10 Junho 2016
Não poderíamos fazer mais do que dar aulas públicas sobre democracia, mudar nossas fotografias no Currículo Lattes e escrever cartas abertas “dos intelectuais” contra o golpe?
O artigo é de Alex Martins Moraes, antropólogo, realiza estudos de doutorado no Instituto de Altos Estudios Sociales (Buenos Aires) e faz parte da Rede de Antropologia Crítica. publicado por Outras Palavras, 09-06-2016.
Eis o artigo.
É moeda corrente nos ambientes universitários eue os estudantes secundaristas têm algo a ensinar para quem frequenta as salas de aula do Ensino superior. Desde que a ocupação das escolas se alastrou pelo país, os universitários se mobilizaram como puderam para prestar apoio e solidariedade aos secundaristas conflagrados, cuja luta se tornou uma das primeiras trincheiras de afirmação da democracia, da vontade de participação e das demandas “dos de baixo” no Brasil pós-golpe parlamentar. A admiração pelo protagonismo dos secundaristas se mistura com um certo mal-estar nos corredores da Universidade. Por que a relativa calmaria no campus? Não poderíamos fazer mais do que dar aulas públicas sobre democracia, mudar nossas fotografias no Currículo Lattes e escrever cartas abertas “dos intelectuais” contra o golpe? Estas perguntas pipocam entre estudantes e professores universitários Brasil afora.
Em artigo recente publicado na Carta Capital, a antropóloga Rosana Pinheiro Machado evoca alguns cenários da vida acadêmica que nos dão pistas para entender a origem da timidez política do meio universitário num momento crítico da democracia brasileira. Ela se refere ao mundo acadêmico como uma “máquina nefasta marcada por brigas de núcleos, seitas, grosserias, humilhações, assédios, concursos e seleções fraudulentas” perpetuada por gerações de universitários ao longo de suas experiências institucionais. Rosana nos fala de acadêmicos que aprendem desde cedo a destruir a si mesmos e aos outros e comenta que o número de alunos que choram em seu gabinete é maior que os que se dizem felizes. E conclui: a vida acadêmica não precisa ser essa máquina trituradora de pressões múltiplas. A autora deposita suas esperanças numa nova geração de cotistas e bolsistas PROUNI e Fies que vê a Universidade com olhos críticos, contesta a supremacia das camadas médias brancas e coloca em xeque a meritocracia.
Contudo, a relação entre democratização relativa da Universidade e questionamento efetivo dos velhos paradigmas não parece ser assim tão direta. Como Rosana menciona em seu texto, o ensino superior está atravessado por fortes constrangimentos morais e materiais. Tais constrangimentos coexistem “pacificamente” com a crítica e o antagonismo apenas na medida em que estes não coloquem em xeque as hierarquias e valores estabelecidos. Neste contexto, as vontades, sonhos, desejos e indignações que movem o “novo estudantado” acabam em larga medida suprimidos nos espaços convencionais de ensino e pesquisa. A máquina funciona. E não é de agora que ela mutila as sensibilidades de muitos em favor da preservação de um modus operandi que só é amigável com o ethos de classe de um punhado de pessoas.
Para compreender a eficácia desse contínuo processo de pacificação é preciso olhar com atenção para nossa realidade mais imediata. Cada disciplina acadêmica tem sua própria cultura de disciplinamento. Darei um exemplo de minha área, a antropologia. Ali, grosso modo, a pacificação costuma funcionar assim: das portas para dentro da academia circunscreve-se uma espécie de espaço “neutro” ancorado em certas rotinas institucionais e estilos pedagógicos. Instalados nesse espaço, os acadêmicos são convidados, desde muito cedo, a falar sobre “os outros”, lá fora, em sua ausência. Se o próprio antropólogo for um “outro” – feminista, gay, crente, índio, militante popular, etc. –, como tem se tornado comum nos últimos anos, sua legitimidade acadêmica estará condicionada a que ele se assuma abertamente como “nativo”. Isto implica se esforçar por discernir, nos seus discursos e práticas, aquilo que seriam desvios ideológicos daquilo que é compatível com as matrizes de pensamento e os modos de conduta estabelecidos. O protocolo de boa conduta é vigiado por uma espécie de polícia disciplinar difusa e intermitente. Qualquer pessoa ou grupo pode ativar a função de polícia arbitrariamente quando lhe convier. Trata-se de um instrumento discursivo sustentado institucionalmente e disponibilizado a quem quiser usá-lo.
Quando mobilizada, a função de polícia converte pares em párias e sua eficácia depende do que o antropólogo e ativista David Graeber denomina “ideologia da harmonia”. Esta última consiste numa espécie de consenso tradicional sobre a existência de interesses comuns a todos os acadêmicos, mais além de suas diferenças particulares.
Tenho certeza que em outras disciplinas a polícia opera segundo critérios distintos, mas certamente ela existe. Caso contrário, o campus não estaria tão calmo. Neste ponto, vale notar que é principalmente nas instituições universitárias mais recentes, menos especializadas do ponto de vista disciplinar e com hierarquias mais débeis onde podemos observar disrupções significativas. É o caso da Universidade Federal do Pampa (ler a cobertura do Esquerda Diário).
A máquina trituradora que dinamiza a vida acadêmica é reforçada pela avassaladora docilização da prática investigativa nas universidades. Tal processo decorre da paulatina instauração de critérios de avaliação quantitativista e produtivistas (me dediquei a analisar estes critérios em um texto publicado há alguns anos por Outras Palavras) que não reconhecem na prática científica outro valor mais além daquele outorgado pelos mercados editorais. O produtivismo empobrece os critérios de avaliação da produção científica e fortalece o senso comum conservador segundo o qual o compromisso intelectual de um pesquisador universitário se estabelece, em primeira instância, com as modas teóricas e a parafernália burocrática do seu próprio campo de conhecimento.
Neste cenário, a máxima proferida por Salvador Allende numa palestra dirigida aos estudantes da Universidade de Guadalajara em 1972, nove meses antes do golpe de Estado pinochetista, parece ressoar com renovada atualidade: “a revolução não passa pela universidade”. “A revolução – prosseguia Allende – passa pelas grandes massas; a revolução é feita pelos povos; a revolução é feita, essencialmente, pelos trabalhadores”. Não há nada de simplista nesta assertiva. Salvador Allende nunca negou o potencial da Universidade como espaço de elaboração de um saber crítico sobre o mundo. Contudo, ele sinalizava que os processos decisivos de transformação de qualquer situação passavam, fundamentalmente, pelas lutas populares. Se o público universitário estivesse interessado em somar-se a essas lutas, seria necessário que ele expandisse sua comunidade de diálogo e “deviesse massa” a partir do exercício de outras lealdades sociais. Isto significaria, em consonância com David Graeber, liberar nossa vontade de saber – afinal, foi ela que nos levou até a universidade – das amarras burocráticas e deixá-la escoar em simbiose com as paixões que nos comovem atualmente. Em poucas palavras, trata-se de fazer a Universidade passar pela revolução, entendida, esta última, como politização de tudo aquilo que nos subleva, de tudo aquilo que a polícia acadêmica procura negar e que as lágrimas dos alunos da colunista da Carta Capital insistem em delatar.
A ocupação das escolas demonstra que a politização da experiência adquire dimensões transformadoras quando é protagonizada pelos estudantes. Professores e diretores podem escolher entre serem mais ou menos autoritários, mais ou menos democratas, mais ou menos solidários com a luta dos estudantes. Mas é justamente esta capacidade de escolha que evidencia o poder desmesurado que eles detêm. A luta política estudantil, por sua vez, é a única cujo êxito impediria que o bem-estar e a capacidade de fala de muitos dependa do arbítrio e da boa vontade de poucos. Quando os estudantes resolvem fazer democracia na prática, algo muda dramaticamente nas instituições que eles habitam e tensões políticas decisivas vêm à tona. Neste sentido, o protagonismo estudantil é portador de uma chave democrática universal, que o coloca em sintonia com a vontade de mudança expressa em outros espaços da sociedade, abrindo caminho para o devir massa – ou multidão – do público universitário. Esta, creio eu, é uma das grandes lições oferecidas pelos secundaristas nas últimas semanas: para estar em simbiose com os problemas dos demais é necessário, antes de qualquer coisa, politizar radicalmente nossos próprios problemas e definir critérios para superá-los aqui e agora.
A vaidade acadêmica permitirá que os docentes universitários reconheçam a centralidade dos estudantes na luta democratizadora? Ou eles continuarão a investir seus esforços intelectuais na tentativa de difundir coordenadas políticas que estão muito aquém de real potência do alunado? O apego aos lugares de poder estabelecidos nos conselhos universitários, nos departamentos e programas de pós-graduação permitirá à burocracia acadêmica acompanhar os estudantes na exploração das consequências mais radicais de seu descontentamento político? Esta é uma pergunta que deveríamos responder na prática como, a propósito, já estão fazendo os secundaristas.
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O que os secundas têm a ensinar à academia? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU