Por: Jonas | 08 Junho 2016
Nascido na Bélgica, François Houtart – sacerdote católico, destacado promotor da Teologia da Libertação, sociólogo, professor – conhece o Equador desde os anos 1970, mas reside em Quito desde 2010. Atualmente, é professor no Instituto de Altos Estudos Nacionais (IAEN), instituição universitária pública de pós-graduação.
Paolo Moiola, colaborador de Noticias Aliadas, conversou com esta reconhecida figura do movimento altermundialista. Na sequência, apresentamos uma parte desta conversa, na qual Houtart analisa aquilo que define como a “crise multidimensional” (econômica, ambiental, de valores) do mundo moderno e faz um balanço do governo do presidente Rafael Correa (que foi seu aluno na Universidade de Lovaina), com quem diz ter uma correspondência muito frequente, “inclusive quando não concordamos em vários aspectos”.
A entrevista é de Paolo Moiola, publicada por Rebelión, 06-06-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A Constituição do Equador, aprovada em 2008, durante o primeiro mandato do presidente Rafael Correa, é realmente inovadora.
Talvez contenha muitos artigos, mas é realmente vanguardista. Nela, foram introduzidos os conceitos de país plurinacional e pluricultural. E, depois, única no mundo com os direitos da natureza. Certamente, uma coisa é escrever uma Constituição, e outra é aplicá-la. É, neste sentido, também aqui no Equador, onde há um abismo entre o texto e o que acontece na realidade. Como comentava com ironia um amigo boliviano: “Na Bolívia, temos uma Constituição magnífica, mas todas as leis são anticonstitucionais”. Isto é obviamente um exagero, mas o problema existe.
No mundo, é evidente tanto o fracasso destrutivo do sistema econômico neoliberal, como o rápido agravamento da questão ambiental. Esta crise não se cura com mais neoliberalismo.
Atualmente, vive-se no mundo uma crise multidimensional, uma crise que é ao mesmo tempo financeira, econômica, alimentar, energética, climática, uma crise de sistema, valores e civilização. E, no entanto, na Ásia, o neoliberalismo aparece como uma oportunidade de desenvolvimento. Também na África, no Oriente Médio e na própria Europa, onde as medidas contra a crise são simplesmente mais neoliberalismo.
Não digo que se deva chegar subitamente a um novo paradigma, àquilo que eu chamo “o bem comum da humanidade”. Seria utópico e ilusório. Mas, sim, seria possível dar passos nesta direção. Até agora, no entanto, só houve adaptações do sistema às novas demandas sociais e culturais.
Até pouco tempo, a América Latina parecia o lugar do experimento e da alternativa. Então, tudo começou a ser derrubado: Da Venezuela à Argentina, passando pelas derrotas (ainda que diferentes) de Dilma Rousseff, no Brasil, e de Evo Morales, na Bolívia.
Contudo, a América Latina foi o único lugar onde se tentou realizar uma mudança, como aconteceu no Equador. Aqui, foi feito algo notável: reconstruir o Estado e a cidadania; dar mais importância aos serviços públicos como a saúde e a educação. O modelo de Correa é de fato um modelo pós-neoliberal, mas ainda não pós-capitalista, como ele mesmo reconhece.
O problema é que a maioria dos líderes políticos ainda está na antiga visão de desenvolvimento intensivo que se compreende como exploração da natureza e dentro de uma modernidade vista como a rejeição às diferentes tradições e culturas. Não entraram nesta nova perspectiva onde a natureza e a cultura são elementos fundamentais do desenvolvimento humano. Precisamos formar novos líderes, mas sem muita demora, pois esta situação pode se tornar um desastre.
Natureza como recurso a se explorar versus natureza como fundamento do desenvolvimento. A Constituição do Equador fez uma escolha clara, dedicando quatro artigos aos “direitos da natureza”.
A primeira dificuldade está em definir o que significa direito da natureza. Só na cosmovisão indígena a natureza é um ser vivo que percebe sensações. As árvores, os rios, os animais são nossos irmãos e irmãs. Esta visão é magnífica, mas não se adapta à mentalidade da maioria das pessoas de hoje em dia. Na Conferência Mundial pelos Direitos da Mãe Terra, em Cochabamba, Bolívia, em 2010, havia mais de 30.000 indígenas falando de cosmovisão, mudança climática e direitos da Mãe Terra, da Pachamama. Tentou-se adotar um texto, mas houve uma forte oposição, por exemplo, da Via Campesina.
Qual é o problema? A integração dos direitos da natureza em uma perspectiva jurídica, porque a natureza, como é evidente, não pode defender suas prerrogativas. São somente os seres humanos que podem reconhecê-los e, portanto, defendê-los. Ou, ao contrário, violá-los ou destruí-los. Portanto, o direito da natureza é – como se disse – um “direito vicário”, do qual não se pode falar sem a intermediação do homem. E isto nos leva à tomada de consciência da responsabilidade diante da natureza.
Estou trabalhando no setor agrário e vejo uma agricultura camponesa e indígena completamente abandonada. Estou visitando a Amazônia, em vários países, e fico impressionado com a sua destruição sistemática e as consequências (ambientais e sociais) que isso acarreta. Do tema ambiental também fala a encíclica do Papa Francisco, mas não sei quantos a leram realmente.
A Constituição do Equador dedica um espaço importante aos povos indígenas. Como é sua situação?
Houve um renascimento da identidade indígena. Sua cultura saiu da clandestinidade. Por exemplo, hoje os xamãs são reconhecidos. Eu participei com eles de cerimônias públicas, vestido de sacerdote católico. Sua participação, nas últimas eleições, foi massiva. Isto mostra claramente os méritos de Dom Leonidas Proaño [teólogo da libertação equatoriano conhecido como o Bispos dos Indígenas, que faleceu em 1988].
Nesta sociedade, os indígenas têm um peso importante, ainda que nos últimos 30 anos tenha ocorrido uma mudança estrutural importante com o crescimento da classe média, especialmente com Correa, que pôde se beneficiar de muitos ingressos.
Houve uma crescente urbanização e, ao mesmo tempo, um abandono do campo e em especial da agricultura camponesa. Uma grande parte da população indígena vive em áreas urbanas. E, aí, os jovens se interessam certamente mais por seus celulares do que por suas origens indígenas. É um processo de mudança cultural. Portanto, as organizações perderam uma parte de sua base social e de sua força política.
O presidente Correa e seu governo impulsionam o que chamaram Revolução Cidadã, que considera os indígenas cidadãos como os demais.
O que não é um projeto socialista. Rafael Correa e Aliança País [coalizão de setores de esquerda e de direita] falam de um capitalismo moderno. Querem ter a todos os cidadãos com os mesmos direitos e deveres no interior de uma sociedade modernizada. Sim [considera os indígenas cidadãos], mas cidadãos “atrasados”, como afirma o presidente, que devem se modernizar, e que não se reconhecem como povos. Mas, existe a Constituição que, em seu artigo 1º, fala de plurinacionalidade. Existe a definição e o reconhecimento dos territórios indígenas. Os indígenas mais conscientes – os agrupados na CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador] – sofrem muito com esta agressão cultural e política. Por isso, após apoiarem Correa, pouco a pouco tomaram distância.
As últimas leis – aquelas da água [junho 2014] e da terra [janeiro 2016], por exemplo – excluem os grupos indígenas, apesar de um vocabulário que parece favorável a eles. Promove uma agricultura para a exploração, de monoculturas, fazendo desaparecer os pequenos produtores e camponeses indígenas. Desta maneira, a fratura com o governo foi se ampliando cada vez mais. O perigo é que, por causa do conflito com Correa, uma parte do movimento indígena possa fechar um acordo com a direita, uma direita que nunca os defenderá, mas que deseja apenas utilizá-los.
A linguagem utilizada por Correa para com os indígenas é muitas vezes vulgar. E é uma verdadeira lástima porque Rafael Correa é o único líder político [no Equador] que fala kichwa.
Da belíssima (mas, muitas vezes não aplicada) Constituição à belíssima promessa de Correa (em março de 2007) de não tocar no Parque Nacional Yasuní, verdadeiro tesouro mundial da biodiversidade, mas também importante reserva petrolífera. Pelo que parece, estamos diante de uma promessa rompida.
O Equador decidiu fazer uma proposta à comunidade internacional de não tocar naquele petróleo se esta ajudasse pagando, por um certo número de anos, a metade daquilo que o país conseguiria ganhar com os benefícios daquelas reservas. Houve comentários positivos, sobretudo da parte da Alemanha. Depois, tudo caiu com a chegada ao poder de [Angela] Merkel. Nesse momento, o presidente Correa disse que a comunidade internacional não havia respondido à proposta do Equador e que, portanto, começaria a explorar o petróleo.
Na realidade, este plano B já existia porque havia interesses econômicos locais que promoviam a exploração dessas reservas. O governo disse que iria explorar somente pouco mais de 1% do parque, utilizando tecnologia de ponta. De acordo com as minhas informações, parece que a destruição local é muito maior do que aquilo que o governo afirma.
No parque e nas imediações vivem pelo menos três diferentes grupos indígenas: os Shuar, os Kichwa e, principalmente, os Huaorani. Ocorreram protestos indígenas contra a decisão de iniciar a exploração petrolífera do Yasuní, mas não com uma voz unânime.
O governo obteve o apoio da maior parte dos sindicatos do território – uns 40, muitos dos quais são indígenas -, prometendo-lhes que uma parte substancial dos lucros iriam para o município.
Houve uma reação muito forte da juventude, especialmente urbana. Criou-se o movimento ‘Yasunidos’. Teve um êxito extraordinário, conseguindo reunir mais de 700.000 assinaturas contra a exploração petroleira. No entanto, a auditoria governamental reduziu as assinaturas válidas para menos de 300.000. [Dessa maneira, o governo conseguiu impedir a consulta popular].
Finalmente, qual a sua opinião a respeito de Correa?
Felizmente, renunciou à reeleição. Talvez por razões mais familiares que políticas. No entanto, já que é jovem, poderia se dar quatro anos de repouso e depois se apresentar novamente. Não tenho nenhuma objeção a isso, mas espero que aproveite este período para ler, conhecer pessoas, para viajar pelo mundo e sobretudo para transformar sua visão, adaptando-a à realidade do mundo atual. É um homem sincero. Às vezes, sincero demais. E às vezes também um pouco prepotente, porque não aceita conselhos. Mas, é um homem de valores e um grande trabalhador.
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“O modelo de Correa é de fato pós-neoliberal, mas ainda não pós-capitalista”. Entrevista com François Houtart - Instituto Humanitas Unisinos - IHU