Por: André | 17 Junho 2016
“Como pai e irmão”, tenho medo de que “vocês comecem a deslizar para o caminho da corrupção”. Estas são passagens da carta que o Papa Francisco enviou aos diretores da Fundação Scholas Occurrentes para pedir que não aceitem uma milionária doação do governo argentino. Frases até agora desconhecidas, que explicam os verdadeiros motivos da preocupação de Francisco. Mal estar que nunca esteve relacionado a uma “grosseria” com o presidente Mauricio Macri, nem se originou do “666”, o número da besta.
A reportagem é de Andrés Beltramo Álvarez e Andrea Tornielli e publicada por Vatican Insider, 16-06-2016. A tradução é de André Langer.
“Perdoem-me se isto ofende vocês, mas é um deslizar suave e quase imperceptível”, um deslizar que depois “contagia”, que “se justifica” e finalmente termina-se “pior do que no começo”. Trata-se, acrescentou, de um “caminho escorregadio e cômodo, que nós teríamos razões para justificar, mas que mata”. São palavras inequívocas de Jorge Mario Bergoglio, às quais o Vatican Insider teve acesso.
Elas foram escritas duas semanas atrás, quando tomou conhecimento, pela imprensa, de que o governo argentino tinha aprovado dar – mediante o Decreto 711/16 – a quantia de 16 milhões e 666 mil pesos à Fundação Scholas Occurrentes. Ele não gostou da soma nem do fato de que a doação fosse apresentada publicamente como um “gesto de distensão” entre a Casa Rosada e a Casa Santa Marta. Como se a relação diplomática bilateral dependesse do dinheiro.
No dia 29 de maio, no encerramento do Congresso Mundial da Scholas no Salão Novo do Sínodo do Vaticano, o subsecretário de Culto argentino, Alfredo Abriani, anunciou, na presença do Papa, a vontade do governo de apoiar a obra. Mas se falou da quantia nesse momento. E nem mesmo os dirigentes da fundação, José María del Corral (presidente) e Enrique Palmeyro (secretário) explicaram ao Papa em que consistia a ajuda.
No dia seguinte, ao tomar conhecimento dos detalhes, Bergoglio decidiu intervir. Escreveu a mencionada nota, incluindo outras frases. Além disso, solicitou-lhes abertamente para não aceitar a doação e pediu um recibo para confirmar a recusa. Ordem que foi cumprida no dia 09 de junho passado.
Como já se tinha publicado, essa mensagem fez referência às dificuldades econômicas que seu país atravessa: “O Governo argentino precisa enfrentar tantas necessidades do povo, que não tem o direito de pedir-lhe um centavo”. Acrescentou que, para livrar-se deste risco da corrupção, são necessários “austeridade, pobreza e trabalho nobre. Sejam apóstolos de uma mensagem e não empresários de organizações internacionais”.
E, mais adiante, apontou: “Eu prefiro uma pelada em um campinho comum de bairro, mas como alegria, do que um grande campeonato em um estádio famoso, mas salpicado de corrupção”. Referia-se aos jogos inter-religiosos da paz, que nasceram como iniciativa original do jogador de futebol Javier Zanetti, mas depois foram capitalizados pela Scholas e representaram mais de uma dor de cabeça para o Papa.
O primeiro jogo aconteceu em 01 de setembro de 2014 no Estádio Olímpico de Roma. Contou com a presença de grandes estrelas do futebol, na ativa ou já aposentadas, como Diego Armando Maradona, Carlos Valderrama, Roberto Baggio e Javier Mascherano, entre outros. Nos últimos meses houve dois anúncios malogrados da segunda partida, antes que, finalmente se comunicasse que esta será realizada no próximo dia 10 de junho na cidade argentina de La Plata.
Mesmo com os apelos do Papa à sobriedade, a Scholas persiste na exploração publicitária deste jogo e da própria imagem de Francisco. Uma apresentação de computador, que leva o título de “Campeões pela Paz. 10 de julho. Estádio Único de La Plata”, foi distribuída nos últimos dias entre empresas e marcas da Argentina. O objetivo? Animá-las a financiar o segundo jogo inter-religioso pela paz, que acontecerá na capital da Província de Buenos Aires “por vontade do Papa Francisco”, segundo indica a própria publicidade.
O arquivo do Power Point, em poder do Vatican Insider e que inclui numerosas fotografias do líder católico, está assinado pela Visión Deportiva, empresa que organiza grandes eventos, tais como: o America’s Golf Cup e o Argentina Motor Show 2016.
Na primeira parte, o documento explica as questões gerais do jogo e indica as vantagens em termos de comunicação oferecidas aos patrocinadores. O último capítulo lista os “benefícios” para quem pagar elevadas quantias em dinheiro: uma jaqueta oficial do jogo, presença em publicidade estática e sinalética, avisos nos programas de mão, caminho livre para enviar 20 promotores da própria marca, inclusão da própria logo em diversos setores, autorização para organizar jogos ou atividades para os participantes, aprovação para vincular a marca ao jogo pela paz nas redes sociais e direito de montar um setor Vip no próprio estádio para que a empresa “realize ações com os clientes”.
A tudo isso se acrescenta o “direito a duas mesas para convidar clientes no dia do jantar de gala”, um espaço para montar um estande e, o mais destacado, a “viagem para Roma”. Neste último dispositivo informa-se diretamente e sem eufemismos, sobre o “direito de viajar com duas pessoas para Roma para o encontro com o Papa Francisco”, dando a entender que a “peregrinação” está condicionada aos pagamentos em espécie.
Por enquanto, a direção da fundação pontifícia não informou sobre uma suspensão ou o cancelamento de jogadores para o evento, por exemplo, a do ex-capitão da seleção equatoriana e atual treinador do Deportivo Cuenca, Álex Aguinaga.
Deve-se recordar que Bergoglio, como arcebispo de Buenos Aires, sempre teve como conduta a não aceitação de financiamentos do Estado. Ele convidava os governos e todas as instituições para ajudar os excluídos e a construir obras para os últimos, mas queria que o fizessem diretamente, sem dar dinheiro à Igreja. Por isso, em fevereiro passado, durante uma audiência privada no Vaticano, o pontífice pediu ao presidente Macri para que ajudasse a Scholas. Mas, está claro, não se referia a um apoio financeiro específico. A solicitação do efetivo veio em um segundo momento e por parte dos diretores, que transmitiram ao governo o pedido e até deram a quantia exata: 16 milhões e 666 mil pesos.
Por isso a surpresa da Administração macrista diante da rejeição da doação, já concordada em todos os detalhes com os representantes legais da Scholas. Em sua carta a del Corral e Palmeyro, como pós-data, Francisco escreveu: “não gosto do número 666”. Mas esse foi um detalhe secundário, mas bem vivo, e não esteve na origem da recusa.
Um ano e meio atrás, com uma carta ao presidente da Conferência Episcopal Argentina, o Papa convidou os bispos de seu país natal para não pedirem dinheiro ao governo (então dirigido por Cristina Fernández de Kirchner) para o Congresso Eucarístico Nacional, que acontece nestes dias em San Miguel de Tucumán. Parte de uma conduta linear, sempre clara para quem conhece bem a Francisco.
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O Papa à Scholas: “Tenho medo de que possam cair na corrupção” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU