersa na tendência anti-social pelo incômodo que ela causa no ambiente. A destrutividade seria a forma mais desesperada de tentar chamar atenção para si mesmo que uma criança poderia lançar mão: ela estaria denunciando a quebra na estrutura, teria se tornado um delinqüente, ou seja, aquele que desaloja as coisas, que se desaloja de seu lugar, do lugar que lhe é atribuído pela sociedade – no caso, a falta total de lugar. Estaria apelando com um grito de socorro para as estruturas mais vastas da sociedade, que seriam as leis do país, e procurando o limite nas barras de uma prisão.
Assim, quando os laços sociais oferecidos são inconsistentes, cabe ao ato ser aquele que dá significado simbólico, ato esse que é efetuado para que ganhe, em sua feitura e ação, algum efeito: que algum valor lhe seja dado, marcando um lugar a essa criança ou a esse jovem. O ato delinqüente é uma busca de filiação, de reconhecimento, que fracassa, pois a busca em questão é por um objeto simbólico. É necessário deixar claro, mais uma vez, que a incidência da delinqüência não se dá exclusivamente em relação às classes desfavorecidas social ou economicamente.
Diante dessa sociedade que unilateralmente rompe o pacto social, diante de uma lei que não possui em si além do rigor o amor conjugado a ela, e sim o ódio que termina reforçando ainda mais a desesperança dessas crianças-menores-pivetes-de-rua de ser o delinqüente aquele que busca no extremo social o seu limite, podemos nos perguntar: se a autoridade social inexiste ou é fraca ou é espúria, quem precisaria ser barrado? Diante da anomia da sociedade brasileira, percebemos que a malha social não se sustenta e nem nos sustenta. Não são os sujeitos que estão em crise por causa da fragilidade das instituições, mas estas últimas que estão em crise por que necessitam para sobreviver, de um sujeito que se esgotou.
Para mim, a criança anti-social denuncia um fracasso deste pacto social. Além disso, denuncia que, no fracasso do processo de vida desta criança, algo ainda se mantém vivo e latente, latejante: ela ainda espera que a entendam e que a signifiquem em um lugar seu, de direito. Por isso, acredito que, no fundo do ato anti-social, o que existe é uma resistência a uma situação limite. Para mim, a sociedade é a delinqüente e essas crianças são somente “o outro lado do espelho” (2) que, quando visto de frente nos petrifica, nos medusa de culpa. Somos nós, no nosso silêncio conivente, que acabamos por perpetuar essa esquizofrenização social, essa clivagem entre o “bom menino” e o “mau menino”. Achamos que em nós está o bem e neles o mal. É mais fácil assim pensarmos: a culpa talvez seja menor dessa forma. Essas crianças são crianças sobreviventes... Não somente a elas mesmas e a seus medos e fantasmas, mas, e principalmente, à fratura social contemporânea.
IHU On-Line - Como a sociedade está tratando este problema?
Maria Vitória Mamede Maia – Cazuza (3) há muito convocava o Brasil a mostrar “a sua cara”; o que eu venho tentando fazer com os meus estudos é exatamente refletir sobre as diversas faces do Brasil e também tentando ver “quem paga pra gente ficar assim”. Já deixei evidente que os atos anti-sociais não dependem de classe. Não somente meninos de rua cometem atos anti-sociais; os meninos de classe abastada também o fazem e com igual periculosidade. Isto fica nítido lendo-se as reportagens dos jornais, diariamente, nos quais nos vemos diante de cenas que chocam, independente de ser o jovem branco ou negro, rico ou pobre. Porém, igualmente nos marca a questão de ser o destino do menino ou do jovem pobre morrer na rua, enquanto os demais, os não-pivetes ou os não-meninos-de-rua, têm seus atos explicados como acidentais ou por estarem em grupos belicosos. Assim, gangue é o nome dado a um grupamento de menores de rua; turma, a um agrupamento de jovens de classe média. Menor é a criança pobre e favelada; estudante, rapazes, jovens e meninos são os nomes dados aos que, mesmo sendo igualmente infratores, estão em outra camada social. Isso reafirma o que anteriormente assinalei: menor não é criança.
Outro fato é a questão da Lei: quem mata os meninos de rua é quem deveria proteger a sociedade e não assassiná-la – a polícia. Quem abusa do direito de portar arma e atirar, não medindo as conseqüências do disparo, é o funcionário do órgão que deveria saber onde e quando usar uma arma. A instituição não protege o cidadão. Enfim, as matérias dos jornais reafirmam o que aponto e talvez nos demonstrem em que lugar estamos, ou qual seja atualmente a “cara” do Brasil nesse cenário. Pergunto quais registros de estratégias de sobrevivência esses jovens e crianças possuem? Em que lugar eles cabem dentro do mapeamento de nossas cidades, das nossas megalópoles? As manchetes e reportagens há muito nos mostram que não há um lugar exato, concreto, para eles: não é o morro, não é a favela, mas também os lugares chiques e ricos, os condomínios fechados e os shoppings. Afirmo que essas crianças e jovens não encontram na escola ou em casa, na família, o seu lugar, por isso são anti-sociais ou delinqüentes, porque incomodam os que o rodeiam, removem o que as incomoda e, desse modo, não fazem vínculo, não permanecem no mesmo lugar.
Já falei anteriormente que a agressividade transmutada em destrutividade é um apelo de significação simbólica, um apelo de socorro à sociedade por aquilo que ela deixou de fornecer ao indivíduo, mas que antes era fornecido a ele em forma de segurança, confiança e fidedignidade. Esse processo de invisibilidade social é caracterizado pelo isolamento, pela solidão que é fruto da falta de confiança, confiança essa que nunca se deu entre ele e o outro, pois nunca foi possível o encontro, o reconhecimento de si no outro, da elucidação verbal dos conflitos, da ação solidária e compartida. Isso não é só com a classe dos excluídos. Igualmente, os meninos de classe abastada são afetados por esse processo social de desterritorialização ou de falta de lugar, com a diferença de que eles estão enclausurados nos grandes condomínios fechados, também esvaziados em suas possibilidades de ação e de reconhecimento social, de modo que ambos, pobres ou ricos, buscam afirmar-se de forma destrutiva e excludente no espaço urbano, seja atraindo atenção pelo medo, seja pela perplexidade que causam. Acredito que a destrutividade vista hoje em dia na nossa sociedade advenha dessa invisibilidade social que essas crianças e jovens vivenciam. O território como uma construção social é o lugar onde o sujeito produz a sua subjetividade. Aqueles que não conseguem possuir, em si e fora de si, um território, acabam utilizando a destrutividade como uma forma de sobrevivência e de inscrição no social que o inviabiliza, tentativa de possuir alguma visibilidade e endosso social, nem que seja pelo medo causado ou pelo excesso de atuações.
Afirmo que o que falta a essas crianças anti-sociais, e provavelmente também às não anti-sociais explícitas, é o direito de ser um cidadão. É o direito de ter tido uma família que a suportasse em seus ataques e raiva, que desse a elas limites amorosos ao invés de somente punições ou descaso, no sentido de sempre justificar seus atos anti-sociais como algo da criança (ela é assim mesmo) ou então culpabilizarem sempre o outro (fez isso porque anda com gente que não é boa; meu filho jamais faria isso, ele é um rapaz tão bom...). Faltou a elas ter uma família que assumisse a parte de culpa que lhe cabe nesse latifúndio chamado vida familiar, retirando a criança ou o jovem do lugar de ser o único culpado ou nada culpado por tudo que fez ou faz.
Nesse momento, é interessante pensarmos quem realmente se importa com eles? A família? A sociedade? Talvez se importem, mas colocam, com certeza, neles, ou em quem com eles andam, a culpa de todo o processo. Esse processo se inicia em idade muito tenra, com pequenas perdas, pequenos desapossamentos que, um dia, se transformam em algo sem nome, em um vazio a ser preenchido, se houver esperança. Mais interessante ainda é vermos que esse algo sem nome pode ser reivindicado no sentido de essas crianças saberem, inconscientemente, de quem é a culpa, e a culpa não é delas, pelo menos para esse algo sem nome que dá dentro delas e as fazem atuar no meio para que ele reaja.
Gonzaguinha, através de uma imagem poética, deu voz ao desejo dessas crianças, caso elas pudessem retratar em palavras o que retratam pela destruição, pela violência e pelo medo.
É...
A gente quer valer o nosso amor,(...)
A gente quer carinho e atenção,
A gente quer calor no coração,(...)
A gente quer é ter muita saúde,
A gente quer viver a liberdade,
A gente quer viver felicidade. (...)
É...
A gente quer viver pleno direito,
A gente quer viver todo respeito,
A gente quer viver uma nação,
A gente quer é ser um cidadão,
A gente quer viver uma nação!
No “É” omitido dos versos escritos está a força do mesmo: a constatação de que “é.... existe desejo, existe crença, existem planos... mas...”. Na omissão poética, elíptica desse verbo temos a possibilidade transformada em condicional, no sentido de que há a vontade, mas não a consecução da mesma. Na repetição do “a gente quer”, marca-se o desejo dessas crianças – elas querem, querem muito ser algo ou fazer-se valer como algo para além do distúrbio que causam ou do horror que inspiram.
Ao repetir, enfaticamente, o “a gente quer”, o “Eu lírico”, identificado com a voz dessa gente, marca o desejo não cumprido. Por haver ainda desejo, acredito que essas crianças possuem ainda saídas e nelas aposto, mas precisamos ser ágeis em nossa conduta porque a esperança se perde, o coração endurece e o caminho de volta para “casa” fica muitas vezes inviabilizado. Acredito que, atualmente, vivemos um momento de impasse para esse acolhimento e cuidado para com esses meninos e jovens. A sociedade, perplexa, quer os danos cobrados a quem de direito, só que essa mesma sociedade, num jogo unilateral perverso, esquece que há uma cobrança também do outro lado, seja do muro, seja do gueto, seja das grades de um condomínio: com os atos anti-sociais, essas crianças cobram a parte que lhe cabe nesse latifúndio chamado vida. Esses jovens, sem um referencial familiar que os sustente, buscam na sociedade, na rua, aquilo que não encontram em casa, mas, em seu gesto de procura, o que encontram é o vazio, a falta de lugar, a falta de limites igual ou pior que a de casa, uma lei do cão, ou uma rua sem lei, assim como uma escola sem lei, assim como um bairro, uma cidade sem lei.
Porém, igual à esperança dessas crianças na sociedade, postulo haver saídas, que, hoje em dia, talvez sejam ainda individuais, ou advindas de trabalhos comunitários que não ressoam em todo país. Com a criatividade do ser humano para encontrar soluções, nesses projetos e tentativas, podemos sair da mera utopia para a realidade. Como nos metaforiza Herbert Vianna (4), em “Lanterna dos afogados”, “há uma luz no túnel / Dos desesperados/ Há um cais de porto/ Pra quem precisa chegar”: há um “cais do porto” para essas crianças e jovens. Que seja nas casas onde Winnicott trabalhou e estudou a tendência anti-social, que seja nos trabalhos voluntários feitos nas universidades nos serviços de atendimento psicológico, que seja nos trabalhos em comunidade ou nos atendimentos nos consultórios particulares.
O importante é que acreditemos que há formas de saída do impasse no qual estamos diante da agressividade crescente por parte dessas crianças e adolescentes; o importante é que não esqueçamos que essas crianças e jovens, que sofreram um desapossamento, podem se curar, se curam dele, mas não se esquecem das marcas que sofreram. Essas marcas ficam. No momento atual, diante de parâmetros ainda mutantes e mutáveis em nível social, talvez ainda estejamos dentro de uma grande fluidez, mas penso que, tal qual uma vara, que curvada para um lado, ao ser largada, vai para o oposto, poderá haver um momento em que essa sociedade sentirá que é preciso voltar a parâmetros menos mutantes, para depois chegar a paradigmas que dêem conta dessa nova sociedade e dessas novas formas de subjetivação que estão surgindo dentro desse cenário contemporâneo. Acredito que há esperança, mesmo que seja por um fio, mas há.
Notas:
(1) O analista Donald Woods Winnicott especializou-se em medicina pediátrica e em pscicanálise. Criou a teoria da “transicionalidade”, inovando os estudos sobre a relação entre a realidade psíquica e o mundo exterior. Foi uma das figuras mais importantes da Sociedade Britânica de Psicanálise, da qual foi presidente nas gestões 1956-59 e 1965-68.
(2) Essa expressão foi retirada do livro de TAKEUTI, Norma Missae, No outro lado do espelho: a fratura social e as pulsões juvenis (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002).
(3) Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, foi compositor e cantor. Trabalhou com o grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone. Lá, foi observado pelo então novato cantor/compositor Léo Jaime, que o apresentou a uma banda de rock que procurava um vocalista, o Barão Vermelho. Com o Barão Vermelho, Cazuza niciou sua carreira de cantor. Mais tarde, ele foi infectado pelo vírus da AIDS, precipitando seu desejo em deixar a banda, a fim de ter liberdade para compor e se expressar, musicalmente e poeticamente. A partir dessa separação, Cazuza começa a diversificar sua produção, incorporando de maneira mais marcante elementos do blues.
(4) Herbert Lemos de Sousa Vianna é o vocalista, guitarrista e principal compositor do grupo Os Paralamas do Sucesso, um dos grupos-base do rock brasileiro. Em 2001, Herbert passou pelo momento mais crítico de sua vida. No dia 4 de fevereiro, sofreu um acidente aéreo em Mangaratiba/RJ, quando o ultraleve que pilotava caiu no mar, na baía de Angra dos Reis. No acidente, sua esposa faleceu, e Herbert ficou internado durante 44 dias, parte deles em estado de coma. O músico ficou paraplégico e perdeu parte da memória depois do acidente, porém, em um processo de recuperação gradual, retomou sua carreira, voltando aos palcos, já tendo gravado três álbuns após o acidente.
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Agressividade na infância: um reflexo da violência gerada pela sociedade contemporânea? Entrevista especial com Maria Vitória Mamede Maia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU