11 Mai 2016
A filósofa Márcia Tiburi foi lançar “Como conversar com um fascista” na Suécia, tradicional modelo de inclusão social e direitos humanos. Enquanto a cosmopolita intelectual gaúcha conversava com os leitores sobre o crescimento do fascismo no quotidiano, louros suecos, armados dos pés à cabeça, enfiados em uniformes e carregando bandeiras, evoluíam na esquina ao lado da livraria. Era uma passeata liderada pelo Partido Nazista da Suécia, repetindo numa tarde banal do século XXI, as cenas de um passado que levou às guerras e à destruição da civilização europeia há exatos 71 anos.
A reportagem é de Helena Celestino, publicada por #ProjetoColabora, 10-05-2016.
Ao vivo e em cores sua tese era comprovada. “É a fascistização da nossa cultura contemporânea, estavam lá os mesmos sinais do passado, o mesmo lastro histórico irrompendo novamente. Eu não escrevi uma história do fascismo, é um texto sobre o Brasil e o mundo de hoje” – diz Marcia, cujo livro, não por acaso, virou um best seller da Editora Record, com seis edições em seis meses e traduções previstas ao redor do mundo.
O Brasil não é um país fascista – Marcia reconhece – e os neonazistas são uma versão muito exacerbada de um tipo psico-político comum nas redes sociais e agora também na vida diária do Brasil e do mundo. A característica básica dele é a personalidade autoritária, com a negação do outro e a incapacidade do diálogo. São reconhecíveis em protestos de coxinhas e petralhas, nas manifestações contra refugiados na Europa e adoram as provocações racistas do candidato americano à Casa Branca, Donald Trump.
Mas surgem também entre nossos amigos e em lugares pouco previsíveis, por exemplo, entre universitários mineiros. Em Belo Horizonte, dois jovens conseguiram uma liminar proibindo os colegas de discutirem, nos centros acadêmicos, o processo de impeachment da presidente Dilma: “Estamos desenvolvendo sociedades onde o ódio e outros afetos negativos ganham espaço”, diz Marcia.
No popular, é a tal da intolerância, tema de um ciclo de debates na Casa do Saber no Rio, do qual ela participará nesta terça-feira junto com o sociólogo e professor Jailson Silva, do Observatório das Favelas. Sexta-feira, a discussão será com os psicanalistas Christian Dunker e Tales Ab’Saber. Na semana passada, lá estiveram a juíza Andréa Pachá e o antropólogo Luiz Eduardo Soares expondo as múltiplas visões desse mal-estar contemporâneo que permeia a política e as relações pessoais.
“Hoje, no Brasil, o alvo do ódio são pessoas que tenham uma ideologia diferente e isto foi localizado na figura do petista”, aponta a filósofa.
Num diálogo à distância, Luiz Eduardo concorda discordando.
“O problema maior para mim está na esquerda, mesmo se eu me inscrevo nesse campo. A direita sempre foi assim e o assustador é que a minha tribo está contaminada por esse mesmo veneno”, disse no debate da semana passada. Ligado à Rede, partido de Marina Silva, ele viu de perto a violência petista contra a candidata durante a campanha eleitoral de 2014.
O filósofo Ab’Saber, autor de “Dilma e o ódio político” (Editora Hedra), associa a transformação do culto a Lula em raiva contra Dilma ao aparecimento de uma nova direita que aproveitou a energia dos protestos de 2013 e foi para as ruas, pela primeira vez, sem o comando de partidos, incorporando o estilo dos movimentos dos “indignados”.
“Ao começarem, os protestos eram uma batalha de jovens de esquerda pelo transporte público gratuito e, ao serem violentamente reprimidos, transformaram-se num movimento pela democracia. Por fim, a crítica à esquerda caiu no colo da direita que incorporou o discurso do capital contra a política econômica do governo e descobriu as ruas ”, escreve Ab’Saber.
O Brasil está dividido – sabemos todos – e o discurso do ódio infiltra-se nas várias correntes políticas e esferas da vida social. “Como tolerar a intolerância sem se contaminar? Só estamos aumentando o ciclo da intolerância, ao responder a ela com violência”, diz Andrea Pachá.
A juíza, com a experiência de 15 anos de vara de família, constata na sua prática quotidiana como a intolerância leva as pessoas a procurar a justiça para intermediar os conflitos profissionais e pessoais. “É a judicialização da vida privada. Como as pessoas não conseguem conversar, esperam que a Justiça resolva por elas os conflitos”, diz.
A tese de Pachá é que as grandes pautas foram apropriadas pela economia e a política passou a acontecer na esfera do privado, daí a polarização em torno do aborto, casamento gay e coisas que tais. O recente afastamento de Eduardo Cunha foi uma vitória das “forças do bem” mas os seus escudeiros – talvez não mais tão fieis – continuam lá, nas comissões do Congresso, dispostos a fazer avançar a pauta conservadora, obcecados pelo desejo de legislar sobre o corpo da mulher e restringir os direitos das novas famílias.
O fantasma do conservadorismo ronda o Brasil. Enquanto as discussões do impeachment da presidente Dilma ocupam todas as manchetes, as bancadas da bala, do boi e da bíblia – como o El Pais etiquetou o grupo – praticamente desfigurou o estatuto do desarmamento, fez avançar a lei que dificultou ainda mais o aborto legal em caso de estupro e aprovou o estatuto da família, restringindo-a às relações entre um homem, uma mulher e seus filhos. A bancada religiosa, com 199 deputados e quarto senadores, insiste em desconhecer que a maioria das famílias brasileiras já não segue esse modelo – são homoafetivas, incorporam filhos de várias relações, são monoparentais etc- e continua a legislar sobre um assunto já decidido pela justiça.
“O Judiciário tem sido firme em garantir os direitos a casais homoafetivos – como a adoção de crianças – mas é muito estranho um parlamento continuar legislando sobre matéria constitucional”, diz Andréa, autora de dois livros sobre seus tempos de vara de família “A Vida não é Justa” e “Segredos de Justiça”.
Nenhuma dúvida, os fascismos avançam, Nos Estados Unidos o pré-candidato republicano à presidência, Donald Trump, empolga multidões com um discurso homofóbico, sexista e xenófobo. Na Europa dos direitos humanos, os partidos de extrema-direita crescem aproveitando o medo do terrorismo e da crise econômica para levantar as bandeiras nacionalistas e incitar o ódio aos estrangeiros. “Fracassou a nossa atitude de tolerância com a diferença”, já disse Christian Dunker, em entrevista. A tese dele é que chegou ao limite o multiculturalismo de procedência americana e forte na tradição europeia. Era baseado na política do “você lá e eu aqui”; você respeita o domínio que eu possa querer exercer sobre você e mantém-se numa espécie de “cercadinho.” Só que esta política não responde mais à quantidade de sonhos, à quantidade de felicidade, de expectativas de realização de ideais na nossa vida”, diz o autor do livro “Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma Psicopatologia do Brasil entre Muros (Editora Boitempo).
“A única boa notícia é que passamos a tratar a intolerância como um problema “social maior e crucial”, diz Dunker. E, talvez, a melhor receita para enfrentar estes tempos de cólera seja a do escritor israelense, Amos Oz: para curar um fanático, só existe afeto e humor”.
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Tempos de cólera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU