30 Junho 2016
Com o Concílio pan-ortodoxo de Creta, a Ortodoxia – com a sua identidade tradicional – entrou no mundo global, afirmando como é arbitrário "assimilar a Igreja a um conservadorismo irreconciliável com o progresso da civilização". Ou, melhor, reiterou que não há futuro prescindindo da experiência espiritual.
A opinião é do historiador italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 29-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A linguagem ortodoxa parece hostil à mídia. De fato, o significado do Concílio pan-ortodoxo de Creta, que se concluiu no domingo passado, não é imediatamente decifrável. A única notícia recebida parece ser a rejeição de búlgaros, georgianos, antioquenos e russos de se unirem em Creta às outras 10 Igrejas ortodoxas.
Um evento menor? Não foi assim. O Patriarca Bartolomeu quis celebrar o Concílio apesar das ausências. E foi um evento especial para os 290 participantes. Estes, que se encontraram como não ocorria há muitos séculos, sentiram e mostraram que a Ortodoxia não é uma federação de Igrejas nacionais, mas uma única Igreja com uma visão do mundo.
O Patriarca Daniel da Romênia saudou o Concílio como "acontecimento raro e, ao mesmo tempo, o início da normalidade": a prática sinodal é a norma na Ortodoxia. Porém, foi necessária a paciência do Patriarca Bartolomeu, apoiado pelo Metropolita Emmanuel da França e por outros, para chegar ao evento.
Uma semana de Concílio representou um fato sentido como libertador de perspectivas nacionais inadequadas e de polêmicas medíocres, cuja consistência escapa à maioria. Bartolomeu presidiu o evento com autoridade, mas também com grande capacidade de integração das diversas sensibilidades.
A Ortodoxia – com a sua identidade tradicional – entrou no mundo global, afirmando como é arbitrário "assimilar a Igreja a um conservadorismo irreconciliável com o progresso da civilização". Ou, melhor, reiterou que não há futuro prescindindo da experiência espiritual.
Porém, muitos falaram de um Concílio "manco", por causa da ausência da grande Igreja Russa. Certamente incompleto. Cada Concílio – para os ortodoxos, ao contrário dos católicos – não é apenas a celebração da assembleia: tem uma segunda fase, não menos importante, a acolhida do povo.
Escrevia o teólogo russo da diáspora Paul Evdokimov: é preciso que cada decisão conciliar "passe pela recepção do povo da Igreja...". Não há papa que valide o Concílio. Agora, abre-se o processo de recepção, do qual também podem participar os ortodoxos não representados em Creta (em que os outros cristãos podem ter um papel).
Além disso, o patriarca russo, Kirill, às vésperas do Concílio, embora não reconhecendo-o como pan-ortodoxo, expressou "respeito": "Que não nos perturbe o fato de que as opiniões das Igrejas-irmãs (…) se separaram". E reiterou: "Nós continuamos sendo uma única família ortodoxa...".
Os críticos de Kirill também reconhecem que os russos não sabotaram o Concílio, mas temeram as suas divisões internas. Agora, muito está em jogo em torno da mensagem do Concílio. Não se pense em algo semelhante ao corpus elaborado pelo Vaticano II. No conjunto, porém, os textos têm um valor. Mostram como a "prioridade" do Concílio foi a unidade através de uma estrutura conciliar. Condenam qualquer um que rompa a unidade, olhando para os tradicionalistas de cada Igreja.
A Ortodoxia é um mundo plural, nem por isso necessariamente dividido. Hoje – diz o Concílio – a Ortodoxia se qualifica como modelo de "unidade na pluralidade" diante da "homogeneização redutiva" do mundo global: "A Igreja Ortodoxa se propõe a proteger a identidade dos povos e reforçar o caráter local".
Os pequenos povos também têm direito à identidade particular diante das estruturas homologantes da globalização cultural e econômica (o Concílio se opõe à "autonomia da economia"). Contesta-se um mundo de poder único, por assim dizer, monárquico.
Em todos os campos, afirma-se a força do diálogo (embora na fidelidade à verdade e à tradição): diálogo com os não ortodoxos ("heterodoxos" em documentos, em grego), as religiões não cristãs, as sociedades, pela paz.
Não é uma posição irrelevante em um mundo de contraposições emotivas, em um Leste Europeu fascinado pelos muros. O difícil debate sobre os ortodoxos na diáspora (onde eles são minoritários e divididos de acordo com as origens nacionais) mostra como o grande mundo fora das nações ortodoxas os muda profundamente. A diáspora russa na França, depois da Revolução de Outubro, criou – por exemplo – uma feliz contaminação teológica e cultural com o pensamento ocidental.
Os textos do Concílio falam do "secularismo" com severidade, mas também com parcimônia. Nessas páginas, sobrepõem-se as dores contemporâneas: a guerra (condenada como fruto do mal), o fundamentalismo, os refugiados, a crise ecológica, a manipulação midiática, o tráfico de seres humanos, o uso descontrolado da biomedicina...
A mensagem conciliar mostra uma Ortodoxia não indiferente "aos problemas do homem (…) mas, ao contrário, participa das suas angústias". O Concílio – declara-se – "abriu o nosso horizonte sobre o mundo contemporâneo diversificado e multiforme. Ressaltou que a nossa responsabilidade no espaço e no tempo é sempre na perspectiva da eternidade".
Com uma só voz, as Igrejas ortodoxas disseram que o progresso também se faz através dos "valores espirituais eternos". A vontade generalizada é que esse Concílio seja o primeiro de uma série.
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Ortodoxia: "unidade na pluralidade" diante da "homogeneização redutiva" do mundo global. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU