20 Setembro 2016
Nem a Bíblia nem as leis biológicas que regulam a reprodução humana oferecem qualquer prova de que as relações sexuais devem ser abertas em todas as ocasiões à procriação, ou de que usar contraceptivos ‘artificiais’ é sempre imoral ou ‘intrinsecamente errado’. Ao contrário, provas abundantes da própria Bíblia, da biologia evolutiva e da sociologia indicam que as pessoas se envolvem em uma relação sexual por uma variedade de motivos e fins legítimos, dos quais a procriação é apenas um, e que nem a capacidade biológica nem a intenção de procriar são intrínsecas a todo ato sexual. Consequentemente, o uso de contraceptivos para o planejamento familiar ou para uso profilático pode ser uma escolha de responsabilidade.
A reportagem é de Ingrid Colanicchia, publicada na revista Adista News, n. 31, 17-09-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É esse, em síntese, o núcleo do documento redigido por um grande grupo de teólogos e estudiosos, a pedido do John Wijngaards Catholic Research Centre (fundado em 1983 pelo teólogo inglês John Wijngaards, a fim de promover a "formação de uma fé adulta"), que, em preparação para o 50º aniversário da publicação da encíclica Humanae vitae, quis reunir um grupo de trabalho interdisciplinar de especialistas para rever a doutrina em matéria de contracepção e para "encorajar a hierarquia católica a modificar a sua posição sobre os chamados contraceptivos ‘artificiais’".
Divulgado de forma reduzida em agosto e aberto à assinatura (já somam uma centena as assinaturas), o documento será apresentado oficialmente em Nova York, na sede das Nações Unidas, no próximo dia 20 de setembro.
"A proibição de usar contraceptivos ‘artificiais’ para o propósito do planeamento familiar se baseia nos argumentos levantados na encíclica Humanae vitae do Papa Paulo VI", lembra o documento na abertura. "Tais argumentações têm sido repetidas muitas vezes e nunca foram substancialmente modificadas nos pronunciamentos magisteriais sucessivos dos últimos 50 anos. Esta declaração – anunciam os signatários – avalia a sua correção."
Em relação aos argumentos baseados na lei natural – que, estabelecida por Deus, quer que todo ato sexual tenha um "significado" procriativo e que, portanto, é "intrinsecamente errada" qualquer ação deliberadamente contraceptiva – os teólogos não têm dúvidas: "Não se sustentam em provas relevantes".
"A argumentação da Humanae vitae é de que, como as ‘leis da concepção’ biológicas revelam que a relação sexual tem uma ‘capacidade de transmitir a vida’ (HV 13), todo e cada ato de relação sexual tem um ‘significado’ procriativo (HV 12), uma ‘finalidade’ (HV 3) e uma ‘relação intrínseca’ com a procriação (HV 11). Mas isso interpreta erroneamente as provas biológicas. A relação causal entre a inseminação e, por outro lado, a fecundação, a implantação e, por fim, a procriação é estatística, mas não necessária. A grande maioria dos atos de relação sexual não têm a ‘capacidade’ biológica para a procriação e, portanto, não podem ter a procriação como a sua ‘finalidade’ e ‘significado’."
Portanto, não é correto afirmar que todo ato individual de relação sexual sempre deve "significar" ou envolver a procriação, ou que as pessoas envolvidas em uma relação sexual sempre devem estar abertas à procriação para agir de modo moral.
Além disso, para os signatários, afirmar que "os seres humanos não podem interferir nas leis biológicas que regulam a reprodução humana, porque eles foram criados por Deus, está em contradição com a prova observável de como os seres humanos interagem com a ordem criada": "Como agentes de razão, os seres humanos têm uma capacidade única de modificar intencionalmente o calendário das probabilidades inerentes às leis físicas, químicas e biológicas da natureza. Essa é uma realidade da vida cotidiana: por exemplo, qualquer tipo de intervenção médica, partindo de algo tão insignificante quanto tomar um analgésico até algo tão cheio de consequências quanto uma cirurgia cardiovascular, afeta as probabilidades de cura, de sobrevivência, de morte etc. Além disso, a decisão de não intervir nos processos naturais também afeta essas probabilidades, assim como a escolha de intervir. A questão moral – é a opinião dos signatários – não é entre alterar ou não o calendário das probabilidade dentro dos processos naturais, mas sim de saber se, quando e como fazer isso leva ao florescimento humano e ao florescimento de toda a criação".
Outro argumento que o documento desmonta é o que se fundamenta na imutabilidade da doutrina sobre o assunto. "De acordo com a teologia católica, para que uma doutrina – incluindo uma doutrina moral – possa ser definida infalivelmente e, portanto, irreformavelmente, ela deve ou ser revelada ou indispensável para a defesa ou explicação da verdade revelada. Se não for, então ela não pode ser definida como infalível. O ensinamento de que o uso de contracepção ‘artificial’ é um mal intrínseco sempre e em toda a parte não é revelado, nem nunca se mostrou essencial para a verdade da revelação cristã. Por conseguinte, ele não pode se tornar o objeto de uma definição infalível."
Portanto, concluem os teólogos, "o apelo a uma suposta tradição constante do ensino magisterial sobre o assunto não pode, por si só, resolver a questão e encerrar a discussão, porque os requisitos para uma definição infalível não são cumpridos."
"A moralidade de qualquer ação humana é determinada pelos motivos e pelas intenções do agente, pelas circunstâncias da situação e pelas consequências dessa ação", continua o documento. "O uso de contraceptivos modernos tem muitos benefícios comprovados: dentre outras coisas, ele torna muito mais fácil para os homens e para as mulheres o fato de planejar uma família, reduz substancialmente a mortalidade materna e infantil, e o aborto. Por outro lado, pode aumentar a saúde materna e infantil. As provas também sugerem que o planejamento familiar via contraceptivos modernos leva a melhorias substanciais na educação e na contribuição das mulheres para o bem comum."
"Por causa da amplitude excepcional dos seus potenciais benefícios – lembram os signatários – a promoção do planeamento familiar via contraceptivos modernos foi considerada como uma contribuição essencial para todos os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio" estabelecidos pela ONU. "A decisão de usar contraceptivos modernos – concluem – pode ser tomada para uma série de motivos moralmente dignos e, portanto, pode ser ética."
Além disso, quanto ao uso de contraceptivos físicos para fins profiláticos – ou seja, a fim de reduzir a probabilidade de difusão do vírus HIV ou de outras doenças sexualmente transmissíveis –, de acordo com os signatários, "pode ser não apenas responsável, mas também moralmente imperativo".
Em suma, concluem os teólogos, "não há nenhum fundamento, tanto a partir da Bíblia quanto da natureza, para sustentar o atual ensino da Igreja Católica sobre o assunto". Por isso, o documento, dada a magnitude da epidemia de HIV/Aids e considerando-se que 25% das escolas e centros de saúde em nível mundial é composto por estruturas católicas, recomenda que as autoridades competentes invertam a rota, emitindo um documento magisterial em que se afirme que "o uso de contraceptivos modernos não abortivos para propósitos profiláticos pode ser moralmente legítimo e até mesmo moralmente obrigatório".
E mais: "A declaração – prossegue o documento – poderia incluir uma disposição explícita que permita a distribuição de tais contraceptivos modernos para propósitos profiláticos por estruturas de saúde católicas".
Sobre o uso dos sistemas contraceptivos para fins de planejamento familiar, os signatários recomendam que a Igreja se coloque à escuta dos teólogos cristãos especializados na matéria. "Também recomendamos – continuam – que a sua opinião seja buscada sobre outras áreas da ética sexual católica, que provavelmente serão afetadas por uma revisão do atual ensino que proíbe o uso de contraceptivos para o planejamento familiar, ou seja, a avaliação negativa da masturbação, das relações homossexuais e da fertilização in vitro".
"Se as provas e os argumentos levantados neste relatório forem aceitos, o documento magisterial oficial recomendado deveria revogar a proibição absoluta do uso de contraceptivos ‘artificiais’ e permitir o uso dos modernos contraceptivos não abortivos para propósitos tanto profiláticos quanto de planejamento familiar. Assim que possível, depois da publicação de tal documento magisterial oficial, e sob a condição das suas conclusões, as Conferências Episcopais nacionais deveriam recomendar que as estruturas de saúde católicas disponibilizem os modernos contraceptivos não abortivos."
"A aceitação da Humanae vitae como marca de ortodoxia – continuam – deveria ser removida de todos os procedimentos de seleção, incluindo o dos bispos e dos docentes de instituições acadêmicas católicas. Sempre que possível, o dano à carreira de estudiosos católicos que foram censurados por se pronunciarem em defesa do uso ético dos modernos contraceptivos deveria ser desfeito."
Não é a primeira vez que o John Wijngaards se faz promotor de iniciativas desse tipo. Ainda em 2013, em vista do Sínodo dos Bispos sobre a família convocado pelo Papa Francisco para o ano seguinte, o centro de pesquisa teológica tinha divulgado um manifesto em que destacava que o ensinamento da Igreja sobre o matrimônio e a sexualidade se baseia em "noções abstratas e já superadas pela lei natural" ou sobre concepções não fundamentadas cientificamente, sendo, assim, incompreensível para a maioria dos fiéis.
Também desta vez, como há três anos, o documento já recebeu inúmeras assinaturas de personalidades do mundo teológico e acadêmico: de Maria Pilar Aquino, professora da San Diego University e cofundadora da Academy of Catholic Hispanic Theologians, a Gregory Baum, da McGill University, de Montreal; de Tina Beattie, professora da University of Roehampton, de Londres, a John F. Haught, do Woodstock Theological Center da Georgetown University; do teólogo de origem vietnamita Peter Phan ao bispo emérito de Sidney, Geoffrey Robinson; incluindo ainda Charles E. Curran, ex-professor de Teologia Moral da Catholic University of America.
"O documento – explica este último na sua declaração de apoio – mostra de modo claro, conciso e convincente por que a contracepção artificial para fins de planejamento familiar pode ser uma escolha moralmente boa e até mesmo obrigatória para os casais. Reconhece-se o papel do magistério hierárquico na Igreja Católica, mas, com precisão, salienta-se que o ensinamento que condena a contracepção artificial não é um ensinamento infalível. A declaração – continua Curran – se baseia implicitamente na abordagem de Tomás de Aquino à compreensão da relação entre autoridade e verdade. Aquino levantou a questão: algo é bom porque é ordenado ou é ordenado porque é bom? Para Tomás de Aquino, algo é ordenado porque é bom. A autoridade – concluiu – deve se conformar com aquilo que é bom."
Confira a declaração e a lista completa dos signatários aqui.
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"É hora de rever a Humanae vitae": um apelo do mundo teológico e acadêmico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU