27 Mai 2016
Mobilizações como o Junho 2013, 15M espanhol e o recente Nuit Debout, “funcionam mais como performance do que como discurso e projeto político alternativo”, escreve Salvador Schavelzon, antropólogo, professor da Universidade Federal de São Paulo (Osasco) e autor de El nacimiento del Estado Plurinacional de Bolivia. Etnografía de una Asamblea Constituyente (2012), em artigo publicado por El País, 26-05-2016.
Segundo ele, “tais protestos aparecem como irracionais, infantis, ou subversivos para as forças repressivas e os interlocutores do Estado, mas também para uma esquerda dogmática e centralizada, para a imprensa e as ciências sociais que exigem ou esperam propostas e demandas claras, interlocutores com rosto e biografia, trajetos de mobilização delimitados e horário para terminar claramente estabelecido. Protestos como os de junho de 2013, o Occupy Wall Street, o 15M espanhol, a Primavera Árabe e o recente Nuit Debout na França não se adaptam a esses parâmetros, como críticas “de fora e de baixo” a todo um sistema político, mas também a um modelo de sociedade e de civilização. Essa realidade utópica não a paralisa, daí deriva sua força de rápida difusão e impugnação política”.
Eis o artigo.
O novo século começou em um mundo com fortes mobilizações de diferente caráter, mas que poderiam ser entendidas como parte de um movimento contrário à globalização neoliberal. Não havia uma instância internacional de coordenação desses protestos, mas eles podiam ser associados ao mesmo horizonte de época. A América Latina fez parte desse ciclo de forma ativa, com mobilizações contra a ALCA (Aliança de Livre Comércio das Américas), e levantes que expulsaram presidentes com agendas neoliberais na Argentina, Bolívia e Equador, que lutaram contra acordos de livre comércio no México ou rejeitaram ajustes.
No Brasil, o Fórum Social Mundial, que surgiu inicialmente como oposição ao Fórum Econômico Mundial de Davos, juntou-se a uma ebulição de movimentos sociais que eram centrais nos protestos latino-americanos, num momento em que era possível aglutinar setores tão diversos que podiam mostrar simpatia por Chávez ou pelo Subcomandante Marcos, definir-se como autonomistas e horizontais, receber financiamento de ONGs ou ser um sindicato aliado a um partido. Estudantes, professores, camponeses, indígenas, trabalhadores sem terra ou desempregados contribuíram para que se tornasse possível uma mudança de sinal político que se verificou eleitoralmente na maioria dos países da região.
Boa parte da energia proveniente dessas mobilizações se transformou em apoio a novos governos progressistas, em alguns lugares protagonizados pelos próprios movimentos, em outros incentivando medidas exigidas por estes nos anos anteriores. Uma política que se expressou em torno da dinâmica eleitoral, nos meios grandes de comunicação e cada vez mais nas redes sociais, deixou as ruas para novos participantes. Num mundo de “Guerra ao Terror”, BRICS e a gestação de uma nova crise econômica mundial, dez anos se passaram até que um forte ciclo de mobilização fosse reiniciado.
No momento do auge do progressismo sul-americano, setores críticos ao governo e que se mobilizavam a partir de novos conflitos mantiveram alguma conexão com as novas modalidades e perspectivas políticas já expressas no momento anterior de mobilizações antineoliberais e antiglobalização. A partir de assembleias ou movimentos auto-organizados, e com uma crítica transversal a toda a classe política mostraram criatividade, mas, naquele momento, pouco impacto. Ao mesmo tempo foi sendo gerada uma nova agenda política frente à persistência da violência policial nas periferias, à ameaça às populações e ao meio ambiente ante o avanço do extrativismo e das grandes obras, ou à timidez para tornar efetivos os direitos sociais e ouvir as minorias.
O refluxo da mobilização de organizações aliadas ao progressismo, mesmo quando agendas como a reforma agrária e a ampliação dos direitos trabalhistas foram interrompidas ou ignoradas, fizeram com que grandes movimentos sociais e sindicatos deixassem de ser componentes centrais da mobilização. As forças que não perderam capacidade de expressão, no entanto, não encontraram espaços para denunciar a continuidade do neoliberalismo em cenários extremamente desmobilizados e envolvidos em narrativas de midiáticas que priorizavam outras temáticas. Qualquer proposta política que tivesse olhos para além da conjuntura política nacional, ou caminhos políticos diferentes daqueles do mercado e do Estado, também ficaram silenciados diante dos grandes aparatos de criação de narrativas que não questionavam essa predileção por histórias de líderes carismáticos reformadores ou bandidos no poder.
Durante o tempo do progressismo também se mobilizaram setores da classe média não organizados em movimentos e que não tinham sido protagonistas no ciclo anterior de mobilizações, mas que foram às ruas em diferentes países. Levantaram pautas como corrupção, segurança, autonomia política para regiões abastadas ou críticas a medidas políticas que as afetavam. Como o progressismo, esses setores enfocavam suas narrativas em figuras presidenciais ou em partidos de governo, e nesse sentido não eram invisíveis, mas reforçados pela polarização da midiática imperante.
Os estrategistas dos governos progressistas atenderam melhor as mobilizações de classe média, acolhendo-as desde as políticas e o discurso. Frente àquelas que interpelavam mais diretamente sua identidade política, oscilaram entre a indiferença, a confrontação discursiva a partir do pragmatismo e a repressão. Apenas na Venezuela houve uma tentativa de aprofundar as reformas, enquanto em outros países foi mais visível uma deriva conservadora, com uma aproximação a agendas de igrejas e alianças empresariais e políticas muito difíceis de justificar. Foram aprovadas leis ou ações “antiterroristas” contra os protestos dos mapuches no Chile, contra a Copa do Mundo no Brasil e contra conflitos em torno da mineração em outros países. Líderes sociais foram perseguidos e os movimentos ecologistas eram apresentados pelo poder como obstáculos ao desenvolvimento.
As mobilizações de junho 2013 no Brasil, ou em diferentes pontos da Bolívia e do Equador que estão mais associados com o conflito que antecipou a chegada do progressismo do que com as classes médias opositoras que também estavam na rua, mostraram novas forças e formas de protesto que anteciparam o encerramento de um ciclo aberto quando caíram os governos iniciados nos anos 1990, identificados com a defesa da privatização e a aplicação acrítica dos programas de ajuste dos organismos internacionais de crédito.
As recentes derrotas eleitorais em vários países da América do Sul reabrem a possibilidade de uma nova fase de mobilização, com a possível articulação de forças que combateram o progressismo com outras que reajam ao fim ou à ameaça a uma série de políticas de inspiração social e estatista impulsionadas pelo governo. Os novos governos verão a possibilidade de voltar ao início do século, com mobilizações que combateram o progressismo e outras que saíram em sua defesa. Ao mesmo tempo, exporão a necessidade de retomar uma agenda antineoliberal enfrentando uma estrutura política posta em funcionamento décadas atrás, mas que o progressismo não procurou desarmar de forma estrutural.
No Brasil, os grupos de classe média que protestaram a favor do impeachment já dão mostras de que não permanecerão mobilizados, embora o novo governo não atenda suas reivindicações. As características que a mobilização adotará nesse novo contexto deverá ser definida a partir de duas lógicas e visões políticas diferentes que puderam dialogar nas manifestações dos anos 1990 e 2000, mas que durante o progressismo estavam nos antípodas.
Em tempos de novo governo (interino) de Michel Temer, parte da mobilização inscreverá seus esforços na estratégia de recuperação das instituições. A exigência de novas eleições ou a reivindicação de volta do governo deposto com denúncia de ilegalidade, se combinam a partir deste horizonte com ações judiciais e articulação política, além de um chamado à mobilização que até agora não mostrou capacidade de impacto e massificação para influenciar os acontecimentos.
Esta saída política “por cima” aponta suas energias e esperanças para a cabeça do executivo, subordinando a mobilização à resolução do enredo na instância institucional e nem sempre aceitando discutir o projeto que se defenderia numa volta do governo. Ao estabelecer frentes unificadas na rejeição ao novo governo, também se mobilizará com esse horizonte institucional o arco político-partidário que se opôs ao impeachment sem abandonar a crítica ao governo do PT e seus aliados, desde a reforma da Previdência de 2003 à política de austeridade de 2015.
Voltando às mobilizações antiglobalização do começo do século, mas também à força de destituição e insubordinação mostrada nas ruas e nas jornadas de junho de 2013, se abre também, no Brasil e em outros lugares, a possibilidade de rejeição “por baixo” às políticas do novo governo que aprofundem o curso conservador ou o avanço contra políticas progressistas iniciadas no governo anterior. Sem um objetivo eleitoral ou partidário, tentará resistir e colocar limites com uma mobilização que visa se fortalecer sem abandonar as ruas. Às vezes, basta pensar num número de dia e numa letra de mês para definir a data de uma mobilização que não surja da articulação de dirigentes e que consiga produzir efeitos por sua própria força, sem necessidade de mediações que procurem traduzi-la institucionalmente.
A falta de verticalidade e de hierarquia desse tipo de mobilizações as torna irredutíveis a uma negociação que a faça terminar sem resultados. Sua horizontalidade e dispersão permitem incluir inúmeras posições e reivindicações numa força que é constituída como um contrapoder, sem aspirar ocupar o lugar do Governo. Sua força não é dada apenas pelo fato de vir de baixo, de conectar indignações e ficar fora do sistema institucional. Sua força também está relacionada com a forma de articulação sem cúpulas burocratizadas ou filiação a uma estrutura clássica. Vista como algo de senso comum especialmente para muitos jovens não identificados com as formas de organização verticais, evitam a fragmentação que poderia levá-la à falta de estrutura organizacional usando formas de conexão em rede. Essas mobilizações funcionam mais como performance do que como discurso e projeto político alternativo.
Tais protestos aparecem como irracionais, infantis, ou subversivos para as forças repressivas e os interlocutores do Estado, mas também para uma esquerda dogmática e centralizada, para a imprensa e as ciências sociais que exigem ou esperam propostas e demandas claras, interlocutores com rosto e biografia, trajetos de mobilização delimitados e horário para terminar claramente estabelecido. Protestos como os de junho de 2013, o Occupy Wall Street, o 15M espanhol, a Primavera Árabe e o recente Nuit Debout na França não se adaptam a esses parâmetros, como críticas “de fora e de baixo” a todo um sistema político, mas também a um modelo de sociedade e de civilização. Essa realidade utópica não a paralisa, daí deriva sua força de rápida difusão e impugnação política.
A partir desse lugar, que reúne jovens nas grandes cidades e vozes marginais, de visão descolonizadora ou comunitária, se observa claramente o esgotamento de alternativas já neutralizadas pelo neoliberalismo, como é o caso da social-democracia europeia e, pelo mesmo caminho, do progressismo latino-americano. Também se dá conta do rápido disciplinamento de opções inicialmente de ruptura quando estas não questionam os limites da representação política e se limitam a um cenário de “dentro e por cima”, limitado à dimensão nacional e institucional, sem se propor a mudar as regras do jogo de um sistema alheio.
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A agenda perdida do progressismo e a nova onda de mobilizações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU