27 Junho 2016
Acordamos hoje chocados com o resultado do #Brexit, de tal forma que estou lendo os escritos de pessoas afirmando que o próprio anúncio do referendo foi feito de maneira inadequada. Apesar de me sentir contrariado com o resultado, não concordo com essa opinião. A legitimidade do referendo do #Brexit não pode ser questionada de maneira alguma. Tampouco sua oportunidade.
O comentário é de Amalio Rey, publicado em seu blog, 24-06-2016. A tradução é de Henrique Lucas Denis.
Amalio Rey é fundador e diretor da eMTtools, empresa com sede em Málaga, especializada em pesquisa, consultoria, curadoria de conteúdo e formação em modelos avançados de gestão de pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica e licenciado em Economia Internacional pelo Instituto Superior de Relações Internacionais e Mestre em Análise e Gestão da Ciência e Tecnologia pela Universidade Carlos III de Madrid.
Qualquer um que conheça a realidade britânica sabe que este era um dilema que inquietava uma parte significativa da população há algum tempo. Portanto, se algo afeta os cidadãos de uma forma tão determinante, como a questão do vínculo com a UE, é lógico que uma consulta deve ser feita e que o resultado deve ser pronunciado de maneira soberana. Os mesmos critérios utilizados para reconhecer a validade do referendo na Escócia devem ser aplicados à consulta do #Brexit.
Mas o #Brexit evidencia a tensão entre legitimidade e eficácia que sempre existiu nos referendos. Por um lado, como expliquei no parágrafo anterior, o direito dos povos de se pronunciarem (e decidirem) sobre as coisas relevantes que lhes dizem respeito , é inquestionável. Essa é a essência da democracia e da legitimidade que é invocada em seu nome. Mas, por outro lado, discute-se a respeito de uma dúvida plausível sobre a preparação dos cidadãos britânicos comuns para tomar uma decisão tecnicamente tão complexa, e tão transcendente a longo prazo, quando isso requer lidar com uma grande quantidade de dados, compreender os mecanismos sofisticados do funcionamento da União Europeia e estudar o impacto das interdependências atuais e futuras, o que provavelmente não esteja ao alcance de um eleitor comum. Não é apenas uma questão de desconhecimento, mas também de tempo para se informar, algo que geralmente não se faz.
A dúvida que estes processos colocam sobre a mesa é se está conseguindo legitimidade em detrimento da eficácia, isto é, se poderemos nos conformar com a opinião coletiva legítima que nos leve a uma má decisão. Este é um dilema que, por definição, é insolúvel, porque pensar em uma solução alternativa com base em especialistas, em um "comitê de sábios", também levanta sérios inconvenientes. Além disso, tampouco me atreveria a descartar que isso possa se tratar de um falso dilema, ou seja, que seja possível conciliar legitimidade com eficácia, desde que seja feito sob certas condições (de acordo com a situação do processo). Não tenho (ainda) uma resposta definitiva para isso, e já fiz minhas conjecturas a respeito desta questão no artigo: Como você espera que as pessoas comuns entendam temáticas complexas?
Começar um processo de consulta popular me parece, neste caso, correto e legítimo, mas me questiono seriamente sobre se o "sistema de votação" (método para converter o conjunto das preferências individuais em uma decisão coletiva) utilizado no #Brexit é o mais idôneo. Vou repetir os argumentos que expus neste outro artigo.
A saída do Reino Unido da União Europeia parece-me uma mudança muito séria, estrutural e com impacto a longo prazo (pois afetaria várias gerações) para que uma decisão desse calibre seja tomada por uma maioria simplória de mais de 50%. Sei que esta é uma questão delicada, que pode levar a um longo debate e que há muita teoria sobre isso. Mas, minha intuição me diz que uma decisão dessa natureza deveria exigir o respaldo de uma maioria qualificada, isto é, de uma super maioria, não sendo suficiente para isso, uma maioria simples, como foi o caso. Não sei como definir a mínima porcentagem de votos, para isso seria importante a presença dos especialistas, mas creio que seria algo acima de 60%/40%.
Digo isto porque, o que hoje é essa frágil porcentagem de 52%-48%, amanhã pode ser 48%-52%. É perturbador imaginar que com a pequena mudança de opinião de 1% dos eleitores britânicos, o futuro de sua relação com a UE mudaria radicalmente. Um resultado tão apertado é demasiadamente instável para tudo o que está em jogo. O referendo da Escócia também foi discutido nesses termos, mas parece-me um erro grave que, em casos como estes, se invoque a maioria simples com essas margens tão estreitas. Insisto, quando o impacto de uma decisão coletiva pode afetar várias gerações, como é o caso, é necessário escolher um mecanismo que proteja o sistema de impulsos conjunturais. Por esse motivo, existe o sistema de maioria qualificada, que reduz significativamente a probabilidade de tomar uma má decisão. Este é um exemplo do que eu disse antes, de que talvez haja soluções, de acordo com a situação, que nos ajudem a atenuar as tensões entre legitimidade e eficácia.
Ainda que os referendos costumem ser justificados por razões contextuais, não devemos ser ingênuos, porque também é verdade que muitas vezes o processo de alcançar os resultados se acelera, e inclusive se torna possível, pela influência de uma série de forças e interesses de qualidade democrática duvidosa. Podemos considerar, por exemplo, o papel desempenhado por líderes carismáticos ou partidos demagógicos, que só se movem em busca de mais poder, bem como o papel dos meios de comunicação geridos por interesses confusos aos quais convém um determinado resultado. No #Brexit, o impacto destas duas forças (lideranças e mídias) parece ter sido determinante. Mas não vamos exagerar. Se houver uma decepção ou inquietude estrutural, mais cedo ou mais tarde ela virá à tona para reivindicar um canal de expressão. Por outro lado, a manipulação de líderes e meios só tem efeito decisivo quando as posturas estão equilibradas, isto é, quando a consulta é muito disputada; porque se existe uma clara preferência, é difícil que estes agentes revertam a situação.
Antes de terminar, não quero esquecer uma última questão relativa ao #Brexit. Todas as análises que li coincidem em reconhecer que o procedimento para a saída do Reino Unido da União Europeia está cercado de incógnitas. Ou seja, que o protocolo é ambíguo, e possibilita várias interpretações. Não entendo. Quando se cria uma organização ou um clube, os procedimentos e normas para aqueles que queiram deixar o grupo sempre têm de ser previstos. Se você decidir entrar, você também pode querer sair. Alguns preferem a política do avestruz, evitando deixar essa questão clara, acreditando que dessa forma se impediria que considerassem a saída como uma opção viável, mas a vida não funciona assim. Além de irresponsável, é um sinal de arrogância supor que a criação de algo possa ser tão boa a ponto de que ninguém queira sair. O #Brexit reflete isso, e deveríamos aprender com o que está acontecendo.
É incompreensível que a UE não tenha definido e legislado processos e condições de saída de qualquer membro de forma clara, porque essas orientações influenciam a avaliação feita por um membro sobre a conveniência de sair ou não. Os custos envolvidos na saída afetarão, e muito, o balanço que cada cidadã(o) faz para tomar a decisão sobre deixar o grupo. Se as condições de saída são ambíguas, abre-se caminho para o populismo e para a demagogia, como parece ter sido o caso.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
#Brexit: legitimidade e eficácia dos Referendos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU