O Observatório da realidade e das Políticas Públicas do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos, programa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, apresentou na análise “Saúde da Mulher no Vale do Sinos” dados referentes ao número de óbitos de mulheres em idade fértil, óbitos de mulheres relacionados ao câncer de mama e de colo de útero e dados relacionados à AIDS.
A convite do ObservaSinos, a educadora popular Alda Beatriz Fortes faz a análise crítica dos indicadores apresentados e as realidades sobre a saúde da mulher no Vale do Sinos. Fortes é mestre em Educação popular pela UFRGS e assessora movimentos sociais.
Eis a análise.
A questão saúde, em geral, tem sido tratada a partir de uma visão estreita, da temática da doença – e de doenças específicas –, e não a partir de uma concepção ampla de o que seria uma vida saudável. No caso da saúde da mulher, destaque para os altos índices de câncer de mama, de colo de útero, HIV, entre outros, e, eventualmente, a preocupação com as mortes por abortos inseguros. Neste último caso, sem abordar a temática ampla do aborto – da descriminalização e do direito da mulher sobre o seu corpo e de decidir sobre sua vida – e sem considerar todos os condicionantes para garantir um parto e uma maternidade possível e segura para as mulheres, adultas e jovens, pobres.
Entretanto, entendo que o caminho deveria ser outro: quais as condições para uma vida saudável? Como atuar em saúde preventiva? Como desenvolver um papel ativo nas pessoas – especialmente falando agora das mulheres – para serem tratadas como agentes e não pacientes nessa abordagem? E conceber a temática de forma complexa, a partir das diferentes questões envolvidas, para efetivamente garantir uma vida saudável, um bem viver. Com isso, também reduzir os custos econômicos da saúde, na solução ou na minimização do problema, que no modelo atual exige investimentos sempre insuficientes para as imensas demandas sem responder às necessidades básicas da população.
Partindo da perspectiva de Amartya Sem, de perceber as mulheres como agentes ativos de mudança, promotoras dinâmicas de transformações sociais que podem alterar a vida das mulheres e dos homens, dever-se-ia avançar em ações a partir da concepção da saúde preventiva, garantindo o acesso à informação, à escolaridade e ao mercado de trabalho, como condição básica de cidadania.
Outra condição fundamental aqui no Rio Grande do Sul, especialmente, é garantir alimentação através do acesso a produtos orgânicos, sem agrotóxicos, não transgênicos. E uma renda básica para aquisição desse alimento, garantindo a saúde da família e a formação de hábitos alimentares saudáveis.
Um desafio do cotidiano das famílias hoje é lidar com o tempo das mulheres. A ansiedade e o estresse decorrentes da tripla jornada de trabalho ligada à (ainda) não partilha equitativa das tarefas domésticas, do cuidado com as crianças (e com os idosos, frequentemente) como resultado do processo recente de empoderamento e emancipação feminina, comprometem a qualidade de vida das mulheres, em uma realidade social ainda na incompletude da superação do modelo patriarcal de sociedade.
Ainda na questão das mulheres, nesta sociedade do ter e do parecer em que estamos mergulhadas, um desafio gigantesco é enfrentar a exploração do mercado da beleza sobre a imagem do feminino. E todas as agressões diárias feitas ao corpo feminino e também à natureza, na medida em que se usam (e se produzem, evidentemente) milhares de produtos supérfluos, com vistas a ter o corpo ideal propagandeado na mídia que nos bombardeia o tempo todo, e atinge a nós todas, mas deve ser especialmente forte para a juventude.
Outra questão urgente é a resposta às demandas e necessidades da juventude: acesso (e permanência) a uma escola de qualidade, abordagem da educação sexual nas escolas, conhecimento do próprio corpo, desenvolvimento da autoestima, superação de tabus e preconceitos, uma construção cultural de igualdade de gênero e mútuo respeito. Oportunizar acesso a espaços saudáveis de convivência nas escolas, nas comunidades para conhecer, exercitar e valorizar a boa música, a dança e outras expressões da riqueza cultural do nosso país, sem preconceitos nem discriminações. Já se teve experiências de Projetos Culturais importantes para a Juventude nas periferias, que deveriam ter continuidade com maiores investimentos.
Uma questão nevrálgica é avançar na qualidade dos/as profissionais da saúde e na superação da medicina de mercado, comprometida com interesses estranhos à saúde da população. Essa é uma responsabilidade também das Universidades: a formação de profissionais competentes e éticos, a serviço da vida.
Uma proposta que já foi debatida em reuniões nas comunidades e que deveria ser implementada com urgência é a dos Restaurantes Populares, com preços mínimos, garantindo o acesso às pessoas, trabalhadores e trabalhadoras, e também às populações de rua, um alimento básico que garantiria a nutrição e a vida com maior qualidade. Nesses restaurantes, penso que deveria haver máquinas de lavar roupa, com acesso gratuito às mães, avós e donas de casa, trabalhadoras, enfim, o que garantiria uma maior condição de higiene e alívio no trabalho doméstico. Isso tudo, bem planejado e organizado, não teria grandes custos para o Poder Público e garantiria um mínimo de cidadania para as comunidades das periferias.
As equipes multidisciplinares de Saúde da Família dentro das Comunidades são uma experiência de política pública importante. E podem ter uma ação mais ampla no sentido da prevenção, da mudança de hábitos e na formação cultural das famílias.
Também o Programa de Agentes Populares de Saúde deveria ser ampliado e bem mais qualificado, porque alcança as famílias e suas necessidades de uma forma simples e direta, criando laços nas comunidades, ampliando o acesso à informação e atuando de forma preventiva.
Para que essas coisas básicas aconteçam, faz-se necessário ter governos realmente democráticos e comprometidos com a coisa pública. Para isso, é preciso qualificar e avançar nos processos de participação popular, de democracia direta.
Uma condição decisiva para a radicalização da democracia em nosso país é ter uma mídia pública independente e desvinculada de interesses do mercado e do lucro.
Vejo como ferramentas importantes de formação para a cidadania, a partir da minha experiência em educação popular, a organização das pessoas em fóruns temáticos, tanto para o fortalecimento de sujeitos sociais na sua luta por direitos, como na preparação das pessoas para atuar nos Conselhos instituídos. Evidentemente, a metodologia usada e a qualidade das lideranças – sua postura ética e democrática, tendo em vista os interesses coletivos – são decisivas para a construção e consolidação dos fóruns.
Na luta das mulheres por direitos, os fóruns têm sido espaços importantes de autoconstrução e de aprendizagem e fortalecimento da solidariedade e da cidadania. Também para os trabalhadores e trabalhadoras da reciclagem no Vale do Sinos, cujo Fórum tem sua Plenária sempre no último sábado do mês há mais de dez anos, esse tem sido um espaço muito importante de fortalecimento e organização das Associações e Cooperativas da Região.