Há cerca de um ano um coletivo de entidades e comunidades de ocupações urbanas de São Leopoldo realizou a “Missão pela Moradia Digna” na cidade de São Leopoldo. Este grupo articulado se reuniu a partir de uma provocação feita pela demanda de habitação da Ocupação Justo, que se encontrava em situação de crise com a possibilidade de despejo das mais de 2500 famílias residentes.
Assim, diversas atividades foram desenvolvidas no sentido de colaborar política e tecnicamente com as ocupações, fortalecendo em conjunto a luta pela moradia digna e dando subsídios para os moradores enfrentarem as realidades. Além disso, foi proposto o debate sobre estas realidades com as autoridades locais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como da sociedade Civil.
A Missão pela Moradia Digna foi realizada nos dias 19 e 20 de março de 2019. Esta ação e metodologia têm inspiração nas missões realizadas pela ONU. Ela foi dividida em quatro momentos: visita e diagnóstico sobre a situação de quatro ocupações urbanas, com a identificação das situações de violação de direitos; visita às autoridades dos poderes legislativo, executivo e judiciário do município para apresentar e debater as realidades e indicar a necessidade de soluções; realização de Audiência Pública com a participação de todos os envolvidos neste processo: comunidades e autoridades para um debate amplo e profundo, em vista do encaminhamento de soluções; e, por fim, a elaboração e entrega do relatório da Missão às comunidades e autoridades em vista da implementação de ações para a garantia de moradia digna.
Marilene Maia apresenta o evento pelo direito à moradia (Foto: Lucas Schardong)
Muitas ações foram realizadas pelas entidades copromotoras da Missão. A Universidade potencializou seu compromisso de relação com as comunidades, realizando projetos transdisciplinares, que podem ser demonstrados pela presença junto à Ocupação Steigleder.
As entidades integrantes deste processo foram: Centro de Direitos Econômicos e Sociais – CDES, Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM, Conselho Estadual de Direitos Humanos – CEDH, Comunidade das Missionárias do Cristo Ressuscitado – CMCR, Engenheiros Sem Fronteira – ESF, ONG Cidadania e Direitos Humanos – Acesso; Instituto Humanitas Unisinos – IHU e Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. As comunidades que integraram a Missão foram; Movimento Justo, Steigleder, Vitória e Anita.
Uma das ações apontadas foi a criação do evento “O direito à moradia em direção às cidades sustentáveis: uma agenda para 2020 em São Leopoldo”, que teve como objetivo criar um espaço de espaço de diálogos a partir das experiências das ocupações urbanas de São Leopoldo, ressaltando o papel dos diversos atores que atuam na consolidação dessas práticas desde uma perspectiva de defesa da moradia, dignidade humana e da efetividade dos direitos humanos. O seminário promoveu a revisão das agendas construídas na Missão pela Moradia Digna, tendo como horizonte a afirmação de comunidades e cidades sustentáveis nos próximos anos. Além disso, participantes convidados apresentaram os seus trabalhos realizados, transmitindo experiências e contribuindo no fortalecimento do grupo. Também foram apresentados no seminário os movimentos transdisciplinares realizados pela Unisinos, que articulou diversos cursos na luta pela moradia digna.
No Brasil, mais de seis milhões de famílias ou 20 milhões de pessoas precisam de moradia. Esta desigualdade imposta no país é a evidência da falta de cuidado com políticas públicas essenciais, como as elaboradas na Constituição Federal. A lei maior define a função social de uma propriedade, ou seja, que ela deve ser utilizada para fins de moradia ou comerciais e não ficar ociosa. Além disso, conforme o Estatuto da Cidade, sancionado em 2001, todo cidadão brasileiro tem direito assegurado de acesso à terra urbana, à moradia e outros princípios básicos de habitação.
O déficit habitacional é uma realidade desigual em quase todo o planeta. O seminário “O direito à moradia em direção às cidades sustentáveis” foi organizado para que o grupo articulado e demais envolvidos possam entender como se encontra atualmente a situação da questão da moradia digna no município de São Leopoldo e para apresentar como as entidades estão contribuindo com as respectivas experiências para a direção das cidades sustentáveis. A troca de saberes e articulações tem como objetivo criar uma agenda de luta contínua e unida e preparar forças para o ano de 2020.
Conforme a coordenadora do Observatório da realidade e das políticas públicas do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos, programa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Marilene Maia, a articulação no final do passado deu frutos em diversas perspectivas e também para a Unisinos. “Muitos alunos nos disseram que foi o melhor dia de aula quando participaram da audiência em que os moradores apresentaram suas realidades”. Para Marilene, a continuidade da missão e o seminário possibilitaram momentos de construção pela universidade e ressignificação do conhecimento com a aproximação das comunidades.
O secretário municipal de Habitação, Nelson Spolaor, lembrou das organizações das famílias nas mais diversas ocupações e salientou a dificuldade em conseguir recursos com o Governo Federal. “Os governos podem melhorar ou piorar a vida do povo”, afirma. Para o membro da direção gaúcha do Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM, Cristiano Schumacher, é preciso construir alternativas que respondam ao dilema da luta pela moradia e que essa construção deva ser feita em conjunto com os moradores, a academia e o poder público. “Estamos vivendo momento de cortes e leis arbitrárias desde 2017. Precisamos de alternativas verdadeiras, que possam construir um caminho para sair desse momento difícil”, alega. Ele também destacou a importância da Missão pela Moradia Digna. “A missão tem que continuar e ser contínua, precisamos desse movimento para trabalhar a moradia como direito fundamental e não como mercadoria”.
O coordenador jurídico do Centro de Direitos Econômicos e Sociais – CDES, Cristiano Müller, destacou as ações da ONG, que trabalha como apoio jurídico para as ocupações e se prontificou para colaborar na luta, como já faz diariamente, pelo direito à moradia. Ele também fez uma crítica aos ataques que o setor social vem sofrendo e o CDES apresentou, ainda, o trabalho realizado mapeando o cenário nacional das ocupações e que será disponível através de um aplicativo.
O evento também contou com a participação do militante histórico da defesa do direito à cidade e advogado da Central de Movimentos Populares, Benedito Barbosa. Ele apresentou os processos de luta pela moradia na cidade de São Paulo, onde é atuante, e destacou a semelhança entre o seu estado e o Rio Grande do Sul na precarização das populações de ocupação e também na luta e resistência das mesmas. Além disso, Benedito apresentou iniciativas desenvolvidas para a agenda de resistência, educação e empoderamento popular. “Precisamos construir um auto-conhecimento coletivo e criar mais saídas para estas situações. Uma destas medidas e trabalharmos coletivamente. Temos que sair daqui mais fortes, articulados e amarrados para derrotar aqueles que querem nos derrotar”, afirma.
Benedito Barbosa fala sobre a luta por direitos e resistência popular (Foto: Lucas Schardong)
Outra palestrante do evento foi a professora Sabrina Durigon, que trabalha na Clínica de Direitos Humanos Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, no projeto “Direito Humano à Moradia Adequada“. A clínica apresenta três componentes, que são: Projetos Jurídicos, Projetos de Intervenção e Seminários. Ela ressaltou o destaque das universidades no papel de transformação do pensamento dos alunos que têm interesse em colaborar com o acesso à moradia. Para ela, muitas vezes os estudantes partem de uma perspectiva assistencialista e isso não deve ser corroborado. Sabrina apresentou modelos que resultaram no sucesso de negociação entre ocupações e poder público através de usucapião coletivo, algo raro até o momento.
A pesquisadora do Centro de Direitos Econômicos e Sociais - CDES, Karla Moroso, abriu a sua fala revelando a importância de conhecermos o contexto de desigualdade em que nos encontramos no momento e para que assim se possa desenvolver subsídios de luta. Ela também exemplificou este fato com um dado revelador: Os seis homens mais ricos do brasil têm a mesma riqueza que os 50% mais pobres da população. Karla também apresentou o seu trabalho de assessoria técnica em habitação e reafirmou a importância da coletividade nos processos e que o mercado dos arquitetos, o qual ela se encontra, deveria seguir o código de ética e pensar mais no direito à moradia.
Por último, a defensora pública do Rio Grande do Sul Isabel Wexel Maroni, que é Dirigente do Núcleo de Defesa Agrária e de Moradia da Defensoria Pública do RS, apresentou a sua experiência enquanto atuante e parceira na causa da luta pela moradia digna. Ela ressaltou a importância do empoderamento das comunidades e a necessidade de realizar a conciliação entre todas as partes, de forma justa e igualitária.
Ocupar: resistir para morar
O Seminário Direito à moradia em direção às cidades às cidades sustentáveis – uma agenda para 2020 na cidade de São Leopoldo constituiu um espaço de diálogos a partir das experiências das ocupações urbanas de São Leopoldo, ressaltando o papel dos diversos atores que atuam na consolidação dessas práticas desde uma perspectiva de defesa da moradia, dignidade humana e da efetividade dos direitos humanos. Ao final do seminário foram assumidos compromissos pelas entidades e participantes de:
- Elaboração de um manifesto público sobre as realidades da moradia no município, no estado e Brasil, reveladoras das desigualdades, ausência de políticas públicas para a moradia e de todos os direitos e serviços para sua garantia com dignidade.
- Formação de Fórum em defesa à Moradia Digna, que reúna grupos de ocupações e de apoio às lutas pela moradia, dando visibilidade, socializando e articulando experiências em vista da afirmação de políticas públicas para a Moradia nas esferas municipal, estadual e nacional. Monitorar e publicizar as lutas e suas expressões.
- Afirmação da garantia do despejo zero, enquanto não se apresentarem políticas para a garantia de moradia para toda a população que dela necessitar.
- Realização de Agenda para manifestações públicas para dar vistas às realidades da questão da moradia e da realidade da população que vive este não direito, assim como dos seus defensores/as.
- Promoção de espaços e processos de formação para os defensores públicos populares dos direitos à moradia e direitos humanos, assim como da formação permanente e continuada para profissionais das diferentes áreas (advogados, arquitetos, engenheiros, assistentes sociais, médicos ...) na defesa dos direitos à moradia.
Ocupação Justo: uma história de resistência ameaçada
Uma das motivadoras da Missão pela Moradia Digna, a Ocupação Justo teve início entre os anos de 1998 e 1999, com mais de 2500 famílias. Conforme relatos de moradores, hoje a Justo abriga mais de oito mil pessoas em uma área que estava atrasada com o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU há pelo menos 15 anos e, portanto, não cumpria sua função social.
Hoje a comunidade viabiliza inúmeras ações de apoio à organização e proteção social de crianças, adolescentes, mulheres e famílias. Desde o ano de 2015 vem se consolidando a constituição da cooperativa dos moradores com o intuito de aquisição da área. A comunidade sempre se mostrou disponível à negociação da terra. A ideia de regularizar as moradias é um sonho que permanece no imaginário da população. Este movimento vinha trazendo bons frutos nos últimos anos e avançou bastante nesse sentido. No entanto, recentemente a comunidade foi surpreendida com nova medida do judiciário.
Foi expedido um despacho determinando a reintegração de posse, com a relação de 246 lotes, onde hoje residem mais de 600 famílias. No documento foram ignorados os argumentos da defesa dos moradores, assim como procedimentos solicitados pela Defensoria Pública Estadual por meio da Lei nº 13.465/2017 - REURB, que estabelece os procedimentos de regularização fundiária em áreas públicas e privadas, com suspensão dos processos judiciais em até 180 dias para a análise do município.
Além disso, a comunidade não fez parte das tratativas que resultaram neste despacho. É importante lembrar que o direito à moradia é constitucional. Este fato é ainda mais agravado pois estamos vivendo um momento de crise no Brasil, onde as populações mais precarizadas são as que sofrem mais. Nesse sentido, o despejo também seria o gerador de um conjunto de problemas sociais, já que grande parte das famílias não têm para onde ir.
Seminário mobilizou diferentes grupos pela luta ireito à moradia digna (Foto: Lucas Schardong)
Por isso, a Ocupação Justo está realizando diversos atos de luta para não ficarem sem suas residências, que possuem a há mais de 20 anos. Os moradores pedem a viabilização dos processos de negociação com a participação do poder Executivo e da comunidade para a garantia do direito à moradia das famílias moradoras da Ocupação.
Assista o vídeo da ocupação Justo aqui.