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20 Mai 2016

Ainda não entendemos como vive a grande maioria da população do planeta e, no fundo, isso não nos importa: de acordo com o papa, a verdadeira crise da Igreja Católica está nisso, não no fato de que as pessoas não vão mais à missa ou não obedeçam os bispos.

A opinião é do historiador italiano Franco Cardini, professor do Instituto Italiano de Ciências Humanas (Sum). O artigo foi publicado no jornal Il Messagero, 18-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O que significa que, por um lado, o papa nos surpreenda com a sua hiperatividade, prometendo um diaconato feminino, repreendendo padres e bispos pela sua mundanidade e pelos confortos que alguns deles se permitem, visitando apenas capitais extraeuropeias, enquanto, por outro lado, a Conferência Episcopal Italiana (CEI) parece, às vezes, tirar o pó do tom de outros tempos, intervém nos assuntos políticos italianos, condena o Parlamento pelas escolhas feitas em matéria de uniões civis, mas, ao mesmo tempo – por meio do seu jornal – toma distância de hipóteses de referendo, admitindo, com isso, implicitamente, que teme um resultado oposto às suas esperanças e à sua linha e, portanto, que está consciente da sua fraqueza?

Talvez as coisas pareceriam mais claras se não nos detivéssemos no ativismo e no dos bispos, que são apenas sintomas, e, em vez disso, tentássemos captar a substância do problema; que é o paradoxal contraste entre a extraordinária presença midiática e carismática de um papa que aspira a uma profunda reforma espiritual e até estrutural da Igreja, por um lado, e a realidade, em vez disso, de uma comunidade de fiéis profundamente enfraquecida e empobrecida. Uma comunidade que não se sente mais capaz de sustentar o papel coprotagonista da história.

"Quantas divisões o papa tem?", perguntou Stalin. E, como bom ex-estudante do colégio sacerdotal da sua Tbilisi, ele sabia muito bem que as divisões do papa certamente não eram "encouraçadas" como as suas; porém, não ignorava o seu poder formidável.

Pois bem, esse poder, hoje, está infinitamente enfraquecido. A sociedade do consumo e do lucro, o "mundo do Ter" (em vez do Ser), como definia Eric Fromm, levou a melhor na civilização ocidental: que é – não o esqueçamos – aquela à qual pertencem todas as camadas dirigentes e proeminente do mundo, mesmo nos "países ocidentais".

Hoje, a maior parte dos próprios católicos é constituída por "católicos sociológicos", isto é, por pessoas que, talvez – e cada vez menos frequentemente –, também sejam batizadas ou, talvez, se casem na igreja, mas nas quais a vida religiosa não tem mais qualquer peso prático.

Quando eu era jovem, no bairro muito "vermelho" de San Frediano da "vermelha" Florença dos anos 1940-1950, a bênção quaresmal das casas e das famílias por parte dos párocos era um evento fundamental do ano, para o qual nos preparávamos com cuidado e devoção.

Hoje, esse mundo irremediavelmente acabou, a Igreja fala, e os católicos não escutam. João XXIII já tinha dito isso com clareza há meio século: não somos mais senhores da sociedade, é preciso aceitar que nos tornamos uma minoria qualificada dela, que tem consciência disso, sal da terra...

Por outro lado, o que a CEI faz não é propriamente "ingerência da Igreja nas questões italianas": as dioceses italianas são compostas, do bispo até o último fiel, de cidadãos precisamente italianos, que também têm o direito de dar a sua opinião, assim como os componentes das comunidades cristãs reformadas, judaicas, muçulmanas, budistas, os membros das lojas maçônicas e os ateus.

Os bispos italianos também têm o direito de dar a sua opinião: e chamar tudo isso de "ingerência" é coisa do século XIX. Mas o fato é que a repetitividade desses apelos é um sinal de fraqueza. Ainda mais que o chefe da Igreja Católica parece não se importar com isso.

Quando Francisco diz que a Igreja Católica não desejar entrar nas questões políticas italianas, ele não afirma que os católicos italianos fariam bem em não se envolver na política: ele apenas quer alertar que a verdadeira batalha ocorre em outro lugar, e que realmente não é importante se a sociedade civil italiana vai aceitar ou não os casais homossexuais (um assunto sobre o qual o magistério católico, contudo, é inequívoco).

O cerne da questão de hoje é outro: é a razão pela qual o Papa Francisco visita as capitais extraeuropeias e se abstém, por enquanto, de se defrontar com as "ocidentais". Esse papa fala em termos apocalípticos e planetários. Para ele, o grande e principal problema da humanidade é a injustiça social que reina soberana no mundo e a nossa "cultura da indiferença", que é incapaz de percebê-la.

Por isso, ele vem repetindo que é necessário partir das periferias. Nós, habitantes dos "centros" ocidentais em crise, como quiserem, mas ainda relativamente ricos e, em alguns casos, opulentos, somos vítimas de uma pluridecenal ilusão de perspectiva: no fundo, pensamos que é mais ou menos assim por toda a parte.

Até alguns anos atrás, estávamos até repetindo que todo o mundo prosseguia rumo à paz: havia guerras por toda parte, do Vietnã ao Oriente Próximo, passando pela América Latina, mas, na nossa ilha feliz, o eco das explosões não chegava.

Hoje, sabemos que não é assim: porém, ainda não entendemos como vive a grande maioria da população do planeta e, no fundo, isso não nos importa. E, de acordo com o papa, a verdadeira crise da Igreja Católica está nisso, não no fato de que as pessoas não vão mais à missa ou não obedeçam a CEI.

O Cristo ainda está na cruz, mas ninguém mais lhe dá atenção: e o velho padre que vem das villas miseria não aceita isso, assim como não digere as coberturas dos cardeais. Por isso, ele continua visitando as periferias: quando for o momento, e só então, ele vai agredir as capitais da "cultura da indiferença".

Uma batalha perdida já de início? Talvez. Mas é a sua. Se você se entende isso, é inútil se perguntar para onde a Igreja está indo.